01/07/2012
ANO XII – N° 1 JANEIRO / FEVEREIRO 2012
Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
Bimestral
Comitê Editorial
• Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
• Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. em Planejamento Urbano e Regional)
• Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. em Planejamento Urbano e Regional) - UFF
• Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)
• Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)
• Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
• Hugo Pinto (Doutourando em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)
IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq
LABORATÓRIO REDES URBANAS
LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS
Coordenador Mauro Kleiman
Equipe
Isabel Gonçalves Coelho Laurindo, Isadora Silva de Araújo,
Nínive Gonçalves Miranda Daniel, Roselea Barbosa Valadão
Pesquisadores associados
Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares
ÍNDICE
Vulnerabilidades na Área Urbana do Município de Barreiras – BA Frente a Acidentes Ampliados Decorrentes do Transporte de Produtos Químicos
Juliana Freitas de Cerqueira Guedes, Laíse Bastos de Carvalho, Roberto Bagattini Portella.........................................p.3
Os Transportes Metroferroviários e o Processo Urbano
no Rio de Janeiro
André Luiz Bezerra da Silva...............................p.28
Vulnerabilidades na Área Urbana do Município de Barreiras – BA frente a Acidentes Ampliados Decorrentes do Transporte de Produtos Químicos
Juliana Freitas de Cerqueira Guedes[1], Laíse Bastos de Carvalho[2], Roberto Bagattini Portella[3]
INTRODUÇÃO
Os acidentes envolvendo produtos químicos nas atividades de transporte, armazenamento e produção industrial constituem um sério risco à saúde e ao meio ambiente. Esses acidentes têm se apresentado com maior gravidade nos países em via de desenvolvimento e de economia periférica, principalmente após a II Guerra Mundial, em que houve um aumento da demanda por novos materiais e produtos químicos, marcando a mudança da base de carvão para o uso do petróleo e se configurando numa “sociedade de risco”.
A maioria desses acidentes nestes países vem ocorrendo sem o adequado registro de informações básicas para a avaliação e vigilância. Os acidentes com produtos químicos no transporte são ainda mais graves quando ocorrem em áreas urbanas, isto porque os efeitos podem se estender além dos locais e momentos de sua ocorrência, os chamados “acidentes ampliados”. O risco destes acidentes aumentou muito com a expansão territorial das cidades, o que pode ser expresso nas cidades médias brasileiras.
No Brasil, as cidades médias (possuem características tanto das cidades pequenas quanto das cidades grandes) estão passando pelo surgimento de novas centralidades, desigualdades socioespaciais, aumento das periferias urbanas, expansão territorial e populacional, além dos altos investimentos no transporte rodoviário em detrimento dos outros modais. A cidade de Barreiras – BA chegou ao posto de cidade média devido ao desenvolvimento do agronegócio e o consequente incremento do setor terciário e da economia urbana, com isso houve uma expansão territorial.
O município surgiu às margens de um rio (Rio Grande), no oeste baiano, e atualmente se estende e ultrapassa as margens de uma rodovia federal de grande fluxo de veículos pesados, inclusive com produtos químicos que, dentre outros insumos, circulam para abastecer a indústria de defensivos agrícolas local, bem como a caminho do polo petroquímico da capital do Estado e do polo de Ilhéus – BA, no litoral Atlântico.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho é analisar a vulnerabilidade da área urbana do município de Barreiras frente a um possível acidente ampliado urbano decorrente do transporte de produtos químicos via rodoviária e sugerir medidas de resiliência frente a essas vulnerabilidades. A hipótese adotada é que o município é incapaz de lidar com a situação de um acidente ampliado. A metodologia utilizada é a observação direta, que originou um inventário simplificado do fluxo de cargas perigosas, bem como referencial bibliográfico.
O artigo consta de uma introdução mais duas partes e uma conclusão. Na segunda parte é abordada a expansão territorial do município, na terceira parte é abordada a relação entre cargas perigosas e “acidentes ampliados”, além de analisar as vulnerabilidades da área urbana do município. Por fim, na conclusão, a hipótese é validada e são sugeridas capacidades que possam vir a gerar medidas de resiliência numa situação pós-desastre, como comunicação de riscos, gestão nas infraestruturas, conclusão urgente do anel rodoviário, plano de contingência e funcionamento da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil de fato.
EXPANSÃO TERRITORIAL
O início da formação do município de Barreiras, nos idos do século XVIII, que na época se chamava São João de Barreiras, se deu às margens do Rio Grande devido ao fluxo comercial que utilizava o rio para transporte e desembarque de mercadorias, que dali eram deslocadas via terrestre para Goiás e Piauí, como também a partir do porto de Barreiras era escoada a produção local descendo pelo Rio Grande e, deste, subindo o Rio São Francisco, para Minas Gerais. A região de São João de Barreiras viveu como um pequeno entreposto comercial durante cerca de 150 anos. A imigração de trabalhadores se tornou forte e o lugarejo começou a se transformar em uma cidade, em 1891, com os rios recebendo um grande número de navios (BARREIRAS, 2009).
O município de Barreiras entrou no século XX com um processo de ocupação lento e com um crescimento econômico diminuto. Em 1928, foi construída no município a segunda hidroelétrica da Bahia, que fez com que indústrias se instalassem na região. Deste modo, em pouco tempo, a cidade que praticamente não crescia economicamente viu surgir frigoríficos, máquinas beneficiadoras de arroz e algodão, fábricas têxteis, curtumes e empresas especializadas na extração de borracha. Os bons tempos econômicos de Barreiras duraram até 1964. Neste ano, a hidroelétrica foi desativada, fazendo com que a economia do município mergulhasse no caos (BARREIRAS, 2009).
As margens do rio é o local de fundação do município, ou seja, o sítio, o centro. Entre suas características, o centro destaca-se como o local mais protegido, do ponto de vista defensivo, ou ainda como lugar de concentração do poder, seja político ou religioso. O centro é também, tradicionalmente, um local de mercado (VASCONCELOS, 2005). Desta forma, possui uma forma-conteúdo; forma em relação ao seu próprio sítio e conteúdo em relação à centralidade, ou seja, a parte mais dinâmica da cidade.
Durante este período, o centro de Barreiras ainda possuía um conteúdo, ou seja, local de centralidade, de tudo que a cidade pode oferecer, onde a cidade verdadeiramente acontecia. Local da prefeitura, da igreja, do comércio, da feira livre, do mercado municipal, da festa, do lazer. O início do fim da centralidade do centro de Barreiras começou na década de 1970, quando um programa para eliminar as principais barreiras estranguladoras do crescimento foi implantado pelo Governo Federal e também quando o investimento no transporte automotivo tornou-se prioritário no Brasil (GUEDES e PORTELLA, 2010).
O programa consistia em investimentos públicos na infraestrutura, estradas, energia, viabilização de pesquisas, tecnologia e apoio financeiro. Com isto, chega a Barreiras o 4º Batalhão de Engenharia e Construção - BEC, para construir o trecho da BR - 020, de Barreiras a Brasília, e concluir o trecho da BR - 242 de Barreiras a Ibotirama, ligando Barreiras a Salvador, capital do estado. Após o término da construção das rodovias, o município torna-se um importante entroncamento rodoviário entre o Norte, Nordeste e o Centro-Oeste do país (BARREIRAS, 2009).
Quando se considera como critério de classificação o tamanho demográfico, Barreiras é uma cidade média, haja vista o fato de possuir 137.427 mil habitantes (BRASIL, 2010a). A cidade está situada no bioma do cerrado e é a mais populosa do oeste baiano, configurando-se em capital regional, pois a sua influência econômica e cultural se estende para além de seus limites municipais. O município de Barreiras está distante da capital do estado da Bahia, Salvador, 885 km e da capital do país, Brasília, 598 km.
O município possui um PIB per capita de 12.284 reais, com economia predominante nos setores de serviços e agropecuária, seguida pela indústria (BRASIL, 2009). Seguindo a tipologia de cidades médias de Corrêa (2007), Barreiras pode ser tipificada como lugar central e também como centro de drenagem e consumo da renda fundiária, com papel fundamental da elite fundiária. As condições de clima, solo e luminosidade do oeste da Bahia, região em que o município está inserido, favorecem culturas como soja, algodão, milho e café irrigado. O feijão, sorgo, capim, arroz, frutas e pecuária também vêm ganhando espaço. A cultura da cana-de-açúcar também é uma promessa da região, a qual será mecanizada e irrigada (AIBA, 2010).
A soja do oeste baiano corresponde a 4% da produção nacional e 56% da produção do nordeste do Brasil; o algodão é o primeiro em qualidade do país e a região é a segunda maior produtora nacional; a cultura do milho é importante para a rotação de culturas e a região também é responsável por 50% de todo o milho produzido na Bahia, abastecendo granjas de aves e suínos e a indústria alimentícia do nordeste (AIBA, 2010). Sendo assim, o município apresenta grande concentração de atividades varejistas e de prestação de serviços que têm como clientela principal a elite fundiária, visto que dados de Brasil (2009) aponta que o PIB de serviços é de 952.957 reais e o PIB agropecuário é de 334.411, seguido pelo PIB industrial que é de 265.711 reais.
Esta agricultura do município de Barreiras e da região oeste da Bahia é científica e capitalista e assim como ressaltam Sposito et al. (2007) foi difundida através dos avanços científicos e tecnológicos que acabou ampliando a área de produção agrícola do país. No caso em questão, os avanços científicos e tecnológicos ocorreram através do Centro de Pesquisa Agropecuária do Cerrado - CPAC/EMBRAPA que iniciou as pesquisas para superação da baixa fertilidade, alta acidez dos solos e para produção de materiais genéticos adaptados às condições naturais dos cerrados (BARREIRAS, 2009).
As pesquisas obtiveram êxito, com a descoberta de uma técnica capaz de recuperar os solos, tornando-os aptos para a agricultura. Em 1978, a Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola - EBDA, já demonstrava no primeiro campo experimental da região que algumas variedades de soja, como a Santa Rosa, adaptavam-se bem às condições locais. A partir dos anos 1980, tornou-se possível o desenvolvimento de culturas graníferas, principalmente da soja, que juntamente com a pecuária semi-intensiva e extensiva definiram uma nova realidade produtiva e econômica na região (BARREIRAS, 2009).
A partir daí, iniciou-se a exploração agrícola economicamente viável das áreas de cerrados, com os agricultores pioneiros, principalmente do sul do país. Este processo foi se expandindo à medida que novos agricultores chegavam atraídos pela disponibilidade de terras baratas, com topografia plana favorável à agricultura mecanizada, temperatura e luminosidade adequadas e grande potencial hídrico (BARREIRAS, 2009). Devido ao desenvolvimento agrícola, a partir da década de 1990, Barreiras assume definitivamente a posição de principal centro urbano e econômico da região oeste, passando de 92.640 habitantes em 1991 para 129.501 em 2007 (BRASIL, 2008).
Hoje em dia, quem chega a Barreiras tem a visão de que uma rodovia corta a cidade ao meio. Na verdade, a BR foi construída próxima a Barreiras e a expansão territorial da cidade foi tamanha que ultrapassou a rodovia e a mesma acabou se integrando à cidade. O fator determinante para isto é a própria condição que uma rodovia tem de atrair oferta e demanda para as suas margens. O trecho da rodovia que passa em Barreiras é composto por duas avenidas, Aylon Macedo e Benedita Silveira, e uma rua, Severino Vieira. Há também duas importantes avenidas, Antônio Carlos Magalhães e Cleriston Andrade, que são paralelas num e noutro sentido a BR-242 (GUEDES e PORTELLA, 2010).
Pela evolução da mancha urbana da cidade percebe-se que na década de 1970 a ocupação predominante era na área central, bem próximo ao Rio Grande, e somente em uma parte da rodovia. Já na década de 1980, a ocupação já extrapola a BR, na década de 1990 mais ainda e na década de 2000 esta evolução está se encaminhado para a saída da cidade em direção a Salvador (PDU, 2003). Devido ao fluxo intenso de caminhões, principalmente no período de escoamento da produção do agronegócio, está sendo construído um anel rodoviário que objetiva desviar o fluxo de tráfego pesado que passa por Barreiras, incorporando os trechos urbanos das rodovias BR – 242 e BR – 020/135 (GUEDES e PORTELLA, 2010).
No entanto, o anel rodoviário está projetado há mais de 15 anos e até os dias atuais sem conclusão da obra (AUDIÊNCIA, 2010), e praticamente já está inserido na área urbana. Fato relacionado com o crescimento acelerado da cidade na direção de Salvador. A expansão territorial também trouxe desigualdades socioespaciais, problema inerente às grandes cidades, que acaba se tornando evidente em Barreiras, uma vez que o crescimento exponencial, aliado à falta de um planejamento urbano adequado, criou áreas marginais no entorno da cidade (GUEDES e PORTELLA, 2010).
Desta forma, podemos observar que o município surgiu às margens de um rio e atualmente se estende e ultrapassa as margens de uma rodovia federal. Sendo assim, há um grande fluxo de veículos pesados em área urbana, inclusive com produtos químicos que, dentre outros insumos, circulam para abastecer a indústria de defensivos agrícolas local, bem como a caminho do polo petroquímico da capital do Estado e do polo de Ilhéus – BA, no litoral Atlântico.
CARGAS PERIGOSAS, ACIDENTES QUÍMICOS AMPLIADOS E VULNERABILIDADE DA ÁREA URBANA DO MUNICÍPIO
Os acidentes químicos ampliados são eventos agudos como explosões, incêndios e emissões, que individualmente ou combinados, envolvem uma ou mais substâncias perigosas com potencial para causar danos ao meio ambiente e à saúde das pessoas expostas. Estes acidentes podem ocorrer nas unidades de produção e no armazenamento ou durante o transporte das substâncias químicas, através dos diversos modais, possuindo a capacidade da gravidade e a extensão dos seus efeitos ultrapassarem os seus limites espaciais (bairros, cidades e até mesmo países) e temporais (doenças passadas de uma geração para outra) (FREITAS e AMORIM, 2001).
A importância dos acidentes envolvendo substâncias químicas está diretamente relacionada à evolução histórica da produção e consumo desses produtos em nível internacional e nacional, que aumentou exponencialmente após a II Guerra Mundial. Com o aumento na oferta e na demanda, também cresceu o armazenamento e o transporte das substâncias químicas, provocando um aumento no número de pessoas expostas aos seus riscos, como trabalhadores e comunidades (FREITAS e AMORIM, 2001).
De acordo com o Boletim Desastres, da Organização Pan-Americana da Saúde apud Freitas e Amorim (2001), 40% do comércio de produtos químicos de todos os países em desenvolvimento ocorre na América Latina. Deste total, estima-se que cerca de 70% da indústria química do continente está concentrada no Brasil, Argentina e México, em que aproximadamente 50% estão localizadas em áreas densamente povoadas. Sendo assim, este quadro é muito preocupante quando se considera que para a maioria dos países latino-americanos inexistem ou são incipientes as políticas públicas referentes às estratégias de controle e prevenção desses acidentes (FREITAS e AMORIM, 2001).
São muitos os acordos internacionais que possuem relação com os produtos perigosos. O Brasil é signatário da maioria deles, sendo que estes acordos abrangem desde o transporte transfronteiriço de resíduos perigosos ao transporte rodoviário de produtos perigosos nos países do Mercosul (SANTOS, 2006).
As convenções internacionais mais diretamente ligadas ao transporte rodoviário de produtos perigosos são: Convenção da Basileia (resíduos perigosos transfronteiriços), Convenção de Roterdã (Procedimento de Consentimento Fundamentado Prévio Aplicável a certos Agrotóxicos e Produtos Químicos Perigosos Objeto de Comércio Internacional” – PIC), Convenção de Estolcomo (Poluente Orgânicos Persistentes – POP), Protocolo de Cartagena (Biossegurança) e Acordo de Facilitação de Transporte de Produtos Perigosos entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai (SANTOS, 2006).
A busca do desenvolvimento sustentável passa obrigatoriamente pela definição dos marcos legais que dão legitimidade e sustentabilidade ao ecodesenvolvimento. Com base nesse pressuposto, a segurança no transporte rodoviário de produtos perigosos utiliza-se do mesmo postulado citado para pautar suas ações, as quais encontram amparo inicialmente na Constituição e que se ramifica pelos mais diversos dispositivos legais federais, estaduais e municipais, assim como, utiliza-se de normatizações técnicas da ABNT quando a legislação assim o autoriza e onde existe vácuo dos marcos legais. (SANTOS, 2006).
Sendo assim, é necessário compreender a conceituação de risco, incerteza, desastre, acidente e vulnerabilidade, para entender o porquê acidentes ampliados podem ocorrer como também podem ser evitados. Muitas vezes risco e incerteza são citados como sinônimos. No entanto, fazer a devida distinção é importante para uma gestão efetiva do risco. Segundo Knight (2006), risco é a aleatoriedade mensurável dos eventos futuros, ou seja, pode ser usada alguma função de distribuição de probabilidade capaz de descrever o valor dos eventos futuros.
Já a incerteza, segundo o mesmo autor, é a aleatoriedade não-mensurável dos eventos futuros. No limite sempre haverá alguma incerteza em todos os eventos práticos, pois seremos sempre incapazes de mensurar precisamente todos os efeitos que afetam os eventos futuros. Ressaltando que gerenciamento de risco tem a ver com minimização da incerteza (CARNEIRO, 2005), já que redução total da incerteza ou risco zero não existe.
Há também autores que definem o risco como algo socialmente construído. Para Veyret (2003), por exemplo, o risco é uma construção social e se define como a percepção do perigo e da catástrofe possível. Os desafios na gestão do risco se encontram sob a ameaça de riscos de vários tipos, tais como natural, tecnológico, social, econômico, político e também de distintas vulnerabilidades que envolvem aspectos físicos, ambientais, técnicos, econômicos, psicológicos, sociais e políticos (VEYRET e RICHMOND, 2003).
Desta forma, os aspectos mais frágeis que uma determinada sociedade convive em seu interior são as vulnerabilidades e os riscos são a percepção social de possíveis danos, que pode ser expresso também através do cálculo de probabilidades. Vale ressaltar que uma maior ou menor vulnerabilidade pode intensificar ou amortecer um desastre. Sendo assim, a gestão dos riscos se funde em três elementos: precaução, prevenção e segurança (VEYRET, 2003).
Para a Secretaria Nacional de Defesa Civil, o risco é a medida de dano potencial ou prejuízo econômico expresso em termos de probabilidade estatística de ocorrência e de intensidade ou grandeza das consequências previsíveis (BRASIL, 2010b). Sendo que a definição geral de riscos, R, é a seguinte:
R = P x D
Em que P é a probabilidade de ocorrência do dano ou do tipo de evento desfavorável e D é o valor total dos danos, ou seja, os prejuízos. A grandeza risco é variável no tempo quer pela alteração de P (alteração de condições potencialmente agressivas ou maior vulnerabilidade), quer pela alteração de D (alteração da ocupação do solo ou de medidas de proteção) (BRASIL, 2010b).
Já o desastre, é o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema vulnerável causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos sociais e econômicos. Os desastres são quantificados, em função dos danos e prejuízos, em termos de intensidade; enquanto que os eventos adversos são quantificados em termos de magnitude. Um desastre de grandes proporções, envolvendo alto número de vítimas e/ou danos severos é chamado de catástrofe (BRASIL, 2010b).
Os acidentes são caracterizados quando os danos e prejuízos são de pouca importância para a coletividade como um todo, já que, na visão individual das vítimas, qualquer desastre é de extrema importância e gravidade (BRASIL, 2011). Sendo um acidente ampliado um desastre ou até mesmo uma catástrofe.
Já em termos antropológicos, um desastre é primeiro um fenômeno social que se manifesta com uma vistosa desarticulação da estrutura social. O conceito antropológico de vulnerabilidade é o primeiro fator variável essencialmente sociocultural que caracteriza o sistema social e a comunidade (LIGI, 2009). Sendo assim, a configuração de um desastre é (LIGI, 2009, p. 18):
D = I (variável física) x V(variável antropológica)
A relação entre um agente (I), físico, natural ou tecnológico, e a vulnerabilidade sociocultural (V) é específica de uma determinada comunidade atingida. Interpretar um desastre como um fenômeno social e conectar-se ao conceito de vulnerabilidade tem a vantagem de eliminar o evento que desencadeia a conotação de fatalidade inevitável (LIGI, 2009).
Uma comunidade é socialmente vulnerável a uma dada categoria de eventos e falar de antropologia do desastre significa falar, sobretudo, de “antropologia da noção de risco local”. O que pode ser expresso na importância histórica, cultural e afetiva do vínculo que a comunidade lega ao próprio ambiente e que parece incompreensível ao próprio lugar, quando significa exposição e gravíssimo perigo (LIGI, 2009).
Numerosos grupos sociais vivem em circunstância de periculosidade não tanto porque não são informados do perigo ou porque a percepção de mundo é diferente dos experts, ou mesmo porque não têm uma informação adequada de seu comportamento em caso de emergência, mas sim porque em alguns lugares do mundo as pessoas simplesmente não têm outra opção. Sendo assim, o conceito de vulnerabilidade deve ser utilizado em uma perspectiva dinâmica, variável e modificado continuamente com o tempo (LIGI, 2009).
A Organización Panamericana de la Salud - OPAS (2003) entende que os desastres são evitáveis e que a vulnerabilidade também é um componente chave na amplificação de um desastre. No entanto, a OPAS (2003) acrescenta a capacidade de reabilitação e reconstrução como elemento importante no ciclo pós-desastre. Sendo assim, a equação de risco é:
R=Ameaça x vulnerabilidade
Capacidade
A capacidade pode vir a gerar condições para o aumento da resiliência de uma sociedade. Folke et al. (2002) apontam como sendo um fator relevante a capacidade original de resistência e resiliência desiguais das sociedades. Ou seja, a capacidade de enfrentar ou reverter para o equilíbrio antes da catástrofe. Estas capacidades são devidas às organizações políticas e sociais dos Estados, mas também da compreensão diferenciada do risco, o que induz comportamentos variáveis face aos riscos e a proteção a ser desenvolvida para resistir a eles (FOLKE et al., 2002).
Desta forma, a capacidade de resposta institucional é variável, dependendo do país e nem sempre é adequado ao risco ou ao desastre. A falta de meios técnicos, o caráter de ferramentas de modelagem inadequada e a falta de competência do pessoal para enfrentar os riscos da gestão do desastre são outros fatos a se considerar (VEYRET e RICHMOND, 2003).
Vulnerabilidade da área urbana do município
O centro original de fundação da cidade, devido às mudanças ocorridas a partir do incremento econômico do agronegócio, com clara prioridade no modal rodoviário no Brasil, perdeu as dinâmicas social e econômica urbana, mas permanecendo como centro histórico. Toda essa dinâmica foi transferida para as imediações da BR-242, responsável pelos atuais vetores de crescimento da urbe e considerada, atualmente, o centro da cidade.
Esta intensa modificação na estrutura dinâmica e redes de fluxo rodoviário num curto período de tempo, aliada à falta de investimentos públicos que acompanhasse este crescimento, derivaram diversos problemas ainda pouco percebidos pela população e pelos próprios governantes, tais como: intenso tráfego de caminhões com os mais diversos tipos de cargas, dentre as quais muitas perigosas sem qualquer tipo de controle e segurança para circular no centro da cidade, ou seja, pela BR-242.
Ressalta-se que o centro é onde toda a dinâmica da cidade acontece, onde estão bancos, lojas de departamentos, restaurantes, o principal mercado público da cidade, a Prefeitura Municipal, Câmara de Vereadores, diversas oficinas mecânicas, 12 postos de combustíveis, entre outros comércios e serviços, com grande fluxo de pessoas.
O município não possui dados de controle de entrada e saída de veículos que estão transportando cargas perigosas. Para a obtenção destes dados, os quais comprovam vulnerabilidades, foram realizados inventários simplificados em pontos estratégicos da área urbana, no eixo da BR-242, em dois dias e horários diferentes. onde o fluxo de automóveis, caminhões, motocicletas e pedestres são maiores e no período em que os comércios iniciam e encerram o funcionamento.
Na Tabela 01 se apresenta os resultados levantados de cargas perigosas nos dias 15 e 17 de maio de 2012. A quantidade de eixos dos caminhões dá uma ideia da quantidade de produto que é transportado, sendo que pode ir de 10 a 14 toneladas para um caminhão de 3 eixos até 74 toneladas para um caminhão de 9 eixos, representando estes últimos um potencial, no caso de um desastre, maximizado pela quantidade de produto. Para o mesmo ponto de coleta de dados se verificou os veículos que trafegavam tanto no sentido Salvador-Brasília como no sentido Brasília-Salvador. Nos dois dias a contagem foi realizada nos seguintes horários: das 06h30min às 08h00min e das18h00min às 19h30min.
A Classe de risco, de acordo com a Norma de Identificação para o transporte terrestre, manuseio, movimentação e armazenamento de produtos (NBR7500, 2003), é classificada da seguinte forma:
- Classe 1: Explosivos
- Classe 2: Gás tóxico
- Classe 3: Líquidos inflamáveis
- Classe 4: Sólidos inflamáveis
- Classe 5: Substâncias Oxidantes e Peróxidos Orgânicos
- Classe 6: Sustâncias tóxicas e infectantes
- Classe 7: Materiais Radioativos
- Classe 8: Corrosivo
- Classe 9: Substâncias perigosas diversas
Analisando a Tabela 01 e considerando o intervalo de tempo de observação de três horas para cada dia o número de cargas perigosas que trafegam é bastante elevado, visto que em 6 horas, durante os dois dias analisados, foram um total de 77 cargas perigosas trafegando no centro da cidade. Isto torna o município vulnerável, devido à falta de apoio técnico para o controle e intervenção em um possível acidente.
Podemos observar também que os resultados que apresentam maiores valores possuem eixos iguais ou acima de seis, como já foi citado quanto maior o eixo maior a quantidade de produto que esta sendo transportado e por sua vez maiores seriam os riscos, caso ocorresse um acidente com esse tipo de carga.
O fluxo de cargas nos dois dias no período noturno é maior do que no período matutino, isto aumenta os riscos de acidentes, pois no período noturno a visibilidade é reduzida (pois o motorista depende completamente da luz emitida pelos outros veículos), o fluxo de carros é maior neste período.
[1] Centro Universitário Jorge Amado - Professora Mestra do Curso Superior de Tecnologia em Logística.
[2] Universidade Federal da Bahia - Graduanda em Engenharia Sanitária e Ambiental.
[3] Universidade Federal da Bahia - Professor Doutor da Graduação em Engenharia Sanitária e Ambiental.
Tabela 1 - Cargas perigosas: quantidade, tipo de carga, número de eixos e sentido viário.
As cargas das classes três e nove – líquidos inflamáveis e substancia perigosas diversas, respectivamente – apresentam-se com maior frequência na tabela acima, aumentando assim o risco de incêndios, explosões, contaminação da população (estes riscos podem estender - se além do período de sua ocorrência).
Tabela 2 - Cargas comuns: quantidade de caminhões por eixo, sentido viário.
Na Tabela 2 se verificou o fluxo de outras cargas (cereais, algodão, materiais de construção, etc.). Este dado é importante justamente para que se possa ter uma ideia do intenso fluxo de veículos pesados que trafegam pelo centro da cidade, o qual aumenta o risco de acidentes, tornando o município mais vulnerável.
Na Tabela 02 mostra que o fluxo é mais intenso no sentido Brasília – Salvador, este fato explicado através do agronegócio bastante intensificado na região, onde a maior parte dos insumos é escoada para o polo marítimo de Ilhéus – BA e para a região metropolitana de Salvador - BA. Outra vertente que é explicado pelo fator agronegócio é a maior frequência de caminhões com eixos maiores ou iguais a seis, por suportar cargas maiores e escoar a produção de maneira mais rápida.
Mas uma vez observa-se fluxo mais intenso no período noturno, cada vez mais tornando evidente a vulnerabilidade deste município frente ao transporte rodoviário.
Contudo, segundo Kühn, Portella e Guedes (2011), há também a vulnerabilidade da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil existir apenas no papel. Segundo Guedes (2011), o órgão local de defesa civil é de extrema importância, já que os municípios são os locais em que os desastres ocorrem. Diante disto, o Sistema Nacional de Defesa Civil, seguindo os passos de órgãos internacionais como Organização das Nações Unidas - ONU considera o município como o elo mais importante do Sistema Nacional de Defesa Civil.
Cabe registrar que no dia 29 de março de 2012, ocorreu um acidente com uma carga de piche (material tóxico derivado de petróleo) no centro histórico da cidade (Figura 01), região com menor vulnerabilidade já que o fluxo intenso é no centro (BARREIRAS, 2012).
Derramamento de carga perigosa no centro histórico de Barreiras em 29/03/2012 que escorreu para o rio Grande.
Fonte: http://www.jornalnovafronteira.com.br/?p=MConteudo&i=5801
Este acidente mostrou o quão despreparado estão os órgãos competentes para lidar com este tipo de situação, pois a medida tomada foi apenas cobrir com areia o material exposto na rua, sem qualquer proteção dos trabalhadores e nenhuma medida foi tomada com relação à possível contaminação do rio. Cabe ressaltar que este acidente apesar de não ter ocasionado vítimas, acabou por poluir o rio, pois o fato deu-se justamente na área do antigo porto do Rio Grande (BARREIRAS, 2012).
CONCLUSÃO
Este trabalho detectou que o município de Barreiras – BA é vulnerável a um acidente ampliado, já que há um alto fluxo de caminhões com produtos perigosos circulando na área urbana do município, mais precisamente numa área considerada como centro. O município não possui dados, como o controle de entrada e saída de veículos que estão transportando cargas perigosas. Além disso, a Coordenadoria Municipal de Defesa Civil funciona apenas no papel.
No inventário simplificado a respeito do fluxo de cargas perigosas constatou- se que o fluxo das mesmas é bastante elevado, como não se tem esse controle de entrada e saída de veículos transportando essas cargas, o município se torna ainda mais vulnerável.
Fazer a análise das vulnerabilidades na área urbana foi de extrema importância, pois segundo Ligi (2009), conectar-se ao conceito de vulnerabilidade elimina a conotação de fatalidade inevitável. Houve um acidente de pequenas proporções na área do centro histórico, que consideramos como um alerta de que o município é incapaz de lidar com uma situação de acidente ampliado.
Os desastres são perfeitamente evitáveis, sendo assim, sugerimos uma gestão efetiva do risco com precaução, prevenção e segurança. Desta forma, propomos capacidades que possam vir a gerar medidas de resiliência, que é o potencial de enfrentar ou reverter para o equilíbrio antes do desastre, numa situação pós-desastre, tais como: comunicação de riscos, gestão nas infraestruturas, conclusão urgente do anel rodoviário, um plano de contingência e funcionamento da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil de fato.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AIBA. Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia. 2010. Disponível em: . Acesso em: 1 mai 2012.
AUDIÊNCIA discute situação de BRs em Barreiras (BA). Novoeste, Barreiras, 9 mar 2010. Disponível em: . Acesso em: 7 mai 2012.
BARREIRAS. Prefeitura Municipal de Barreiras. Origem. 2009. Disponível em: . Acesso em: 14 mai 2012.
BARREIRAS: caldeira tomba e derrama piche no rio Grande. Jornal Nova Fronteira. Disponível em: . Acesso em: 12 mai 2012.
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Os Transportes Metroferroviários e o Processo Urbano no Rio de Janeiro
André Luiz Bezerra da Silva[1]
A ESTRUTURAÇÃO URBANA FLUMINENSE: BONDES E TRENS
As três últimas décadas do século XIX representaram para o Rio de janeiro um período de forte expansão urbana, sendo esta conduzida em prol da reprodução do capital nacional e internacional. A inauguração do trecho inicial da estrada de Ferro Central do Brasil, em 1858, veio permitir a ocupação de vários pontos do subúrbio carioca. No final da década de 1860 a implantação das linhas de bondes de tração animal veio viabilizar a expansão do tecido urbano para as zonas sul e norte da cidade.
Os trens e os bondes participaram efetivamente do processo de expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro, porém de forma diferenciada. Os trens serviram à pontos da cidade mais distantes do centro, ocupados por um grupo alijado da área central e sem condições financeiras de habitar os locais mais próximos daquela. Os bondes por sua vez viabilizaram o deslocamento das classes mais abastadas para novos pontos de ocupação na cidade, como a zona sul, por exemplo. Além disso esse meio de transporte também atuou de forma efetiva nos chamados subúrbios ferroviários (FERNANDES, 1996). Isso, de certa forma, acaba contradizendo a afirmação de que tais subúrbios foram servidos apenas pelo trem. Exemplo típico desse processo, segundo Fernandes (1996), foi a Companhia Ferro-Carril Vila Isabel, que prolongou seus trilhos até o Engenho Novo em 1875. Os bondes tiveram importante atuação não somente na ocupação de parte da cidade como também sobre o padrão de acumulação do capital (ABREU, 2006). Prova disso foi o grande capital cafeeiro empregado na construção de imóveis nos locais atendido pelo bonde e o capital internacional provendo de infra-estrutura urbana as áreas por onde passavam os bondes. Muitos bairros surgiram como produtos da ação conjunto desses dois tipos de capitais.
Esses dois meios de transportes participaram assim do crescimento urbano da cidade, bem como de sua reprodução, facilitando o estabelecimento de um quadro complementar entre centro e subúrbio. Ferreira dos Santos (in ABREU, 2006, p. 44) esclarece:
Trens e bondes foram sem dúvida, indutores do desenvolvimento urbano do Rio. Mas o caráter de massa desses meios de transporte tem de ser relativizado, como também devem ser relativizados os seus papéis frente ao ambiente urbano. É que trem, bondes e, mais tarde, ônibus (e os sistemas viários correspondentes) só vieram “coisificar” um sistema urbano preexistente, ou pelo menos um sistema de organização do espaço urbano, cujas premissas já estavam prontas em termos de representação ideológica do espaço e que apenas esperavam os meios de concretização. Em outras palavras, o bonde fez a zona sul porque as razões de ocupação seletiva da área já eram “realidade”... Já o trem veio responder a uma necessidade de localização de pessoas de baixa renda e de atividades menos nobres ( indústrias, por exemplo).
Conectando o alto da Tijuca com a Praça Tiradentes, a primeira linha de bonde (tração animal) foi instituída em 1859. No inicio da década de 1860 locomotivas a vapor começaram a substituir os animais, circulando até por volta de 1866, quando entraram em regime de falência. No ano de 1868 foi concedido à Botanical Garden Railroad Company o primeiro trecho de uma linha de bonde a tração animal, cobrindo a área do Centro ao Jardim Botânico. A primeira parte dessa nova linha ia da rua do Ouvidor ao Largo do Machado. Ao atingir o bairro do Jardim Botânico a linha de bonde já servia também ao elegante bairro de Botafogo, moradia de famílias abastadas.
Várias outras empresas do ramo de transportes por bonde surgiram depois da Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico, levando o domínio dos bondes também em direção à zona norte. O transporte esboçava assim o seu papel na estruturação urbana da cidade, servindo de instrumento à reprodução de seus modelos sócio-espaciais.
A companhia de São Cristóvão atendia os bairros do Rio Comprido, Caju, São Cristóvão e Santo Cristo, enquanto os bairros de Vila Isabel, Andaraí e São Francisco Xavier eram atendidos pela Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel. Esta última surgiu a partir de uma concessão do governo em favor do Barão de Drummond, para que este implantasse uma linha de trilhos urbanos partindo do Centro para os bairros do Andaraí, Grajaú, Maracanã, Vila Isabel, Engenho Novo e São Francisco Xavier. Algumas outras linhas ligavam estações ferroviárias com áreas urbanizadas, evidenciando assim um certo sistema de distribuição e a composição inicial de uma rede de transporte, na época já muito importante para a reprodução do espaço urbano.
Neste contexto torna-se fundamental ressaltarmos aqui a ação do Capital Imobiliário a partir dos investimentos no sistema de transportes. Cardoso (1986) nos afirma que todo o Vale do Andaraí, conhecido hoje como o bairro do Grajaú, foi fruto do empreendimento de duas empresas imobiliárias que ali atuaram, dando origem a dois loteamentos. O mais antigo, que foi denominado Grajaú, foi um dos projetos imobiliários da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções, e o mais recente, denominado Vila América, foi criado pela Empresa T. Sá e Companhia (CARDOSO, 1986). Ainda segundo a autora, a atuação da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções não se restringiu apenas ao Grajaú e a produção de moradias. Ela também atuou em vários outros bairros do Rio de Janeiro, ora abrindo ruas e avenidas, ora saneando, loteando e vendendo grandes áreas, ou seja, atuando também como promotora fundiária (CARDOSO, 1986). Era notória assim a articulação existente o Capital Imobiliário e Fundiário e as companhias de transportes sobre trilhos da época, onde estas atuavam no sentido de proporcionar novos padrões de acessibilidade e mobilidade a certos locais da cidade. Cardoso (1986) ainda destaca dois outros fatos importantes que ocorreram no início do século XX: de um lado, houve a eletrificação das linhas de bondes, desestimulando, portanto, o plantio de capim que era feito no Vale do Andaraí para a alimentação dos animais utilizados anteriormente na tração dos carros; de outro, o crescimento da população carioca e a ampliação das camadas médias estimulavam a urbanização de novas áreas, agora dotadas de melhores e maiores padrões de acessibilidade e mobilidade intra-urbana.
Entre as décadas de 1870 e 1890 a cidade do Rio de Janeiro foi marcada por um crescimento em direção aos locais servidos pelos bondes das Companhias de São Cristóvão e do Jardim Botânico, zona norte e zona sul da cidade, respectivamente. Um bom exemplo disso foi a relação entre o bonde e o processo de loteamento em Vila Isabel. Abreu (2006, p. 44) sobre isso nos diz:
A associação bonde/loteamento é bem exemplificada em Vila Isabel, onde o bonde demandava o bairro do mesmo nome, criado em 1873 pela companhia arquitetônica, de propriedade de Drummond, em terrenos outrora pertencentes à família imperial (fazenda do macaco). Esse loteamento se destacava dos demais que se faziam na cidade, por suas ruas largas, a exemplo das cidades européias, dentre os quais se destacava o Boulevard Vinte e Oito de Setembro.
Na vertente sul da cidade o efeito do bonde não era menor. A abertura do túnel velho em Botafogo, em 1892, serviu para que as linhas de bondes a tração animal pudessem alcançar o trecho de Copacabana ao Leblon, antes pontos sem qualquer acessibilidade. As atenções do mercado se voltavam agora para os possíveis usos residenciais do solo nas áreas praianas. Percebe-se aqui uma estreita relação entre transporte e uso do solo. Com a implantação do bonde movido a tração elétrica, em 1892, pela Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico, circulando no trecho entre a praia do Flamengo e a rua Dois de Dezembro, o serviço atinge o leme, graças à abertura pela Ferro-Carril do túnel novo, condicionando definitivamente a expansão urbana da cidade rumo a zona sul.
Os bondes elétricos revolucionaram os costumes da cidade, fazendo com que seus habitantes mais abastados se transferissem progressivamente das acanhadas ruas do centro em direção as praias da zona sul e dos espaços menos densos da zona norte (BARAT, 1975), demonstrando assim um aumento da mobilidade e acessibilidade, dois fatores primordiais para a reprodução dos capitais que comandaram tais processos, onde o setor de transporte foi a peça-chave que viabilizou e concretizou inúmeras ações.
Os bondes assim já contribuíam para uma certa segregação sócio-espacial, atendendo aos ditames de uma série de capitais, os quais buscavam na estruturação do espaço urbano uma maneira eficaz de reproduzir seus lucros, onde o transporte era apenas um fator, mas de elevada importância. A reprodução da força de trabalho também era um dos objetivos buscados com a estruturação do sistema de bondes, tão intenso e significativo como viria a ser o trem mais tarde.
Os trens suburbanos no Rio de Janeiro surgiram pouco tempo depois da chegada das ferrovias no Brasil. A ação dos trens na cidade foi diferenciada do papel dos bondes, embora mantivesse a mesma essência. Enquanto estes serviam às áreas já com um certo grau de urbanização e fragmentação espacial, aqueles adentraram locais com características fortemente rurais, pouco ou quase nada integrados à urbe.
A primeira linha de trens suburbanos, a Dom Pedro II (Central do Brasil), foi instituída em 1858, cujo trecho inicial ia da atual Praça Cristiano Ottoni até Queimados, num total de 48 km (BARAT, 1975). Em seguida, Engenho Novo e Cascadura ganharam suas estações, o mesmo ocorrendo com Nova Iguaçu, na época Maxambomba, todas abertas em 1858. A partir de 1860, conforme se incrementava a mobilidade populacional no sentindo centro-periferia, outras estações foram inauguradas, como Piedade, Riachuelo, Sampaio, Engenho de Dentro, Todos os Santos, São Francisco Xavier e Madureira, está última já em 1890.
Nesse contexto o transporte ferroviário começa a exercer uma forte influência na reprodução do espaço da cidade. Abreu (2006, p. 50) comenta:
A existência de uma linha de subúrbios até Cascadura incentivou de imediato a ocupação do espaço intermediário entre esta estação e o centro. Antigas olarias, curtumes, ou mesmo núcleos rurais, passam então a se transformar em pequenos vilarejos, e atrair pessoas em busca de uma moradia barata, resultando daí uma elevação considerável da demanda por transporte e a conseqüente necessidade de aumentar o número de composições e de estações.
Um novo espaço começava a configurar-se, onde fatores como circulação, mobilidade e acessibilidade ganhavam uma importância não atribuída antes. A efetiva separação dos locais de trabalho e residência tornou o sistema de transporte elemento caro à produção, fazendo dele um aspecto primordial também na reprodução sócio-espacial, garantindo farta mão-de-obra à nascente indústria no Rio de Janeiro e segregando o espaço urbano.
Reflexo disso foi a disponibilização em 1870 de mais dois trens diários para atender a linha de Cascadura, explicitando assim, o papel valioso desempenhado pelo transporte ferroviário no espaço citadino da época. Tal medida, tomada principalmente em favor dos empregadores e outros setores do capital, como por exemplo, os loteamentos, buscou otimizar os horários do transporte com o período de entrada e saída dos locais de trabalho. Esse processo acentuou ainda mais a urbanização dessa faixa da cidade, dando origem a novas estações a partir de 1880, como Rocha, Derby Club, Quintino, Mangueira e Encantado, locais estes que passavam a abrigar uma força de trabalho fundamental para o capital. O ir e vir diariamente nos deslocamentos casa-trabalho-casa, não eram apenas simples movimentos, eram parte de um cotidiano estabelecido para atender ao novo sistema.
O reflexo dessas ações sobre o espaço foi bastante significativo. Abreu (2006, p. 50) destaca:
O processo de ocupação dos subúrbios tomou, a principio, uma forma tipicamente linear, localizando-se as casas ao longo da ferrovia e, com maior concentração, em torno das estações. Aos poucos, entretanto ruas secundárias, perpendiculares à via férrea, foram sendo abertas pelos proprietários de terras ou por pequenas companhias loteadoras, dando início assim a um processo de crescimento radial, que se intensifica cada vez com o passar dos anos.
Noronha Santos, falando sobre Inhaúma, expressou-se assim sobre o assunto:
De 1889 para cá, Inhaúma começou a progredir dia a dia, edificando-se em vários pontos da vasta e populosa freguesia confortáveis prédios, que podem competir com os melhores das freguesias urbanas. Foram retalhados os terrenos das antigas fazendas que ainda existiam. Bem poucos vestígios ficaram daqueles tempos em que o braço escravo era o cooperador valioso da fortuna pública e particular (NORONHA SANTOS, 1965, p.77 ).
Outras ferrovias foram implantadas e igualmente à D. Pedro II influenciaram sobremaneira no crescimento suburbano da cidade. A Estrada de Ferro do Rio do Ouro, onde o tráfego iniciou-se em 1883, tinha em sua concepção original a função de levar para Tinguá os materiais necessários para a construção de uma nova rede de captação de água para a cidade do Rio de Janeiro. Mais tarde o transporte de passageiros também passou a ocorrer na Rio do Ouro, sem, contudo, ter o mesmo vulto que a D. Pedro II. Mesmo assim algumas localidades se desenvolveram no seu eixo, como Inhaúma, Vicente de Carvalho, Irajá, Colégio, Coelho Neto e Pavuna. Foi ao longo dessa antiga linha férrea que no final do século XX estabeleceu-se a linha dois do metrô carioca, com repercussões diferenciadas em alguns bairros, viabilizando novos processos.
Mais significativa que a Estrada de Ferro do Rio do Ouro foi a atuação da Estrada de Ferro da Leolpodina, instituída em abril de 1886 pela Rio de Janeiro Northern Railway Company. Seu trecho inicial, entre São Francisco Xavier e Duque de Caxias, gerou uma grande acessibilidade entre alguns núcleos e o centro da cidade. Entre esses núcleos destacam-se Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil, Penha, Ramos, Olaria e Bonsucesso, os quais alcançaram certo grau de desenvolvimento a partir da ferrovia. Com o novo esquema de circulação novas relações foram estabelecidas entre eles e a área central da cidade. O capital lançava seus tentáculos sobre a região agora servida pelo trem. Mais uma vez Noronha Santos nos serve de base para elucidação do tema:
Quatro trens de subúrbios trafegavam diariamente antes de 1897 na única linha que existia até Meriti (Caxias), com desvios em Bonsucesso, Penha e Parada de Lucas. O primeiro núcleo de habitantes dessa zona que mais acentuadamente prosperou foi Bonsucesso. Esta localidade e as de Ramos, Olaria e Penha, em pouco tempo, entre os anos de 1898 e 1902, tiveram os seus terrenos divididos em lotes, organizando-se simultaneamente empresas para a construção de prédios. Ramos transformou-se em empório comercial e num dos centros de maior atratividade na zona da Leopoldina Railway. (NORONHA SANTOS, 1934, p. 496 e 497).
Por fim, em novembro de 1893, entrou em funcionamento o primeiro trecho da Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil, que no início do século XX receberia o nome de Linha Auxiliar, após ser incorporada à Estrada de Ferro D. Pedro II (Central do Brasil). O trecho inicial ia da Mangueira até Sapopemba (atual Deodoro), viabilizando assim a incorporação de novas áreas residenciais e industriais, seguidas da construção de novas estações, como Del Castilho, Magno e Barros Filho.
[1] Mestre em Geografia Pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realiza estudos sobre sistemas de circulação e processos de reordenamento espacial intra-urbano.
A figura nº 1 nos mostra como ficou estruturada a rede ferroviária no Rio de Janeiro em fins do século XIX, refletindo a atuação do transporte sobre trilhos no crescimento da cidade.
Figura nº 1 – Rede Ferroviária do Rio de Janeiro no Final do Século XIX
Fonte: ABREU, Maurício de Almeida. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro, 2006.
Aureliano Portugal (in ABREU, 2006, p. 53) diz:
A continuidade espacial da cidade já é um fato visível no início do século XX. O Eixo da E. F. Central do Brasil é repleto de moradias, com inúmeras ruas e vielas, cuja atuação do transporte incorporava à cidade.
Para o autor o mesmo aconteceu nos trechos servidos pela E. F. Leolpodina, Linha Auxiliar e Rio do Ouro. Aureliano complementa afirmando que esse espaço suburbano dependia em vários aspectos do centro da cidade, onde a população que trabalhava nessa área central era em sua maioria a mesma que habitava aqueles rincões. No decênio 1886-1896 cerca de 30 milhões de passageiros passaram pela estação Central do Brasil, numero esse que se comparado aos mais 70 milhões de pessoas transportadas pelos bondes em um único ano, não representava muito. Para Noronha Santos, entretanto, isso já era o esboço de uma crise dos transportes no final do século XIX. Sobre isso ele afirma:
A crise do transporte não ficou circunscrita ao bonde. Nos trens de subúrbios constituía, já naquela época, um verdadeiro martírio viajar pela manhã ou a tarde. O povo acotovelava-se nas estações principais, debatendo-se em horas de maior afluência de passageiros, como se fosse um bando de lutadores ofegantes, para alcançar um lugar no trem, onde se apinhava gente de toda casta. (NORONHA SANTOS, 1934, p. 314).
Os subúrbios cariocas achavam-se em pleno crescimento no final do século XIX, porém como uma função quase que unicamente de núcleos dormitórios, o que demonstra o importante papel do transporte como elemento da reprodução das relações sociais de produção, tornando mais eficaz o uso da força de trabalho que agora reside longe do mesmo.
A partir de 1886 a demanda por transporte ferroviário explode. No período entre 1890 e 1910 concretiza-se a ocupação dos subúrbios, o que ocasionou uma nova distribuição populacional, onde o transporte ferroviário atuou como um importante fator de crescimento urbano. Para Barat (1975) os níveis de movimento de passageiros dos trens influenciaram menos no desenvolvimento da cidade, quando comparados ao bonde. Porém, Barat (1975) defende que os trens suburbanos foram decisivos para o crescimento populacional de freguesias mais afastadas do centro, como Inhaúma e Irajá, contribuindo assim para a formação da metrópole fluminense.
Outro aspecto que merece destaque foi a eletrificação da Estrada de Ferro da Central do Brasil, na década de 1930. A partir dessa inovação muitas estações constituíram-se em vários bairros, ligando-os definitivamente à área central e consolidando a região metropolitana.
Percebemos assim que a cidade do Rio de Janeiro teve em grande parte seu crescimento metropolitano orientado pela expansão do transporte público, com destaque para o ferroviário. Com a implantação de um sistema de transporte eficaz e moderno para a época, a cidade atingiu já na década de 1930 um considerado grau de complementaridade e integração, fatores estes imprescindíveis para uma rede de transporte eficaz.
No Rio de Janeiro daquela época bondes e trens constituíam o sistema principal de transporte de massa. Essa concepção de modalidades ligadas funcionalmente, viabilizando a articulação dos deslocamentos cotidianos, influenciou significativamente nos diversos usos do solo estabelecidos no espaço urbano do Rio de Janeiro.
Esse processo ocorreu em uma época na qual começava-se a estruturar uma divisão sócio-espacial na cidade do Rio de Janeiro. Precisamos ter em mente que os transportes ferroviários não foram em si os únicos responsáveis pela ação de segregação do espaço urbano carioca, sendo apenas instrumentos com uma determinada finalidade. Pensando o espaço como um sistema de objetos e ações, conforme definiu Milton Santos (1996), tivemos no Rio de Janeiro uma ação conjunta entre o Estado, o setor de transporte e o capital imobiliário. Nesse sentido compreendemos que esse conjunto de ações e atores refletiam uma concepção político-ideológica da época, caracterizada pela estruturação de um espaço que viabilizasse os paradigmas capitalistas que se estabeleciam no Brasil. O espaço refletia assim sua natureza eminentemente política. Lefebvre (1972, p. 14) aborda a questão da seguinte maneira:
O espaço é um instrumento político intencionalmente manipulado, mesmo se a intenção se dissimula sob as aparências coerentes da figura espacial. É um meio nas mãos de “alguém”, individual ou coletivo, isto é, de um poder (um estudo), de uma classe dominante (a burguesia) ou de um grupo que tanto pode representar a sociedade global quanto ter seus próprios objetivos, como os tecnocratas, por exemplo.
O espaço concebido e produzido no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX estabeleceu representações que na verdade serviam à uma estratégia concebida, projetada e espacializada. Estratégia essa ligada primordialmente a reprodução de um espaço que viabilizasse a reprodução das relações sociais de produção, tendo os transportes como uma de suas peças primordiais. A segregação espacial daí resultante seria falsa e verdadeira ao mesmo tempo. Os pontos do espaço urbano que aparecem separados, na verdade não o são quando vistos no conjunto da (re)produção, pois só a ação em conjunto desses pontos (locais) reproduzem o sistema. A segregação torna-se assim ideológica, aceitando-se a dissociação daquilo que nunca sobreviveria se estivesse separado. Abandona-se, assim, a unidade concreta que constitui a sociedade burguesa e aceita-se a ilusão que é posta em seu lugar (LEFEBVRE, 1972).
A análise do Rio de Janeiro é emblemática. A concessão de linhas de bondes aos empresários tornava-os proprietários das terras a elas adjacentes, ou então conseguiam uma concessão de linha para as terras que já possuíam. Em seguida viriam os loteamentos dirigidos à burguesia. O Estado, como ator provedor de infra-estrutura, investia alto nesses locais, em detrimento de outros pontos já habitados. Copacabana e Ipanema evoluíram a partir desse sistema.
No caso das ferrovias o processo se invertia, mas não se desvinculava das ações que implementavam os bondes. Com um crescimento demográfico em ascensão no fim do século XIX e uma contínua expulsão dos miseráveis para os subúrbios, o trem vem com o objetivo de disponibilizar essa força de trabalho para a indústria. Repetimos que o transporte por si só não explica a estrutura urbana, apenas a compõe, cabendo também uma consideração habitacional e tarifária, de onde advêm os loteamentos e os preços acessíveis das passagens.
A cidade do Rio de Janeiro, a partir de certo ponto de sua evolução metropolitana, começa a sentir os impactos do crescimento demográfico, seguido de dificuldades de ordem física e financeira para implementar novos projetos ou aperfeiçoar sistemas já existentes. Esse quadro gera um diferencial acentuado entre demanda e capacidade, trazendo danos para aspectos como complementaridade e acessibilidade, repercutindo negativamente na própria dinâmica da metrópole. É a partir desse quadro de dificuldades que irão surgir os planos urbanísticos para a cidade, de onde sairá pela primeira vez a idealização de um transporte rápido sobre trilhos: o metrô, proposto pelo Plano Agache na década de 1920.
Uma Relativização da Relação Centro-Periferia na Cidade do Rio de Janeiro: o metrô
O transporte metroviário, proposto inicialmente pelo Plano Agache na década de 1920, concretiza-se finalmente em agosto de 1967, após mais de quarenta anos de embates políticos e econômicos, quando o Consórcio Alemão CCN-HOCTIEF-DECONSULT vence a concorrência e é contratado para realizar o Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica do Metropolitano do Rio de Janeiro. Um ano mais tarde, foi entregue e aprovado o relatório preliminar que propunha duas linhas de metrô para a cidade. A primeira (linha 1) seria entre Ipanema e Tijuca, considerada como prioritária, com 13,2 km de extensão, em traçado subterrâneo, devendo ficar pronta até fins de 1975. Partindo de Ipanema essa linha prioritária ligaria os bairros mais densamente edificados da zona sul ao centro da cidade, terminando na Tijuca, onde promoveria igualmente a ligação com os centros dos bairros altamente povoados da zona norte, os quais se encontravam distantes das linhas ferroviárias do subúrbio. Na estação do metrô da Central haveria um ponto de contato com a estação de trens da Central do Brasil, a mais solicitada das estações ferroviárias suburbanas. Uma segunda linha (linha 2), com cerca de 22 km de extensão, partiria do bairro da Pavuna, seguindo pelo antigo leito da Estrada de Ferro do Rio do Ouro até o Centro da Cidade, para, a partir daí, através de um túnel de aproximadamente 4 km de extensão sob a Baía de Guanabara (pré-metrô 2), chegar até a Cidade de Niterói. Este último trecho entre o centro da cidade e Niterói foi abandonado mais tarde em virtude da opção pela construção da Ponte Rio-Niterói, o que melhor satisfaria alguns setores econômicos, com o mercado imobiliário, por exemplo. Uma terceira linha também chegou a ser planejada, ligando o bairro da Penha a Jacarepaguá. Em meados da década de 1970, após a fusão e criação do Estado do Rio de Janeiro, as linhas 1 e 2 passaram a compor o que se chamou de Rede Prioritária Básica do Metropolitano do Rio de Janeiro. Para os fins deste artigo trataremos apenas de alguns aspectos ligados à linha dois do metrô.
Na cidade do Rio de Janeiro, certas áreas periféricas servidas pela linha dois do metrô despontam a partir da década de 1990 como áreas potenciais para as ações do capital, ressaltando, assim, a importância dos transportes de massa nesse processo, onde a própria relação centro-periferia tende a ser redefinida, visto que agora algumas dessas áreas ditas periféricas tornam-se o lócus de novos investimentos e ações por parte dos capitais. Nesta redefinição centro-periferia, a desconcentração é explícita em locais cada vez mais distantes do centro, onde as vias de transporte tornam-se elementos decisivos na funcionalidade presente na atual relação centro-periferia, ou seja, a desconcentração está diretamente relacionada à fatores como acessibilidade e mobilidade.
O projeto metroviário carioca, de acordo com dados da Companhia do Metropolitano do Rio de Janeiro, foi concebido a partir de duas premissas fundamentais: otimizar a circulação das massas (trabalhadores/consumidores) e disponibilizar novas áreas para as ações do capital, dotadas de um melhor padrão de acessibilidade e mobilidade intra-urbana, relativizando assim os obstáculos impostos pelo binômio distância-tempo e permitindo estabelecer uma frente interna de recomposição dos investimentos e lucros na cidade, com novas áreas cambiáveis para o capital. A implantação do metrô na cidade do Rio de Janeiro ocorreu progressivamente ao longo das décadas de 1980 e 1990 (SILVA, 2008), condizente, assim, com o momento no qual as metrópoles passam a expressar a crise do fordismo e a serem planejadas para a realização da nova economia de acumulação flexível (SILVA, 2011). Dados do estudo de viabilidade realizado em 1968 pelo Consórcio Alemão CCN-HOCTIEF-DECONSULT, mentor do metropolitano carioca, conforme já dito, apontam o transporte metroviário como uma operação altamente desejável, principalmente pelo “efeito urbano estruturante” que daí poderia advir. Nesse processo, teríamos uma espécie de “urbanismo de resultados” (ASCHER, 1995), aproveitando, no caso da linha dois, uma estrutura e configuração espacial já existentes, visíveis em dois aspectos complementares: uma grande via férrea já consolidada, a antiga Rio do Ouro e uma faixa lindeira de considerável densidade populacional, pontuada por bairros caracterizados por uma estrutura herdada do fordismo, com antigas áreas industriais decadentes ou em desuso. Tal conjunção de fatores potencializariam a dinamização e valorização de algumas áreas periféricas da cidade, prevalecendo então a noção de rentabilidade sócio-econômica nas decisões de implantação do metrô. Isto traria uma certa segurança aos gestores e investidores, onde as razões do sucesso ou fracasso do metrô dependiam não apenas dos seus custos, mas sobretudo dos seus “efeitos urbanos futuros”. O transporte metroviário, melhorando a acessibilidade e mobilidade intra-urbana, permite uma modificação na escala de produção da cidade, possibilitando recriar lugares e polarizações, ou a extensão e transformação de espaços já existentes, influenciando sobremaneira na localização de algumas atividades e serviços, ainda que de forma pontual e fragmentada, onde novas estratégias de investimentos urbanos produzem novas necessidades de fluxos, impondo um reordenamento espacial à cidade. Isto, de certa forma, mesmo que ampliando os desequilíbrios intra-urbanos, uma vez que reproduz e requalifica as desigualdades entre espaços equipados e não equipados, renovados e degradados (COMPANS, 1997), enseja um novo olhar e posicionamento ante a relação centro-periferia na cidade. Isto posto, certas áreas da cidade do Rio de Janeiro, a partir de 1995, emergiram como pontos de forte atração de comércio e serviços, além de empreendimentos imobiliários e os Shopping Centers, atribuindo novos sentidos à urbanização (CLARK, 1991) e recolocando a discussão da organização interna das cidades, de modo a alterar a lógica de produção do par dialético centro-periferia (SPOSITO, 1999), possibilitando a requalificação de algumas áreas periféricas urbanas, as quais assumiriam novas configurações e novas lógicas que garantissem a velocidade de reprodução do capital, através de novos usos e ocupações do solo (SILVA, 2011), tornando a questão da centralidade mais complexa (FRÚGOLI JUNIOR, 2006).
No caso específico da linha dois do metropolitano carioca, a ação do capital, ao contrário do que muitos afirmam, não se reduz apenas a buscar sua força de trabalho mais longe e retê-la por mais tempo em suas instituições (diminuição do tempo de viagem; redução dos atrasos dos funcionários e das ausências causadas por engarrafamentos e acidentes; uso econômico dos ganhos de tempo), visto a nova noção de espaço-tempo criada com o transporte metroviário (SILVA, 2008), mas também através de pesados investimentos, principalmente nos setores imobiliário e comercial, os quais se fizeram e se fazem sentir de forma mais incisiva nas áreas constituídas pelos bairros de Del Castilho, Vicente de Carvalho e Vila da Penha (Figura nº 2), a partir de 1995.
Figura nº 2 – Linha Dois do Metrô do Rio de Janeiro
A construção de dois grandes Shoppings Centers (Nova América e Carioca), ambos em áreas refuncionalizadas, antes ocupadas por atividades industriais (aproveitando áreas ociosas e antigas edificações), contíguas às estações metroviárias de Del Castilho e Vicente de Carvalho, respectivamente, dinamizaram aquelas áreas e influenciaram no seu entorno, configurando novos pontos de concentração-acumulação e atratividades, em termos de fluxos, serviços, comércio, lazer e condomínios residenciais, voltados para uma classe média em ascensão, contrastando com o cenário de estagnação em outros trechos da linha dois (SILVA, 2008). Revalorização e desvalorização revelam-se aqui faces do mesmo processo, alimentando-se uma da outra e dando corpo ao sucesso do setor imobiliário (SALGUEIRO, 2005).
Em Del Castilho, o Shopping Nova América, inaugurado em outubro de 1995, localiza-se na confluência do eixo da linha dois do metrô com a via expressa Carlos Lacerda (Linha Amarela), ocupando a edificação da antiga Companhia Nacional de Tecidos Nova América, evidenciando assim o peso de fatores como acessibilidade e mobilidade na escolha de sua localização. O Nova América foi o primeiro empreendimento a ter uma passarela interligando seu espaço interno diretamente ao metrô, o que, após acordo com o Metrô-Rio, ocasionou uma reforma na estação de Del Castilho, criando uma identidade visual semelhante à do shopping, revelando assim o interesse do empreendimento em aumentar ainda mais o número de clientes que ali chegam via metrô, repercutindo num processo de expansão que já dobrou seu tamanho desde a sua inauguração. A primeira ampliação, no ano 2000, levou à criação de um centro empresarial com 153 salas comerciais e à atração do escritório regional da White Martins. A partir de 2011, o Grupo Ancar Ivanhoe, que administra o Shopping Nova América, deu início a um novo processo de expansão para dobrar o tamanho do empreendimento para aproximadamente 120 mil m², numa área adjacente à estação metroviária de Del Castilho. Com um investimento entre R$ 280 e R$ 500 milhões, o plano inclui 128 novas lojas, três edifícios corporativos com capacidade para 21 empresas, três torres comerciais de 15 pavimentos cada e um total de 914 salas, dois hotéis e um mega condomínio-clube residencial. As novas lojas e o condomínio-clube deverão ser entregues em outubro de 2012 e, no primeiro semestre do ano seguinte, será a vez das torres de escritórios, das áreas de negócios e dos hotéis. Segundo o superintendente do Nova América, o shopping recebe hoje cerca de 50 mil pessoas por dia, com previsão de chegar a 80 mil após a conclusão do projeto. Ainda de acordo com a superintendência do shopping, o fato de haver um acesso direto a partir da estação do metrô Nova América/Del Castilho, por onde passam 400 mil pessoas por mês, é um dos grandes pontos viabilizadores do plano de expansão.
Em Vicente de Carvalho a chegada do metrô em 1996 foi determinante para sua dinamização, pois otimizou o afluxo de usuários de bairros da redondeza. Como exemplo de valorização e renovação comercial, podemos citar a inauguração em maio de 2001 do Carioca Shopping, num ponto limite entre os bairros de Vicente de Carvalho e Vila da Penha, na antiga área utilizada pela fábrica da Standard Electric, local que antes estava abandonado e ocupado por população pobre.
A Exemplo do Nova América, o Carioca Shopping também localiza-se num ponto estratégico de confluência de vias: a linha dois do metrô e a importante Avenida Vicente de Carvalho, a qual faz a ligação do bairro com Madureira por um lado e com a Penha por outro, corroborando o peso do par acessibilidade-mobilidade em sua decisão locacional. Após sua inauguração, segundo empresas imobiliárias do local, os imóveis da redondeza tiveram um aumento de preços superior a 30%, e a maioria do comércio local, ocupado até então por botecos e quitandas, foi substituído por lojas de Pet Shop, salões de beleza, restaurantes, faculdades, casas de entretenimentos, cursos de idiomas, redes de serviços diversos e mesmo as lojas que permaneceram, como padarias e bares, sofreram reformas, melhorando seus espaços físicos (Jornal O globo, 2002). Também na confluência da linha dois do metrô com a Avenida Vicente de Carvalho, numa área anexa à estação metroviária, encontra-se sediada desde outubro de 2007 a 1ª filial da Rede de Serviços Atacadão na cidade do Rio de Janeiro (antes hipermercado Carrefour), num espaço outrora ocupado pelo depósito da Mesbla. Ainda na Avenida Vicente de Carvalho, o antigo prédio da Fábrica de Enceradeiras da Lustrene passou por um intenso processo de refuncionalização, abrigando hoje um imenso complexo de serviços da Rede Parmê Restaurantes. A Vila da Penha, bairro limítrofe com Vicente de Carvalho, e servido diretamente pela estação metroviária deste, tem crescido vertiginosamente, recebendo nos últimos anos empreendimentos de importantes construtoras que vêm modificando a paisagem do bairro em meio a edifícios de condomínios que permeiam a região. O bairro é um dos que mais crescem na cidade e possui hoje um grande mercado imobiliário. Dados da Associação dos Dirigentes das Empresas do Mercado Imobiliário (ADEMI-RJ, 2011), revelam que a Vila de Penha ficou entre os cinco bairros com maior número de lançamentos na cidade do Rio de Janeiro em 2010, com 904 novas unidades. Tal tendência é mantida atualmente ante a previsão de entrega para abril de 2012 do mega condomínio-clube Pátio Carioca, em construção num terreno de 20 mil m² ao lado da estação do Metrô de Vicente de Carvalho e do Carioca Shopping, considerado desde já como o “gigante residencial da região”.
Considerações Finais
Analisando a maneira como se deu a expansão do tecido urbano na cidade do Rio de Janeiro, verificamos que esta ocorreu em função principalmente das necessidades de novas atividades produtivas, o que somente seria possível a partir de boas condições de acessibilidade e mobilidade intra-urbanas.
A forma como ocorreu o fenômeno da urbanização na cidade, progressivo e irradiado a partir de um núcleo histórico que se dilatava ou se reproduzia com soluções de continuidade, só foi possível pela introdução de inovações no sistema de transportes ferroviários, que atribuíram novos índices de acessibilidade e mobilidade intra-urbanas. Inovações tecnológicas como o bonde, trem, e mais tarde o metrô, bem como melhorias na rede viária, estão estritamente ligadas à mudanças na economia. Foram assim imposições do econômico, ocasionando expansões do tecido urbano (formas e funções), necessárias para que houvesse local para novas residências e/ou implantação de novas atividades produtivas, o que só seria realizável através da existência de meios que garantissem acessibilidade e mobilidade.
A expansão urbana no Rio de Janeiro ocorreu através de vetores bem nítidos, os quais materializaram-se acompanhando as linhas básicas do sistema de transporte ferroviário urbano. A acessibilidade e mobilidade daí resultantes contribuíram de forma decisiva para a divisão entre segmentos e zonas da cidade, construindo uma base sócio-espacial na qual o sistema de circulação correspondente só veio materializar uma organização do espaço urbano cujas premissas já estavam prontas em termos de representação ideológica, esperando apenas os meios para sua concretização, e também reprodução. O bonde fez a zona sul da cidade porque as razões de ocupação seletiva da área já eram uma realidade à busca de expressão. Quando o bonde deixa de ser necessário é colocado de lado, sem prejuízo para a ocupação que continuou de forma intensa. Quanto ao trem, este veio responder a uma necessidade de localização de pessoas de baixa renda e de atividades menos nobres, como a industrial, por exemplo. Neste caso, como não havia a mesma dinâmica transformadora, os lugares servidos pelo trem não foram ocupados além de determinados limites e o trem como meio de transporte chegou mesmo a involuir, mas não chegou a ser dispensado, sendo revigorado mais tarde.
Trem e bonde no Rio de Janeiro surgiram quase como símbolos opostos, representando assim os dualismos básicos e complementares da estrutura da cidade. O bonde chegou a participar de forma efetiva da dinâmica urbana na zona norte e subúrbios, mas o trem nem mesmo no nível de planejamento chegou à zona sul. O primeiro desapareceu eliminado pelo “progresso” que ajudou a criar e o segundo entrou em decadência por longo tempo, de certa forma pelos mesmos motivos, sem contudo desaparecer. O trem mostrou-se tão eficiente quanto o bonde, só que de uma eficiência voltada para a reprodução da força de trabalho. O trem, quanto mais se caracterizou por longo tempo como a mais barata, a mais de massa e até mesmo a pior opção de transporte do Rio de Janeiro, mais serviu às camadas desfavorecidas economicamente e conferiu o caráter funcional dos bairros aos quais serviu e serve de acesso, atuando assim de forma expressiva na reprodução das relações sócio-espaciais urbanas capitalistas.
No caso do transporte metroviário, processo mais recente, o exemplo da linha dois aqui apresentado, ainda que não esgote outros espaços e eixos de valorização na cidade, revela uma dinâmica espacial urbana relativamente recente na capital fluminense, razão pela qual considero-o tipologicamente significativo para a compreensão comparativa de diferentes expressões de centralidade, não autorizando mais que se trate a estrutura espacial da cidade com o esquema simplificado centro-periferia, permitindo, ainda que muito prematuramente, enxergar uma participação velada e funcional do metrô na atualização do fenômeno urbano na cidade do Rio de Janeiro, viabilizando a requalificação e valorização de algumas áreas periféricas urbanas. Como resultado de um processo, está claro que essas novas áreas requalificadas não estão necessariamente no centro geográfico da cidade, sendo necessário deduzi-las e defini-las a partir de uma análise da dinâmica sócio-econômica da cidade. No domínio da construção do urbano surgem novas formas para viabilizar a reprodução do capital (SALGUEIRO, 2005), requalificando áreas periféricas da cidade articuladas a uma estrutura de transporte metropolitano, através de novos serviços, centros comerciais (shoppings), condomínios residenciais, Instituições de ensino superior, pólos gastronômicos, centros de cultura e lazer, polarizando assim novas centralidades funcionais e pontos de considerável valorização fundiária, estabelecendo um novo contexto na relação centro-periferia na cidade. Na lógica da relação centro-periferia, as novas áreas dinâmicas questionam a antiga posição subalterna da periferia, ou do próprio termo periferia, onde, considerando uma relação hierárquica entre os lugares intra-urbanos, a periferia estaria subordinada ao centro. Entretanto, diante desses fenômenos urbanos recentes no Rio de Janeiro, o que seria a periferia uma vez que existem áreas servidas pelo metrô e distantes do centro que passaram e ainda passam por um processo de requalificação e valorização? Tais questões ensejam a continuidade da presente análise.
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