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Chão Urbano

Chão Urbano ANO XI – N° 1 JANEIRO / FEVEREIRO 2011

01/01/2011

Integra:

ANO XI N 1 JANEIRO / FEVEREIRO 2011


Editor

Mauro Kleiman


Publicação On-line

Bimestral

 
Comitê Editorial

• Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

• Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional)

• Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. em Planejamento Urbano e Regional)

• Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)

• Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)

• Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

• Hugo Pinto (Doutorando em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

 
IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS

LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

 
Coordenador Mauro Kleiman 

 

Equipe

Aline Alves Barbosa da Silva, Priscylla Conceição Guerreiro dos Santos, Juliana Rocha Amaral

 

Pesquisadores associados

Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva 

 

Artigos


Editorial - A Cidade para Além da Cidade: (Outras) Dimensões da Governação Urbana

Hugo Pinto


"Porque o sol, quando nasce, é para todos!" 

O Orçamento Participativo como instrumento de Governação da cidade: um olhar a partir de Sevilha e de Belo Horizonte 

Ana Raquel Matos

 

Classes sociais e cidadania: uma perspetiva sobre a participação política na Área Metropolitana de Lisboa

Susana Cabaço e Tiago Carvalho

 

A emergência da cidade-providência enquanto conquista da emancipação social urbana

Vanessa Duarte de Sousa

 

 

 

 

 

Editorial

A Cidade para Além da Cidade (Outras Dimensões da Governanção Urbana)


A cidade tem sido muito mais que um simples lugar físico de suporte à estruturação da sociedade humana contemporânea. O início da História está intimamente associado à génese da cidade. É a vontade do indivíduo se associar, interagir com os outros, reduzir distâncias sabendo que vai beneficiar mas que também vai estar rodeado de desafios que emergem da proximidade, aglomeração e dos congestionamentos. É a força da natureza sistémica da cidade, das suas redes e solidariedades que a fortalece enquanto um lugar simbólico de vivência coletiva. 

O presente número do Chão Urbano sublinha, na minha visão, a transformação recente da revista em cidade. Uma cidade em que o esforço do Professor Mauro Kleiman se associou ao de outros especialistas. Da vontade de aprender múltiplas áreas e saberes e de colaborar em diferentes espaços e ideias surge um Chão Urbano relançado, mais aberto à participação e à opinião diversificada. Este número foca o tema da “Dimensões da Governação na Cidade”. É o primeiro de três números já preparados para 2011 que derivam desta visão mais abrangente do Chão Urbano. Abrangente em termos dialógicos. Apesar de crucial, não interessa apenas discutir visões centradas na governação da cidade em sentido estrito, mas múltiplas dimensões e escalas, como a importância da região ou as interrelações com o mundo rural. Abrangente em termos territoriais. A ambição da revista não se limita a discutir os múltiplos aspetos do muito rico caso do desenvolvimento urbano brasileiro, mas sim a verificar exemplos de qualquer ponto do globo com o qual se possa aprender e beneficiar.

O número reúne três artigos de quatro jovens investigadores portugueses que têm focado a sua atenção em aspetos particulares da dimensão urbana da vida coletiva.

O artigo “A emergência da cidade-providência enquanto conquista da emancipação social urbana”, de Vanessa Sousa, explora a ligação entre a cidade, o bem-estar social e o papel do Estado. Sousa debate o funcionamento das relações na cidade para uma conceção de cidade-providência sublinhando as tensões que podem emergir da replicação no Sul das práticas de desenvolvimento urbano do Norte. A cidade é simultaneamente palco de relações sociais fragilizadas e de potencialidades derivadas do seu multiculturalismo e multiespacialidade.

O texto “Porque o sol, quando nasce, é para todos! O Orçamento Participativo como instrumento de Governação da cidade: um olhar a partir de Sevilha e de Belo Horizonte” de Ana Raquel Matos, foca o orçamento participativo como ferramenta participatória para a governação da cidade. Os casos de Sevilha, cidade espanhola da região de Andaluzia no Sul de Espanha, e Belo Horizonte, em Minas Gerais no Brasil, ilustram como este instrumento é uma boa prática para a democratização e participação ao criar novos espaços de negociação coletivas em temas de relevância para toda a cidade.

Susana Cabaço e Tiago Carvalho com o artigo “Classes sociais e cidadania: uma perspetiva sobre a participação política na Área Metropolitana de Lisboa” evidenciam para a capital portuguesa a relação entre classes sociais e cidadania.  As conclusões apontam que a mobilização política e a participação estão relacionadas com a classe social, algo que contraria argumentos que defendem a redução da importância de classe social enquanto conceito analítico e expressão de um contexto sócio-economico particular.

Finalmente, uma nota pessoal. O Chão Urbano tem um caráter que ultrapassa o seu domínio temático e esse caráter, da minha perspetiva, assenta na valorização da Língua Portuguesa. Esta revista tem a intenção de aproximar especialistas e interessados nesta área de todo o mundo, pelo que as contribuições serão sempre efetuadas em Português que respeite o recente acordo ortográfico. A Língua Portuguesa é uma oportunidade partilhada que os investigadores brasileiros, portugueses, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, timorenses, macaenses entre outros, têm de explorar positivamente no futuro próximo. Tenho também de deixar nesta oportunidade dois agradecimentos. O primeiro aos investigadores que aceitaram este desafio de prepararem um texto para o Chão Urbano para este conjunto de números temáticos. Será o interesse dos interessados na temática urbana e regional e o contributo da sua visão que pode tornar esta publicação mais sólida. Um agradecimento pessoal ao Professor Mauro Kleiman. Como um jovem investigador português é com satisfação que aceitei o convite de colaborar no Comité Editorial do Chão Urbano. Colaboração que espero que seja frutuosa com mais números que venham a contar com a colaboração de investigadores de todo o mundo, mas em particular, atraindo a atenção dos portugueses para este fórum de discussão. 

 

Hugo Pinto

16 de Janeiro de 2011


 

 

 

 

"Porque o sol, quando nasce, é para todos!" 

O Orçamento Participativo como instrumento de Governação da cidade: um olhar a partir de Sevilha e de Belo Horizonte*  

Ana Raquel Matos[0]

 

 

1. Introdução


Ao longo das últimas décadas, a participação cidadã tem vindo a tornar-se numa expressão bastante trivial na linguagem corrente, usada por muitos e nos mais variados contextos. Ela enquadra, desde logo, possibilidades consensuais diversas de ativar experiências inovadoras no domínio da governação, que assumem o cidadão, do ponto de vista deliberativo, como ator privilegiado. Tomando a democracia como pano de fundo, o argumento incide na mobilização para o jogo da interação civil e política em novas instituições participativas (Avritzer, 2009; Cabannes, 2007; Murta e Souki, 2008, Santos, 2006). 

Indissociável dessas novas práticas de participação, surgem também conceitos como capacitação cidadã e controlo social, conceitos esses que se têm constituído enquanto corolários da ação, em função da capacidade dessas novas experimentações coletivas se entranharem ou se incorporarem nos diferentes projetos políticos.

O Orçamento Participativo (OP) é um exemplo desse tipo de experimentações, cuja matriz tem sido importada a partir da realidade sul-americana, sobretudo do Brasil, para novas e distantes realidades, moldando-se e adaptando-se um pouco pelo mundo fora.[1]

Falar do OP é falar de um dos instrumentos mais disseminados a partir do Sul e de um dos melhores exemplos de sucesso no que toca à governação urbana, capaz de transformar espaços fragmentados em verdadeiras unidades territoriais, coesas e funcionais do ponto de vista da participação e da diversidade (Cabannes, 2007). Trata-se de uma inovação institucional em expansão que visa democratizar a gestão pública e ampliar a cidadania (Azevedo e Gomes, 2008; Santos, 2002).

Partindo da diversidade de modelos e de experiências de OP existentes na atualidade, torna-se difícil encontrar uma definição única e abrangente. Não obstante, Boaventura de Sousa Santos encerra o processo numa estrutura de participação dos cidadãos na tomada de decisão sobre os investimentos públicos municipais que assenta em três princípios fundamentais:

1) Todos os cidadãos têm direito a participar, sendo que as organizações comunitárias não detêm nesse processo um estatuto ou prerrogativa especiais; 2) A articulação com a democracia representativa, que confere aos participantes um papel essencial na definição das regras do processo; 3) A definição das prioridades de investimento público processada de acordo com critérios técnicos, financeiros e outros, de caráter mais geral, que se associam às necessidades sentidas pelas pessoas (Santos, 2002: 25 e 26). 

Enquanto ferramenta política, o OP inscreve-se no âmbito das práticas da democracia participativa ou direta, instrumento auxiliar da democracia representativa que pretende, para além de consagrar o princípio privilegiado da participação cidadã, nos moldes em que tem vindo a ser implementada, funcionar como bloqueio a formas obscuras e centralizadas de decisão pública, de promoção da transparência e de co-gestão das decisões mais prementes que afetam a vida das comunidades que a adotam como prática (Azevedo e Gomes, 2008).

Mais concretamente, o OP constitui uma nova forma de governação assente no exercício da participação direta, através da ampla consulta dos cidadãos ou de processos de deliberação vinculativos decorrentes da reflexão e do debate conjunto acerca dos problemas da vida das pessoas em comunidade e do território que habitam, uma forma de experimentação de acesso ao poder e à distribuição de bens públicos (Avritzer, 2009; Dias, 2008). Neste âmbito, o OP protagoniza um projeto político assente na co-responsabilização entre políticos eleitos, a esfera técnico-administrativa e os cidadãos e cidadãs, numa lógica alternativa ao que certos autores designam por dupla-delegação, legitimada pela democracia representativa (Callon, Lascoumes e Barthe, 2001), contribuindo assim para a melhoria da governação local e para o progresso económico e político (Gastil, 2008).

Pela aposta na participação individual dos diferentes atores de um determinado território, geralmente os que aí residem ou são eleitores, o OP tem vindo a promover a inclusão de camadas sociais que em regra permaneciam excluídas ou sub-representadas nos centros de decisão e que vêem no OP, enquanto forma descentralizada de governar, uma oportunidade de aproximação à esfera de decisão política, capaz de influenciar as opções que dela emanam (Boschi, 2005; Cabannes, 2007; Azevedo e Gomes, 2008; Santos, 2002). Para além da capacitação de cada um dos participantes no processo, esta ferramenta política reveste-se de um inigualável efeito de demonstração da capacidade de colocar em marcha o pleno exercício dos direitos de cidadania de cada um. Trata-se, portanto, de um processo de capacitação da pessoa no seu papel de cidadão/ã, que se concretiza a partir da sua inclusão e participação plena nas diferentes fases do processo de gestão e planejamento urbano que o OP encerra.

A produção científica que acompanha o surgimento, implementação e consolidação do OP ao longo das duas últimas décadas é vasta, razão pela qual este trabalho tão somente ambiciona elucidar, a partir de um balanço exploratório entre duas experiências concretas – uma na cidade de Sevilha, em Espanha, e outra em Belo Horizonte, no Brasil – sobre as possibilidades de operacionalizar a participação cidadã e analisar como diferentes conhecimentos se podem relacionar ao abrigo do OP e, dessa forma, influir em diferentes modelos de governação da cidade.[2] 

 

2. Dois processos, duas histórias, mas sempre a mesma orientação: a participação cidadã

 

O OP constitui, sem dúvida, um contributo muito amplo para a gênese ou fortalecimento de um espaço de diálogo no âmbito da participação dos cidadãos na vida da cidade; na constituição de um espaço público heterogêneo de decisão coletiva e, por último; de afirmação do direito a exercer direitos. No entanto, e apesar da gênese do processo assentar na participação cidadã, são diferenciados os modelos de OP em funcionamento no mundo, distinguindo-se pelos elementos mais diversos em torno dos quais se organiza a participação, o âmbito de decisão e até o grau vinculativo dos resultados alcançados. Talvez por essa razão, o exercício comparativo de modelos que aqui se propõe, se revele vantajoso, ao permitir aprofundar, sob aspetos específicos, duas experiências distintas.

A escolha dos processos de Belo Horizonte e de Sevilha prende-se, sobretudo, com a possibilidade de comparar dois modelos com início temporal e localização distintas, pelo que importa desde já começar por contextualizar historicamente cada um dos processos, descrevendo os principais moldes em que assenta o seu funcionamento.

O OP de Sevilha, fortemente inspirado no modelo do orçamento participativo de Porto Alegre[3], conta com 7 anos de existência, sendo o maior processo de democracia participativa registado em cidades européias.

O arranque do processo remonta a Outubro de 2003, mais concretamente às “jornadas abertas” realizadas na cidade, para as quais foi convidado o movimento cidadão organizado e os setores coletivos atuantes neste meio urbano. Destas jornadas resultou o Pacto de Progresso por Sevilha (estabelecido entre a Esquerda Unida e o Governo do Partido Socialista Operário Espanhol), que assumiu a vontade política de ativar o OP no ano seguinte, o que veio a concretizar-se, tendo a gestão do processo ficado a cargo do pelouro camarário designado por Participação Cidadã. A sua implementação ficou, assim, a dever-se a um acordo político que criou os alicerces para o envolvimento e mobilização da população, convidada a participar nas decisões sobre o investimento municipal.

Ancorado na lógica da promoção da gestão partilhada de recursos públicos entre eleitos e eleitores, o OP de Sevilha apresenta os seguintes objetivos específicos: a) Transformar a condição dos cidadãos residentes, de simples observadores em protagonistas ativos da vida cotidiana da cidade; b) Procurar com cada um dos seus habitantes soluções possíveis para as reais necessidades da população local; c) Apostar no reforço da responsabilidade dos cidadãos, fazendo-os sentir parte importante da política do município; d) Promover a transparência nas decisões e estimular a aprendizagem, entre todos, sobre o funcionamento do poder local; e) Criar espaços de diálogo e de tomada de decisão entre cidadãos, políticos e técnicos, que resulte numa cidade mais justa e igualitária.

Territorialmente, o processo de Sevilha organiza-se em 3 níveis: Zonas; Distritos e Cidade. A cidade divide-se em 21 zonas, organizadas a partir de Centros Cívicos. Várias zonas podem compor os 11 distritos, em função da mobilização promovida pelos grupos locais que as dinamizam, podendo estes multiplicar-se, caso a participação o justifique, em cada ciclo de implementação do processo.

A grande peculiaridade apresentada pelo OP de Sevilha prende-se com a existência de Grupos Motores. Estes são constituídos por cidadãos voluntários a quem compete dinamizar a população das diferentes zonas para a participação no processo. Em cada uma podem existir vários grupos motores responsáveis pela dinamização do seu bairro, os quais garantem, por exemplo, que todos têm acesso à informação relevante sobre o processo para que saibam quando e como participar nos momentos de debate e de decisão.

Para além disso, o processo conta com uma equipa técnica, multidisciplinar, a quem compete a coordenação do processo no município. Embora esta equipa articule com o executivo, apresenta uma estrutura e funcionamento que são, de certa forma, autônomos em relação a essa instância de poder local. E funciona ainda como elo de ligação entre os políticos e técnicos das distintas áreas da estrutura orgânica municipal, bem como entre o município e seus agentes políticos e os cidadãos/ãs, promovendo entre eles momentos de aproximação e diálogo.

Em Sevilha, os espaços consagrados para a participação cidadã são os fóruns e as assembléias. Os fóruns destinam-se a incentivar o debate sobre as necessidades sentidas e as propostas de cada zona. Mais concretamente, servem para apresentar e chegar a consenso quanto às prioridades de investimento a apresentar pelos cidadãos em cada zona e obter informação sobre a sua viabilidade técnica. Existem, ainda, as Assembléias de Zona, espaços que servem de base à participação universal e direta de toda a população no OP, organizada numa base territorial. Quaisquer decisões que se venham a tomar têm como espaço apropriado essas assembléias, sendo que o consenso em torno das propostas apresentadas e decididas pela população assume aí caráter vinculativo.

O processo de Belo Horizonte apresenta uma trajetória mais duradoura, quando comparado com o de Sevilha.

Surgiu em 1993, aquando da subida ao poder do Governo Democrático Popular, liderado pelo Partido dos Trabalhadores, tendo sido o OP um dos seus mais fortes compromissos eleitorais. Dada a constrangedora situação financeira em que a autarquia estava mergulhada na altura, encarar a possibilidade de pôr em marcha o OP foi considerado verdadeiro ato de coragem política (Gomes, 2004: 5). Este foi, no entanto, um esforço coroado de êxito, já que o OP de Belo Horizonte é hoje internacionalmente referenciado como um dos melhores modelos de boas práticas de gestão democrática.

O OP de Belo Horizonte conta já com cerca de 17 anos de existência continuada, sem ter sofrido rupturas significativas no seu conteúdo e na forma como tem vindo a ser conduzido, muito embora se apresente em permanente readaptação às circunstâncias urbanas/populacionais, numa lógica de permanente interação e adaptação à diversidade que as sociedades comportam.

Tal como outras experiências similares radicadas na América-Latina, o processo de Belo Horizonte surgiu da necessidade de uma maior aproximação dos cidadãos às instâncias de decisão política local, assim respondendo à exigência de maior participação enquanto forma de satisfazer as suas reais e mais prementes necessidades.

No município de Belo Horizonte o processo é coordenado pela Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Informação, sendo um processo que se desenvolve em perfeita harmonia e articulação concertada com o leque de políticas disponíveis e coordenadas a partir das instâncias do poder local (Cabannes, 2007).

Para efeitos de implementação do OP na cidade foram criadas 9 regiões administrativas, cada uma delas internamente organizada em sub-regiões e estas em Unidades de Planejamento. Estas últimas são consideradas espaços territoriais privilegiados na auscultação de necessidades. Partindo dessa base territorial, as regras de aplicação do processo definem que 50% do orçamento deve ser equitativamente distribuído pelas 9 regiões e os restantes 50% distribuídos com base na aplicação do Índice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU), que determina que quanto mais numerosa a população e menor a renda da unidade geográfica considerada, maior será a fatia orçamental a atribuir.[4] Complementarmente, para efeitos de redistribuição de recursos é ainda considerado o mapa de exclusão da cidade, ele próprio elaborado a partir do IQVU.

A cada dois anos reafirma-se que a prioridade deve ser concedida a áreas de maior vulnerabilidade e com maior contingente populacional, dando-se início a mais um processo que se desenrola em fases intimamente encadeadas.

Cada ciclo de OP respeita algumas etapas, como a assim designada “primeira rodada de assembléias”, onde se convoca a população a participar e na qual se explicam as distintas fases que compõem o processo, para além de se prestar informação sobre a verba disponível que enquadrará a apresentação e execução das propostas a selecionar. Numa “segunda rodada de assembléias”, por sub-região (dividindo cada uma das 9 regionais em sub-regiões que englobam vários bairros), a prefeitura apresenta a verba disponível para cada uma delas. De seguida, a Secretaria da Administração Regional Municipal procede à triagem das propostas da população em conformidade com o seu enquadramento nas diretrizes técnicas estabelecidas. Nesta fase organizam-se ainda caravanas de prioridades com o intuito de visitar os locais das propostas pré-selecionadas e para que melhor se conheça a realidade envolvente de cada empreendimento.[5]

A organização de fóruns regionais constitui a última etapa deliberativa do OP. Nestes encontros, a prefeitura apresenta uma planificação com os custos para cada empreendimento e é ainda realizada uma plenária de delegados que selecionam 14 dos 25 empreendimentos pré-selecionados para cada regional, sendo igualmente eleitos os representantes da COMFORÇA.[6]

Complementarmente à matriz regional do processo, Belo Horizonte tem desencadeado novos processos, numa lógica de arranjos participativos (Azevedo e Gomes, 2008), autônomos ou complementares à matriz regional. Esse é o caso do OP de habitação, autonomizado em 1996 e, mais recentemente, do OP digital. Este último constitui uma iniciativa pioneira que complementa o processo regional, no qual podem participar – através da visualização das obras a construir e por voto eletrónico – todos os cidadãos maiores de 16 anos, eleitores em Belo Horizonte.

Aquando do arranque deste processo, a prefeitura disponibilizou cerca de 180 pontos de acesso à Internet, distribuídos equitativamente pelas regionais, como forma a facilitar a votação. Embora esta iniciativa tenha vindo a ser reconhecida como forma alternativa de participação, sobretudo das camadas mais jovens, da classe média e enquanto estratégia de inclusão digital a partir da participação (Azevedo e Gomes, 2008), a sua implementação tem desencadeado uma crítica recorrente, relativa ao comprometimento da discussão pública, sobretudo da discussão presencial, considerada uma das peças fundamentais deste tipo de processos.

 

3. Entre Sevilha e Belo Horizonte, como fica a participação?

 

Numa primeira abordagem comparativa entre os dois processos, a partir das suas principais caraterísticas e no modo como funcionam, deve referir-se que enquanto o OP de Sevilha permite à população deliberar não só sobre a edificação/restauro de infra-estruturas urbanas, bem como sobre o investimento em atividades culturais e recreativas, em Belo Horizonte essa oportunidade incide apenas na execução de obras urbanísticas, integradas numa estratégia de planejamento urbano. Este traço confere, desde logo, uma nota distintiva na forma como ambos os municípios encaram o potencial participativo da esfera cidadã na gestão da vida urbana.

Sendo a participação o alicerce mais sólido deste tipo de processos, torna-se ainda possível avaliar a forma como têm sido encaradas, preconizadas e implementadas as formas de participação e as consequências que podem daí advir para a qualidade de vida dos centros urbanos.

No caso de Sevilha, a universalidade do direito a participar é chave do processo, sendo este princípio encarado como um pressuposto fundamental ao seu bom funcionamento, ou seja, no respeito da lógica: uma pessoa, um voto. Dessa forma, garante-se que todos os residentes na cidade podem e devem participar, não só acompanhando as discussões sobre o investimento, mas igualmente elaborando propostas e votando na sua prioridade em termos de execução. No processo europeu, a participação rompe com algumas barreiras que usualmente se interpõem à participação, como o fato de não ser necessário ser-se eleitor, bastando residir na cidade, contrariamente ao que acontece em Belo Horizonte, onde a participação implica essa condição. Desta forma, qualquer cidadão imigrante residente em Sevilha, e mesmo não estando legalizado, é considerado elegível para votar e apresentar propostas, pelo que “no hace falta ter los famosos papeles para ser legal en el Estado español” (Recio, 2007).[7]

Por outro lado, na experiência de Sevilha a participação também não se vê constrangida pelo fator idade, ao contrário do que sucede em Belo Horizonte, onde só podem votar eleitores com 16 ou mais anos. No caso do OP europeu, a participação infanto-juvenil é devidamente enquadrada no processo, a partir de regras próprias definidas com o intuito de servir os particulares interesses dessas faixas etárias. Desta forma, foram criadas condições para que as camadas populacionais mais novas – crianças e jovens (com 3 ou mais anos) – pudessem integrar ativamente o processo, numa assumida estratégia de promoção da aprendizagem para a cidadania através do seu envolvimento direto na formulação de propostas de investimento capazes de responder às suas expetativas e necessidades.[8]

Ao abrigo desse processo, mais dilatado em termos etários, defende-se que se “aprende a participar participando”, sem atender a grandes regras, senão as que assentam na criação de canais de comunicação capazes de auscultar os sonhos e aspirações dos mais novos que, sendo geralmente considerados utópicos, o OP procura habilmente transformar em “utopias desejáveis, realizáveis e possíveis”.

Belo Horizonte, por seu lado, tem vindo a apostar na promoção de outras estratégias de incentivo à participação, ao definir, por exemplo, que a distribuição orçamental prevista só seja garantida mediante mínimos pré-definidos de participação, baseados no número de cidadãos que comparecem na segunda rodada de assembléias, o que implica que um registo de presenças abaixo da quota mínima estabelecida gera nessa unidade territorial uma diminuição proporcional dos recursos que lhe estavam inicialmente atribuídos. Nessa eventualidade, os recursos liberados pelo incumprimento dessas quotas são proporcionalmente distribuídos pelas demais regiões que as garantam. Esta situação pode ser interpretada, por um lado, como uma forma de recompensar as zonas onde mais cidadãos se envolvem no processo, mas também pode ser encarada como uma forma de “forçar” à sua participação, questionando a importância da participação individual no processo. Para além disso, o número de pessoas que participa não tem de estar necessariamente associado à qualidade das discussões nem serve de indicador sobre a participação e o envolvimento efetivo dos cidadãos no processo.  Mas no caso de Belo Horizonte, basta que um indivíduo dinâmico e empenhado pelas causas do território que habita integre um coletivo mais desmobilizado para que o seu esforço resulte em vão. Pelo contrário, são também beneficiados os que não se interessam pelo processo, mas que pertencem a coletivos organizados e dinâmicos. Privilegiando a participação coletiva, estas situações tornam-se, de alguma maneira, contingenciais se considerarmos que os benefícios são de todos.

À partida, a coação para participar não deveria ser legitimada enquanto regra decorrente de uma prática política assumidamente democrática, na medida em que pode conduzir o processo para situações limite que certos autores designam de “tirania da participação” (Cooke e Kothari, 2001).

Tanto em Sevilha como em Belo Horizonte, a tónica da participação surge fortemente associada ao combate das desigualdades através da aplicação de mecanismos distintos, que conduzem contudo, em ambos os casos, ao que se designa neste domínio como inversão de prioridades de investimento (Avritzer, 2009; Azevedo e Gomes, 2008; Cabannes, 2007, Dias, 2008), estratégia que se consubstancia na máxima de planear o espaço urbano por forma a ajudar quem mais precisa.

No primeiro caso, trata-se de uma sintonia com o princípio de Justiça Social, consagrado na Constituição Espanhola. O OP assume esse combate enquanto princípio orientador da sua ação ao possibilitar, por exemplo, formas alternativas de votar as propostas, envolvendo os que tiverem dificuldade em fazê-lo por escrito. No mesmo sentido, também a promoção da igualdade de gênero é uma bandeira deste processo, o que se constata no documento que subscreve as regras do processo (autorreglamento) e que define como prioritária a salvaguarda da igualdade de gênero, defendendo por exemplo a paridade na composição dos órgãos de representação popular, como é o caso da eleição dos delegados/as.[9]

O processo de Belo Horizonte tem por sua vez como expoente máximo o combate às desigualdades. As caravanas de prioridades, verdadeiras visitas aos locais elencados para construção de infra-estruturas, procuram aferir in loco as prioridades de investimento, podendo esta visita dos delegados do OP resultar na inversão dos resultados alcançados por votação.

Ainda em Sevilha, a inclusão da participação infanto-juvenil pode ser entendida como uma forma de impugnar desigualdades, sobretudo quanto aos mais novos, pois usualmente não lhes é dada oportunidade para participar em processos desta natureza.

Mas são vários os critérios possíveis e passíveis de pôr em prática, no processo espanhol, o combate às desigualdades entre os cidadãos. Não entrando neste texto em detalhe, refira-se apenas o exemplo da constituição de índices estatísticos susceptíveis de traduzir uma majoração de propostas apresentadas a votação, como no caso da criação de infra-estruturas ou de reforço de actividades culturais e recreativas que favoreçam as mulheres, os idosos, pessoas com capacidades motoras e mentais diminuídas, minorias sexuais, etc., e que são positivamente discriminadas no âmbito do OP através da aplicação desses índices estatísticos.

Já no caso de Belo Horizonte, o combate às desigualdades a partir da participação assenta privilegiadamente na dimensão territorial. Este princípio traduz-se, por exemplo, na construção de pelo menos uma obra por cada sub-região no OP regional e de uma obra por região no OP digital. Além disso, o combate à desigualdade deriva ainda da aplicação do já referido IQVU, do mapa da exclusão social da região e do Plano Global Específico, ferramentas de avaliação da desigualdade sócio-económica da região que servem de base para a definição de áreas de intervenção prioritárias coincidentes, aliás, com as zonas de maior risco social e com mais elevados índices de pobreza.

Independentemente do modelo ou das formas mais particulares como se pensa e organiza a participação no âmbito do OP, há dois aspetos que aqui se devem ressalvar: a) não importa tanto que motivos serve, nem sequer como se preconiza: a participação será eternamente o leitmotiv deste tipo de processo, o seu órgão vital; b) não obstante, dependendo de como os resultados obtidos pela participação forem acolhidos pelas instâncias político administrativas responsáveis pelo processo, através de referências para uma possível intervenção resultantes de processos consultivos ou, mais comprometidamente, através de decisões vinculativas, a participação dos cidadãos através do OP tem vindo a crescer como prioridade nas agendas de governação local.

Não podemos, neste contexto, ignorar que a deliberação, enquanto ato de reflexão ponderada sobre uma dada questão, que avalia as potencialidades e fraquezas de soluções alternativas para um problema, se reveste de uma capacidade de alcançar uma decisão não só com base em fatos, mas também em valores, emoções e necessidades e não apenas em considerações de ordem política (Gastil, 2008: 301). Ou seja, independentemente da participação consultiva ou vinculativa no âmbito do OP, o processo passou a determinar novos atores na gestão e apropriação do espaço e da vida urbana.

 

4. Que conhecimento(s) contam na governação da cidade através do OP?

 

Considerando o pressuposto da participação alargada à esfera cidadã nos processos em análise, surge, desde logo, a questão de perceber como se configura a relação entre os diferentes conhecimentos que encenam o planeamento e a gestão dos espaços urbanos.

Num patamar político administrativo como o OP, diferentes conhecimentos coalescem, pelo que se torna pertinente analisar de que forma esta ferramenta de governação do espaço urbano processa o resultado da combinação entre o acervo de conhecimento técnico especializado, conhecimento político e conhecimento leigo.

Qualquer processo desta natureza mostra-se capaz de promover novas possibilidades de produção, mobilização e diálogo entre o conhecimento político-administrativo e o conhecimento cotidiano sobre a cidade. Não obstante, a participação requer sentido, por forma a perceber, através dos seus mecanismos, até onde se pode levar a inclusão do saber leigo que, por via do OP, ingressa nos processos de decisão sobre o investimento público. Para tal, é necessário atentar na forma como cada um dos processos em análise empreende esforços no sentido da capacitação implícita ao exercício da co-responsabilização e da aprendizagem mútua entre população, políticos e técnicos, capacitação essa que advém da experiência individual de cada cidadão nas diferentes fases do processo e nas quais aprende a fazer, fazendo.

Importa, antes de mais, reconhecer que, embora todos os envolvidos produzam e mobilizem conhecimento, há sempre quem se mostre mais recetivo ao diálogo e a novas aprendizagens, apesar da arquitetura dos processos visar, em certa medida, que todos se envolvam no cumprimento deste objetivo.

O tipo de conhecimento adquirido e mobilizado depende dos diferentes atores e do poder diferencial que lhes é atribuído no âmbito deste processo. Obviamente que todos os agentes envolvidos – população, técnicos, políticos – contribuem para o processo e adquirem novas aprendizagens dessa participação. No entanto, dada a forma como em Sevilha e em Belo Horizonte se preconiza o envolvimento e interação entre os agentes envolvidos, é a população quem mais facilmente usufrui de aprendizagens sobre matérias que antes não eram da sua competência, sobretudo sobre o modo como funciona a administração local, podendo atuar a esse nível, mas usufruindo também  da criação de sinergias, da cooperação cidadã e do reforço do espírito de entreajuda comunitário, bem como das aprendizagens sobre o surgimento de novas solidariedades, no âmbito das propostas de investimento que se enquadram no OP.

No caso de Belo Horizonte, regista-se a existência da Escola do Legislativo, que promove a capacitação da população no processo em matéria de conhecimentos jurídicos, a qual se dirige sobretudo às lideranças mais diretamente envolvidas no processo, embora o desejável fosse a sua abertura a toda a população.[10]

No caso de Sevilha não se regista ainda um investimento deste tipo, já que a capacitação e o conhecimento produzido pela população deriva essencialmente da sua experiência direta nas distintas fases do processo. Não obstante, importa sublinhar que este processo prima pelo envolvimento de crianças e jovens o que, de certa forma, reverte a favor da ideia de uma “Escola de Cidadania”, preconizada a partir desse mesmo envolvimento em tão tenra idade.

Importa ainda salientar a reciprocidade dos ganhos neste imiscuir de conhecimentos que o processo possibilita. Assim, importa referir que também os técnicos e políticos envolvidos têm no OP uma oportunidade de aprofundar o relacionamento com os cidadãos, extraindo dessa relação novos conhecimentos sobre a realidade, o que contribui, nos casos analisados, para um posicionamento mais humilde quanto à necessidade de investir na transparência e na prestação de contas, para além, talvez, do acesso mais imediato às necessidades mais prementes da população e que urge satisfazer (Azevedo e Gomes, 2008).

Por outro lado, a interação com as populações e organizações sociais de base local constitui uma oportunidade – para a esfera técnica e administrativa – de percepcionar de forma mais rica e complexa as realidades concretas, a partir dos seus contextos precisos, da sua especificidade e da relação singular que se estabelece entre as comunidades e os territórios. Estas dimensões constituem, de fato, domínios da maior relevância para compreender o quadro de expetativas e ansiedades das populações, que nem sempre integram as matrizes técnicas e políticas com que as instâncias de governação administrativa usualmente trabalham.

Pela força que os processos conferem à participação cidadã, garantindo-lhe o efeito vinculativo a partir dos resultados alcançados nos espaços de votação, impõe-se afirmar que estes processos de interação entre diferentes formas de conhecimento contribuem para um maior equilíbro entre distintas formas de conhecer e perceber as cidades: por um lado, e os conhecimento dos que nelas habitam, assumindo igualmente uma maior diversidade nos processos deliberativos, isto é, no conjunto de decisões sobre em que é prioritário investir, e como viabilizar as propostas de investimento de um ponto de vista técnico.

Assim, quer na perspetiva ideológica quer na perspetiva das práticas concretas, estes processos acicatam o conhecimento leigo a intervir sobre as necessidades da população através das parcerias que o OP estabelece entre os vários atores, tendo em vista a gestão e o planejamento urbano alargado destas localidades. De alguma forma, com o OP, o conhecimento das populações também passa a ser protagonista das decisões a implementar, revelando assim um domínio do conhecimento leigo que se traduz numa maior cooperação entre eleitos e munícipes (Dias, 2008).

As decisões em jogo no OP derivam pois da negociação de necessidades entre cidadãos (embora sob supervisão do conhecimento técnico que avalia a viabilidade das propostas em jogo), o que confere consistência à tese da soberania popular na decisão, na sua dupla dimensão democrática: a da representação e a da participação.

 

5. Considerações finais

 

O principal objetivo do OP passa por encorajar dinâmicas de participação e estabelecer mecanismos sustentados de co-gestão dos recursos públicos, através da partilha de decisões e da responsabilização governativa no que à sua efetiva implementação diz respeito (Santos, 2002). Sob todos esses aspetos, os casos das cidades analisadas revelam-se processos de sucesso, constituindo exemplos de boas práticas a assinalar. Porém, na interseção das temáticas “participação” e “conhecimento”, relativamente à forma como determinam certos aspetos da governação, podem ser tecidas algumas considerações a partir dos OP Sevilha e de Belo Horizonte.

Assim, e apesar da mais longa tradição de participação no OP em Belo Horizonte, ambos os processos se equiparam ao nível da transparência das decisões e do controlo do OP pelos cidadãos. Ou seja, são ambos os casos meritório exemplo de boas práticas de accountability, possibilidade concreta de inversão de prioridades políticas, inibição do clientelismo político, mas, sobretudo, de participação popular nas decisões. Isto é, de mais e melhor democracia. 

Apesar da expressiva credibilidade de que se revestem estes processos (no caso de Belo Horizonte medida pela expressiva participação da população ao longo dos anos e, em Sevilha, pela renovação da iniciativa em diferentes contextos político partidários em exercício no Governo municipal), há ainda desafios a ultrapassar.

Em Sevilha, o principal desafio passa por uma aposta mais eficaz no envolvimento da população, porque de pouco importa o modelo estar bem concebido se grande parte da população não participar. Neste caso, reconhece-se ainda a necessidade de implementar mais campanhas de sensibilização mas, sobretudo, de promover esforços acrescidos no sentido da capacitação da população para participar, os quais se julgam capazes de garantir a animação das camadas cidadãs para o seu efetivo envolvimeno e participação política (e dado não ser por falta de instrumentos e suportes de divulgação que o OP não seduz a população a níveis desejáveis). Seria, talvez, de empreender ainda um esforço acrescido no sentido de simplificar e desburocratizar a complexidade orgânica em que assenta este processo, sobretudo se pensarmos o OP como um exemplo de respeito mútuo e de confiança entre população e burocracia (Murta e Souki, 2008).

Já Belo Horizonte conta, desde a sua implementação (e apesar de algumas oscilações ao longo do tempo), com índices bastantes satisfatórios de participação popular no processo. Esta situação revela que o OP se foi tornando, ao longo dos anos, mais ativo e dinâmico, diversificando as áreas de investimento e desdobrando-se em processos de decisão paralelos, para além de se constituir como uma das mais continuadas experiências de gestão participada no Brasil (Avritzer, 2009). Um último reconhecimento do processo advém da implementação da dimensão virtual, através do OP digital, que veio reforçar a sua ampliação democrática, ao apostar em novas formas de integração de atores distintos no processo. Além disso, revela ainda ser um processo flexível e em constante mutação, redefinindo-se e adaptando-se de modo a que todos possam ingressar no processo de co-decisão. No entanto, apesar de o OP de Belo Horizonte se afigurar como uma das melhores referências a nível internacional relativamente à participação cidadã, o processo ainda não alcançou o necessário equilíbro em termos de, por exemplo, participação proporcional em função da representação etária, de gênero, ou entre população economicamente ativa e inativa.

Os processos de Orçamento Participativo vieram, indiscutivelmente, mudar a forma de governar as cidades, ao estabelecer novos arranjos institucionais e ao consagrar novos espaços de negociação em matéria de decisões de interesse público. A cada ciclo de implementação, permitem vincular decisões coletivas de planejamento urbano, fazendo cada cidadão sentir que pode contribuir e participar no desenho mais justo do espaço que habita, projetando nele as suas necessidades e as suas expetativas relativamente à vida dos mais desfavorecidos. Assim, quanto maior o envolvimento da população nos destinos do território e nos seus investimentos, na sua apropriação e na definição de prioridades, mais plenamente se assumirá o sentido de cidadania, permitindo reconhecer-se na prática concreta que, através do compromisso cívico que o OP consubstancia (e contrariamente a modelos democráticos de caráter exclusivamente representativo), o Sol, quando nasce, é para todos…

 

Bibliografia

 

Avritzer, Leonardo (2009), Participatory Institutions in Democratic Brazil. Baltimore: Johns Hopkins University Press.

Azevedo, Neimar Duarte; Gomes, Maria Auxiliadora (2008), “Um balanço da literatura sobre o Orçamento Participativo de Belo Horizonte: Avanços e desafios”, in Sérgio Azevedo e Ana Luiza Nabuco (org.), Democracia participativa. A Experiência de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora Leitura e Prefeitura BH, pp. 67-88.

Cabannes, Yves (2007), Instrumentos de Articulación entre Presupuesto Participativo y Ordenamiento Territorial. Belo Horizonte: URB-AL.

Callon, Michel; Lascoumes, Pierre; Barthe, Yannick (2001), Agir dans un monde incertain: essai sur la démocratie technique. Paris: Seuil.

Cooke, Bill; Kothari, Uma (2001) Participation: The new tyranny? New York: Palgrave.

Boschi, Renato (2005), “Modelos participativos de políticas públicas: os orçamentos participativos de Belo Horizonte e Salvador”, in Sérgio Azevedo e Rodrigo Barroso (Orgs.), Orçamento Participativo – construindo a democracia. Rio de Janeiro: Revan, pp. 179-196.

Dias, Nelson (2008), Orçamento Participativo. Animação cidadã para a participação política. Lisboa: Associação in Loco.

Gastil, John (2008), “Cultivating Deliberative Development: Public Deliberation as a Means of Improving Local, State, and Federal Governance”, in Sina Odugbemi and Thomas Jacobson, Governance Reform Under Real-World Conditions. Washington DC: The World Bank, pp. 303-316.

Gomes, Maria Auxiliadora (2004) “Orçamento Participativo de Belo Horizonte: Um Instrumento de Planejamento da Gestão Democrática”. Revista Pensar BH Política Urbana e Ambiental, Vol. 4: 4-13.

Murta, Anamaria sant Anna; Souki, Lea Guimarães (2008), Apropriação do espaço urbano em obras do Orçamento Participativo em Belo Horizonte”, in Sérgio Azevedo e Ana Luiza Nabuco (org.), Democracia participativa. A Experiência de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora Leitura e Prefeitura BH, pp. 89-116.

Santos, Boaventura de Sousa (2002), Democracia e participação. Coimbra: Afrontamento.

Santos, Boaventura de Sousa (2006), Democratizing Democracy. London: Verso Press.



* Agradeço a Nuno Serra pelo apoio incondicional e o estímulo intelectual constante. O presente artigo, uma vez mais, contou com as suas preciosas sugestões.    

[0] É Mestre em Sociologia e frequenta o Programa de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação, do Centro de Estudos Sociais (CES) e da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. É investigadora do CES e beneficia, atualmente, de uma bolsa de Doutoramento atribuída pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito da qual investiga as questões da participação cidadã na (re)formulação de políticas públicas e, nesse contexto, da relação entre ciência e conhecimentos.

[1] Estimativas recentes apontam para a existência de cerca de duas mil experiências de OP a funcionar no mundo, a maioria das quais na América Latina, mas recentemente com grande projeção na Europa, para além da sua recente introdução na América do Norte, África e Ásia (Dias, 2008).

[2] A presente análise beneficia da experiência da autora enquanto elemento da equipa de investigação de um projeto financiado pela Comissão Europeia (ResIST – Researching Inequality through Science and Technology, CIT5-CT-2005-029052) onde ambos os processos de OP foram adotados como estudos de caso por parte da linha de investigação levada a cabo pela equipa portuguesa do projeto.

[3] Modelo pioneiro, surgido em 1989 aquando da subida ao poder do Partido dos Trabalhadores no município, o qual veio a instituir uma nova modalidade de governação municipal designada por “Administração Popular” e que veio a ficar conhecida como “Orçamento Participativo” (Santos, 2002:18)

[4]  O IQVU resulta do cálculo de 54 indicadores agregados em 10 aspetos relacionados com a oferta de equipamentos e serviços urbanos (relacionados com a qualidade de vida): abastecimento, cultura, educação, desporto, habitação, infra-estrutura urbana, meio ambiente, saúde, serviços urbanos e segurança urbana.

[5] Uma das mais valias das caravanas de prioridades é a possibilidade de, após a visita ao lugar proposto para as obras, certas comunidades poderem abdicar de parte ou da totalidade da verba destinada a uma proposta a favor de outra que se constata ser mais necessária em termos de resposta a comunidades mais carentes.

[6] Comissão de acompanhamento e fiscalização do orçamento participativo. Este órgão pode, a qualquer momento, solicitar informações e esclarecimentos aos órgãos da Prefeitura.

[7] Não é necessário ter os famosos papéis para se estar legalizado no Estado Espanhol (tradução da autora).

[8] Também no espaço europeu, um outro exemplo de participação de crianças na vida coletiva das cidades, ainda que pontual, é a iniciativa “La città vista dal basso”, realizada em Città di Castello (Itália).

[9] Também o OP de Belo Horizonte se preocupa com a questão de gênero, mas sem impor a regra da paridade na constituição dos seus órgãos.

 

[10] Escola do Legislativo da Câmara Municipal de Belo Horizonte, criada a 3 de agosto de 2007, através da Lei nº 9.431.  Esta resulta de uma preocupação dos atores políticos locais, empenhados em aproximar a Câmara dos cidadãos, potencializar o debate político, fortalecer o processo legislativo, bem como capacitar cidadãos e agentes políticos, tornando mais efetivas a participação popular, a atuação da instituição, a democracia e a cidadania municipal. 

 

 

 

 

 

Classes sociais e cidadania: uma perspetiva sobre a participação política na Área Metropolitana de Lisboa

 Susana Cabaço[1]

Tiago Carvalho[2]

 

1. Introdução

 

O tema da participação política e envolvimento cívico dos cidadãos alcançou grande notoriedade entre os cientistas sociais, tendo igualmente despertado a atenção de responsáveis políticos e de outros grupos sociais. Esta visibilidade deve-se, por um lado, a um campo político crescentemente complexo, em que a legitimidade política está agora mais dependente de uma conceção de representação mais alargada (Urbinati e Warren, 2008). Por outro lado, está também associada às mudanças nas atitudes e valores políticos, manifestas, por exemplo, nas dinâmicas desenvolvidas em fóruns e movimentos de cidadãos (Verba et al., 1995).

Neste trabalho procuramos compreender as estratégias e impactos das diversas formas de participação política/ cívica no aglomerado metropolitano, procurando perceber se existe ou não um “perfil” associado à mobilização política. Por outro lado, analisaremos estas iniciativas à luz das condições[3], meios e oportunidades políticas em que estão envolvidas. Entendemos que é particularmente relevante operar com um modelo analítico que seja sensível não só ao contexto e pluralidade da ação política, mas também às características sócio-económicas e valores políticos dos seus interlocutores.

Perspetivamos a cidade enquanto espaço de oportunidade para a expressão cívica e política dos cidadãos. Assim, a nossa abordagem analítica partirá do binómio classe social e participação (nas suas diferentes dimensões) numa primeira fase, na área metropolitana de Lisboa (AML), para posteriormente se centrar numa reflexão acerca dos novos espaços e dinâmicas de cidadania[4], nomeadamente no uso da internet e no orçamento participativo. 

Palavras-chave: participação política, classes sociais, contexto urbano.

 

2. Classes Sociais e Cidadania na Modernidade Avançada

 

Para os politólogos, em particular aqueles mais interessados nas dinâmicas das democratizações, Portugal ganhou uma notoriedade sem precedentes quando em abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, confrontou com sucesso os poderes instituídos do Estado Novo e deu início à transição para a democracia e à propalada terceira vaga de democratizações (O Donnell et al., 1986). De então para cá, uma série de transformações permitiu diversos avanços ao nível da consolidação da jovem democracia. A investigação neste domínio passou a estar (ainda mais) atenta aos fatores que favorecem a consolidação da democracia. No caso português, destacamos entre estes fatores uma dimensão processual/ legal com a implementação de processos eleitorais regulares e livres; a constitucionalização de direitos sociais, políticos e económicos; uma dimensão social com o alargamento do acesso à educação, saúde, cultura; e uma dimensão internacional com a adesão e integração - legal, política, económica, monetária - na União Europeia.

No entanto, estas mudanças profundas não conseguiram anular um legado duplamente negativo quando nos centramos, como é o caso, na participação e envolvimento cívico e político dos cidadãos. Referimo-nos, por um lado, à desigualdade social latente, manifesta pelo facto de Portugal ser, entre os 25 países analisados no relatório "The Social Situation in the European Union 2007" da Comissão Europeia, o país que apresenta os níveis mais baixos de mobilidade social ascendente no que concerne aos indivíduos oriundos das famílias mais desfavorecidas[5] e, por outro lado, por também não ter conseguido atingir as expectativas dos cidadãos face à qualidade da democracia, de que é prova a expressão e manifestação de sentimentos de desafeição, desconfiança e descontentamento face ao sistema político (Magalhães, 2004). Interessa-nos perceber então de que forma é que a teoria social e política tem abordado a questão das diferenças de classe na cidadania política, para que possamos situar teoricamente esta problemática.

 

2.a. Mudança e classes sociais


Em 1996, Pakulski e Waters publicaram o livro – cujo título não podia ser mais eloquente – “The Death of Class”, onde defendem que na sociedade pós-moderna as diferenças de classe tomam a forma de “configurações de status baseadas em valores e/ ou estilos de vida […] formados em torno de diferentes padrões identitários, significados simbólicos, crenças, gostos, opiniões ou consumo” (1996:25)[6].

Em linha com esta teorização, Inglehart (1997) defende que este debate teórico deve ter em conta que as sociedades ocidentais atravessaram um processo de transformação dos valores individuais, anteriormente mais centrados em dimensões materiais (sobretudo associados à segurança económica e física) e agora mais ligados à autonomia e autoexpressão. Neste sentido, as consequências destas transformações nas democracias contemporâneas far-se-iam sentir, por um lado, ao nível do discurso político dos partidos, já menos centrado em apelos associados à esquerda e direita, dando lugar a um debate político mais focado em temas (como a cultura, o ambiente, igualdade de género). Por outro lado, daria lugar a uma maior visibilidade de novos atores, associados a movimentos sociais emergentes, que apresentariam novas propostas e formas de expressão e ação alternativas – estas mudanças foram inicialmente identificadas por Terry Nichols Clark e Ronald Inglehart nas áreas metropolitanas dos Estados Unidos, na década de 1970 (Clark e Hoffman- Martinot, 1998).

De forma semelhante, para Ulrich Beck (1992), as alterações estruturais a que temos vindo a assistir estão enquadradas num processo de “modernização reflexiva”, marcado pela quebra de “laços sociais” tradicionais, por um processo de crescente individualização, promovido, sobretudo, pela nova lógica de organização do mercado de trabalho[7]. Mais, o autor alerta em particular para os impactos das transformações estruturais que se constituíram nas sociedades pós-industriais, como o desemprego de longa duração, a erosão da segurança de empregos “para a vida”, que na sua perspetiva são elementos fundamentais para percebermos fenómenos mais abrangentes como a “individualização da desigualdade social”.

Para este autor (2007) existem um conjunto de categorias zombie fruto da modernização reflexiva, entre elas as classes sociais. Advoga que as “antigas” unidades de análise “nacionais” não dão respostas rigorosas a processos globais e, como tal, é necessário mudar o foco para problemas concretos. Propõe, por isso, uma renovação da teoria sociológica, por vezes, próxima das leituras do pós-modernismo. Argumenta que deixou de existir uma coerência e correspondência entre elementos objetivos e subjetivos das classes sociais, pois a individualização separa e fragmenta a cultura da posição objetiva de classe. Como tal as sociedades atuais não são sociedades de classe, apesar de continuarem a existir desigualdades, considerando-as, por isso, instrumentos desadequados para análise de processos citados.

Resultado destas propostas teóricas dominantes, as classes têm tido nas últimas décadas uma produção científica restrita[8] (Atkinson, 2007; 2008). Contudo, é possível argumentar que as classes sociais continuam a ser teórica e empiricamente relevantes em vários domínios. Apesar das mudanças registadas pelos autores citados, são várias as evidências empíricas que demonstram a sua importância desde que devidamente enquadrados nos fenómenos de mudança em causa (Atkinson, 2010). Para estes autores a mudança não é tão radical e há importantes continuidades a registar no campo das classes sociais e do Estado-Nação[9]. Veja-se, então, como se verifica este fenómeno no campo da participação.

 

2.b. Classes sociais, mudança e participação política


Os impactos da desigualdade social no envolvimento político têm vindo a ocupar um lugar cada vez mais destacado na agenda dos cientistas sociais e existem motivos fortes para que tal seja o caso. Como nota Lijphart (1997), igualdade e participação política são dois ideais democráticos básicos, mas na prática, como os sociólogos e politólogos sabem há muito, a participação política é desigual, o que consequentemente está na base de uma influência política desigual. Este é exatamente um dos maiores e mais complexos problemas das democracias representativas: por um lado, o facto de a desigualdade de representação e influência política não estar aleatoriamente distribuída (estando sistematicamente enviesada em favor dos cidadãos com mais recursos); e por outro lado, um contexto em que a representação política e a “prestação de contas” não é completamente efetiva porque depende, não só do envolvimento cívico, como de um acesso igualitário à esfera pública.

A diversidade de atitudes e práticas políticas tem sido explicada por um vasto conjunto de variáveis, nomeadamente, através da diferença de recursos (entre eles, recursos económicos, escolares, tempo, informação); da pluralidade de normas de cidadania; e pela pertença a redes sociais diversas (o que potencialmente determina a exposição a diferentes fatores de mobilização política, enquadrados numa determinada estrutura de oportunidades) (Caínzos e Voces, 2010, Cabral, 2006).

Neste contexto, é especialmente importante destacar a obra de Verba, Schlozman e Brady (1995) - Voice and Equality - que contribuiu de forma decisiva para (re)centrar a agenda das Ciências Sociais no estudo da desigualdade da influência política (“political voice”) dos cidadãos nas democracias contemporâneas. Entre as principais conclusões daquela obra destaca-se a ideia de que o processo de participação política – baseado nos recursos dos cidadãos, no seu grau de envolvimento psicológico e no acesso a redes – está altamente enviesado, na medida em que, face a estes constrangimentos, dificilmente se conseguirá assegurar que todos estão em condição de influenciar igualmente o processo de decisão política (através dos seus representantes eleitos ou através de ação direta).

Entre as várias linhas de investigação no âmbito da participação política/ cívica, a abordagem do capital social tem encontrado bastante ressonância (Coleman, 1988; Cohen, 1999; Dalton, 2004; Putnam, 1995, 2000). Resumidamente, o ponto crítico desta discussão reside na questão: quais os mecanismos que subjazem ao envolvimento cívico e político? Alguns autores argumentam que o capital social está relacionado com boa governação, não só porque aumenta o nível de sofisticação política dos cidadãos, como facilita a cooperação no seio da sociedade (Tavits, 2006). Entre os seus principais proponentes destaca-se Robert Putnam (1995, 2000) que defende que o capital social[10] é um elemento fundamental para a legitimidade dos sistemas democráticos na medida em que cria mais um espaço de expressão e deliberação política, fomentando igualmente a confiança interpessoal. Porém, o diagnóstico realizado por Putnam (2000), em Bowling Alone, está longe deste ideal: segundo os seus resultados, cada vez mais os cidadãos americanos vivem na e para a sua própria esfera privada, alienados da comunidade e processos políticos (abstenção eleitoral, não envolvimento em associações ou outras formas de participação cívica) e, para Scherrer-Vignale (2004), os cidadãos mostram-se também “desligados” dos conteúdos (“political avoidance”) da política democrática[11]

E se, em vez, de uma “crise” da participação política estivéssemos perante a rutura de um modelo de envolvimento cívico, causado por uma mudança nas atitudes políticas e pela adesão a novas normas de cidadania[12]? Russell Dalton (2008) analisou dados do inquérito Citizenship, Involvement, Democracy (2005) e acredita que este é o cenário mais plausível. Assim, o que se verifica é que algumas das formas “convencionais” de exercício de cidadania (por exemplo, o voto) tendem a perder adesão quando comparadas com outras práticas (“engaged citizenship”) emergentes.

Por outro lado, é importante notar que a participação cívica e envolvimento político exigem a mobilização de recursos de vária ordem. Em que medida é que podemos considerar as classes sociais como fonte de diferenciação do comportamento e atitudes políticas? Até meados da década de 1980, a resposta a esta questão estaria bastante associada à configuração da estratificação social, associando possivelmente lugar de classe a determinados valores e práticas políticas. Porém, a partir de então emergiu uma controvérsia teórica em torno do “fim das classes”[13] com novos olhares sobre o papel da diferenciação social nas atitudes políticas. Neste contexto o “Estado social” atenuaria os conflitos de classe, promovendo a redistribuição da riqueza e os partidos políticos recentrariam os seus programas em novos domínios (como o ambiente, a cultura, os direitos sociais) (Clark e Lipset, 1993).

Caínzos e Voces (2010), por seu lado, problematizam e testam empiricamente estes postulados teóricos, com o objetivo de perceber qual o significado político da pertença de classe, nos países europeus[14]. O seu trabalho procura compreender as ligações entre os fatores relacionados com as transformações socioeconómicas e o surgimento de um novo cenário político, para em seguida avaliar os impactos políticos derivados das classes sociais: “de acordo com as abordagens clássicas seria expectável encontrar menores diferenças de classe nas “novas” formas de envolvimento cívico e político – boicotes, manifestações, outros atos de protesto […] No entanto, uma das principais conclusões deste estudo aponta em sentido contrário: estas formas de ação revelaram a existência de maiores diferenças de classe, quando comparadas com formas de ação política convencionais”[15] (2010: 409).

Nunes e Carmo (2010), com base no mesmo inquérito (dados de 2006), mostram que na Europa a ação coletiva se baseia em diferentes tipos de capitais (social, económico e cultural). A sobreposição entre estes capitais tem um efeito claro na intensidade e tipo de práticas, pondo em causa a irrelevância das classes sociais na compreensão das diversas configurações existentes entre classes sociais e participação política.

Se por um lado, vários autores têm colocado de parte o uso das classes sociais na compreensão dos fenómenos de participação, por outro, análises mais recentes continuam a revelar o potencial heurístico das mesmas. Ou seja, apesar de um novo contexto histórico, existem diferenças relevantes no que se refere à participação política que importa pesquisar.

 

2.c. Dimensões de análise: estado, cidade e indivíduo


Tendo em conta as perspetivas que defendem a reformulação das teorias sociológicas (e em particular da análise das classes sociais e do estado-nação), Mouzelis (2008) não defende uma total reformulação das teorias sociológicas num contexto de modernidade avançada. Propõe antes que se pense estes constructos teóricos de forma estrutural, tendo o Estado-Nação uma importância fulcral na sua constituição, mesmo numa época de globalização. Para este, autor se numa primeira fase da Modernidade o Estado-nação foi um elemento centralizador e em que a cidadania constituiu uma componente fundamental de integração dos indivíduos no centro político, numa segunda fase, de globalização, os Estados-nação incorporam, enquanto entidades locais, por via das novas tecnologias de informação e comunicação, espaços globais com novas formas de centralização do poder.

Na perspetiva de Saskia Sassen (2000), são as cidades globais que ocupam o espaço privilegiado de uma nova geografia de centralidade e marginalidade, uma vez que concentram não só o “capital transnacional”, mas também os trabalhadores mais vulneráveis e, muitas vezes, “invisíveis” da geografia económica contemporânea. As atuais cidades são, assim, o espaço privilegiado de desenvolvimento de uma cidadania transnacional que não se dirige unicamente a instituições nacionais.  

Por outro lado, em termos metodológicos, é evidente que uma nova abordagem de investigação permeia a Sociologia Política. Ao invés de procurar perceber em que medida os indivíduos são reflexo dos contextos e grupos em que estão inseridos, esta nova abordagem examina de que forma é que as atitudes e práticas são elas próprias geradoras de configurações mais ou menos propícias à mudança social e política. Ao contrário de se perspetivar o comportamento individual como mero produto de variáveis exógenas, as escolhas dos cidadãos são vistas como conjuntos de preferências relativamente independentes do contexto em que são formadas (Young, 1999).

Assim, de seguida, a nossa análise seguirá as dimensões aqui delineadas. Esta centrar-se-á na cidade de Lisboa (entendida enquanto região) e nas práticas dos indivíduos, num contexto globalização.

 

3. Classes e Participação. O caso da AML

 

Na obra dos clássicos a cidade surge como espaço por excelência da modernidade (Simmel, 1971; Weber, 1962). Esse protagonismo é, atualmente, reforçado pelo contexto de globalização em que as cidades são um espaço de concentração de tarefas de controlo e comando de atividades globais (políticas, económicas, culturais etc), com o entrelaçar de uma rede de cidades na divisão do trabalho, também estes geradores de cosmopolitismo (Sassen, 2001). As cidades concentram também um conjunto de desigualdades e formas sociais variadas e plurais.

Para Rodrigues “a cidade atual reflete uma fase de transição mais vasta, de natureza societal e portanto multidimensional, que acarreta também uma reestruturação económica e urbana” (2010: 5), que se relaciona com o processo de aprofundamento das relações globais económicas, políticas, culturais e sociais. Os espaços urbanos assumem, assim, uma preponderância inevitável nos processos de circulação de pessoas, capitais e culturas, devido ao seu posicionamento entre contextos nacionais e fluxos internacionais.

Enquanto cidade-região, que não se restringe aos limites administrativamente delimitados, Lisboa, como Área Metropolitana, congrega um conjunto diversificado de municípios que podem ser segmentados em interior e exterior (Rodrigues, 2010). A centralidade económica, política e cultural reforça a sua posição na hierarquia ibérica, europeia[16] e global, também fruto do seu passado enquanto capital do império e atual metrópole (Ferreira, 1987). Esta monocentralidade corresponde a uma concentração de serviços qualificacionais, ensino, cultura, consumo e lazer, mas também, e sobretudo no eixo Lisboa-Oeiras-Cascais à concentração da maior parte das atividades de I&D do país (Rodrigues, 2010: 91-106).

Para Rodrigues (2010), Lisboa passa, atualmente, por um processo de nobilitação urbana associado à reurbanização que se reflete na revitalização económica, cultural, social e política da cidade interior, após dinâmicas de suburbanização que ainda hoje continuam. Desde da década de 1980 que se iniciou um duplo processo intensificado na última década: verifica-se, simultaneamente, uma perda líquida de população e uma valorização do espaço urbano associado a uma reconversão simbólica de espaços anteriormente arrolados a grupos de estatuto considerado inferior por parte de pessoas mais jovens e qualificadas, e a que subjazem estilos de vida que passam pela valorização da vida urbana[17]. Ainda assim, não deixam de estar presentes desigualdades sociais que o autor citado faz sobressair e que têm que ser exploradas.

Depois de focado o contexto teórico e empírico, analisar-se-á de seguida a relação entre das classes sociais e participação focando as diversas configurações das categorias e dimensões em análise, tendo em conta a multidimensionalidade subjacente à cidadania e desigualdade social.

Não se segue aqui uma imagem reificada ou substancialista das classes sociais, mas antes um conjunto de propostas de análise relacional, multidimensional e estrutural (Costa et al, 2000; Silva, 2009; Atkinson, 2009), em que se releva os contextos de análise e as diferentes configurações que pode assumir. Numa conceção multidimensional vários são os indicadores que dão conta dos diferenciais de recursos, poder e oportunidades em que as classes sociais se constituem, enquanto conjunto de agentes sociais com posição próxima no espaço social. Destaca-se o indicador socioprofissional[18], complementado por indicadores socioeducacionais (Costa et al, 2000) e ainda, quando as técnicas estatísticas permitem, a incorporação de indicadores relativos a outros tipos de recursos (como o capital social): dentro desta perspetiva, ainda que exista uma centralidade da profissão, este não pode ser tomado como o único a definir classe social (Atkinson, 2009). A participação política e cívica é também central na definição da estrutura de poder e da possibilidade de alterar ou manter as condições envolventes no âmbito de determinados contextos institucionais (Scott, 2001: 51-70; 110-134). Por esse motivo, importa perceber como estas diferentes dimensões interagem. As categorias socioprofissionais, e respetivo peso na amostra selecionada, são as seguintes: empresários, dirigentes e profissionais liberais (EDL – 7,1%); profissionais técnicos e de enquadramento (PTE – 17,7%); trabalhadores independentes (TI - 4,3%); empregados executantes (EE – 35,5%) e operários (O – 22,9%).

É possível, a partir desta conceção, contra-argumentar as hipóteses relativas ao desaparecimento das classes sociais. As diferenças e desigualdades estruturais mantém-se, ainda que o contexto global possa ter sofrido alterações, bem como há posicionamentos que continuam a ser de vantagem (Atkinson, 2010).

Apresentamos agora a análise integrada das dimensões relativas às classes sociais e ao envolvimento político. Para tal, e com base nos dados disponíveis do inquérito internacional ISSP2004[19] selecionou-se a amostra respeitante à Área Metropolitana de Lisboa. As dimensões, e variáveis subjacentes para além dos indicadores de classe referidos, foram os seguintes:

  1. Participação Política: divide-se entre mobilização[20] e associativismo[21]. A primeira refere-se ao conjunto de práticas realizadas individualmente, enquanto a segunda se divide entre associativismo político e social/cívico. Tem-se em consideração as tipologias propostas por Cabral (2006) e Viegas e Faria (2007).
  2. Confiança interpessoal: esta variável dá conta da dimensão associada ao capital social[22], se se considerar enquanto indicador aproximado e facilitador das relações entre pessoas. Pode-se mesmo acentuar a racionalidade associada à reciprocidade das relações interpessoais e existência de ambientes institucionais propícios ao seu desenvolvimento (Nunes e Carmo, 2010; Coleman, 1988).
  3. Uso Político dos Media: tem-se em consideração o uso de jornais e da internet[23]. Esta variável pretende dar conta do consumo de informação sobre política e da sua mobilização para a ação, podendo ser integrada enquanto elemento de reflexividade (Casanova, 2004; Cabral, 2000).
  4. Modos de relação com a política: permite dar conta de um conjunto de disposições e sofisticação subjacente aos tipos de participação através das variáveis relativas ao interesse pela política e à sua discussão. Dá-se, assim, conta de dimensões associadas ao envolvimento cívico para além da participação[24].

 



É possível, a partir da figura 1, identificar configurações que conjugam as diferentes dimensões acima expostas, notando-se um impacto do volume e estrutura de capital, em especial dos recursos escolares, em que se identifica uma sobreposição e cumulatividade entre estas[25]:

  1. Desafetos (29,3%) – concentram-se aqui os trabalhadores independentes, operários e empregados executantes, com baixos níveis de escolaridade (grande maioria sem qualquer tipo de escolarização), sem interesse em discutir política. A sua confiança interpessoal é baixa e a mobilização e associativismo são inexistentes.
  2. Passivos (29,8%) – apesar das semelhanças à anterior configuração, os níveis de escolaridade situam-se ao nível do ensino básico, com acesso a alguns meios de comunicação social (jornais), bem como a pertença atual ou anterior a associações ou partidos.
  3. Militantes (18,3%) – esta é a configuração mais heterogénea em termos socioprofissionais (com empregados executantes, operários e empresários e dirigentes), ainda que em termos educacionais se verifique uma concentração ao nível do ensino básico. Na participação política revelam-se mais ativos do que os anteriores na mobilização (com pelo menos uma ação política) e associativismo (pertence ou já pertenceu), em parte porque os níveis de escolaridade do grupo são em média ligeiramente superiores.
  4. Mobilizados (22,4%) – pode-se denominar esta configuração como a ativa, e por oposição à que foi primeiramente retratada, verifica-se uma cumulatividade dos vários recursos em torno dos profissionais técnicos de enquadramento e de recursos escolares, bem como um nível de atividade superior ao que é observado nas restantes. Há um acesso variado a fontes de informação (jornais e internet), bem como um interesse e discussão de assuntos políticos.

 

Como se pode perceber as classes sociais continuam a ter um importante papel na mobilização política, nas suas diferentes dimensões. Se existem cidadãos para os quais a privação de recursos parece constituir um entrave à participação política e, portanto, a não integração total no espaço societário, noutros porém essa apropriação e cumulatividade de recursos constitui o âmago da sua ação na região de Lisboa. Há, assim, uma importância dos recursos escolares na mobilização e associativismo, bem como de uma maior confiança interpessoal, sofisticação e recurso a fontes de informação.

Estes elementos remetem para um conjunto de competências associadas à produção de discurso mas também à dominação simbólica (Bourdieu, 1986). O acesso a fontes de informação e a reflexividade embutida na construção desses discursos são fatores importantes na mobilização para a ação. Também aqui se destaca o papel dos indivíduos mais instruídos pela sua ação em vários domínios e que se exemplifica mais adiante com um conjunto de situações concretas de grupos cuja atividade se desenvolve na AML.

 

4. Novas práticas e classes sociais

 

A reflexão em torno do impacto político das classes sociais tem vindo a centrar-se, como vimos, nos impactos das transformações sociais do período pós-industrial na recomposição da estratificação social. Segundo diversos autores os valores políticos associados a determinadas classes sociais têm vindo a assumir um protagonismo cada vez maior – em particular, a designada “nova classe média alta”, que se caracteriza pela sua elevada mobilidade, individualismo e tolerância social (Silva et al., 2008). Jenkins e Wallace (1996) argumentam que estas mudanças são o produto da confluência de duas grandes tendências: a mudança dos fundamentos associados à estratificação social (da propriedade para o conhecimento); e o crescimento de movimentos sociais organizados e todo o potencial de mobilização e ação política a eles associado. Veremos agora como estas transformações têm adquirido forma na área metropolitana de Lisboa, em particular, no caso da participação política mediada pela Internet e através de instrumentos como o Orçamento Participativo, isto é, novos espaços e dinâmicas de cidadania em Lisboa. 


i. Novos Espaços e Dinâmicas de Cidadania em Lisboa: a Internet


Neste ponto focar-se-á a ligação entre blogs locais (blogs dedicados à cidade de Lisboa) e as suas ligações a processos e dinâmicas locais que extravasam a dimensão virtual e se constituem enquanto grupo de pressão. Pondera-se aqui a ligação entre vários domínios de atividade cívica diretamente relacionados com a cidade de Lisboa, nos seus temas e formas de ação.

Em pesquisa anterior a nível nacional (e focada nos blogs), o distrito de Lisboa agregava cerca de 43% dos indivíduos que responderam ao inquérito realizado e na cidade 55 casos (num total de 209). Na utilização da Internet enquanto instrumento cívico (quer enquanto fonte de informação, quer enquanto instrumento de ação) predominam indivíduos que possuem volumes totais de recursos elevados, em especial escolares: está-se pois perante uma prática marcadamente de classe (Carvalho e Casanova, 2010), ainda que subsistam diferenças internas de cariz ideológico e participativo.

O uso de dispositivos eletrónicos, para participar política e civicamente, é uma tendência recente, possibilitada por um conjunto de fatores estruturais e acesso generalizado dos cidadãos a estas ferramentas[26]. O seu potencial na expansão da esfera pública tem constituído um dos principais temas de debate (Rodrigues, 2006; Carvalho e Casanova, 2010). A internet constitui um espaço de atividade cívica que se articula (ou não – consoante os grupos) com outras formas de participação: não há uma divisão entre ação política online e offline na maioria dos casos, antes se relacionam com novas possibilidades enquanto plataforma de apoio e divulgação, em especial a nível local (Rodrigues, 2006). Abordar-se-á especificamente estas questões para a cidade de Lisboa[27].

Os blogs, ou espaços na internet focados na cidade de Lisboa numa perspetiva de cidadania, podem ser divididos consoante as áreas geográficas a que se dedicam e os temas. Assim, um primeiro tipo de blogs e com maior impacto mediático e público são aqueles que se dedicam a vários temas e espaços da cidade: são os generalistas[28]. Subsistem ainda dois tipos específicos mais focados, a saber ou nas freguesias[29] ou temas específicos, como o uso de bicicleta na cidade ou a conservação dos relógios públicos[30].

Os temas destes blogs centram-se, essencialmente, naquilo que os seus autores consideram ser os problemas na cidade de Lisboa. Uma das principais questões focadas é o património público e ambiente, como a recuperação de prédios devolutos, conservação de edifícios e monumentos históricos, poluição de vários tipos, limpeza e acumulação de lixo nas ruas. Outro tema focado relaciona-se com a mobilidade e a proposta de soluções para a sua resolução no âmbito do estacionamento (da sua falta ou excesso, e de como é um incentivo ao transporte individual), o número diminuto de transportes públicos e congestionamento de trânsito. Há a divulgação de eventos culturais e de novos estabelecimentos, que promovem novas formas de comércio com a recuperação de velhos espaços[31] e, por fim também central, a preocupação com instituições públicas e a sua gestão.

A sua ação extravasa o domínio da internet, ou seja, é uma plataforma pela qual se dá a divulgação de vários tipos de ações, podendo listar-se vários domínios de atuação. Diversos blogs dedicam-se, com diferentes intensidades, a algo que poderia ser chamado de “reportagem fotográfica”[32]: expõem algo que identificam como problemático através de imagens. Outras atividades passam pela criação de grupos informais[33], petições, protestos e manifestações[34], e propostas[35] (materializadas nas cartas às entidades municipais e que são muita das vezes publicados também nos sites). Além disso, há uma intervenção em processos públicos como o orçamento participativo com o desenvolvimento e suporte de projetos e propostas, mas também a intervenção nos processos eleitorais[36] junto das candidaturas. Há, igualmente, uma ligação entre “novos” e “velhos” media: além da divulgação de notícias ligadas à cidade de Lisboa nos seus espaços, denunciam-se situações nos “velhos” media difundindo as suas ações e preocupações.

Como se pode perspetivar este tipo de intervenção pública não se circunscreve unicamente ao domínio “virtual”, mas tem um claro impacto nas decorrências da cidade. Os espaços utilizados na internet ao nível local servem como plataforma de divulgação e ação, ou seja, são espaços interdependentes de ação política que alargam o capacidade de atuação cívica. Surgem como pontos de agregação de cidadãos que muita das vezes não se conhecem[37] e servem de suporte à mobilização comum e à constituição de grupos informais que passam a ter influência sobre os destinos da cidade, constituindo-se enquanto novas formas de pressão. O seu impacto faz-se porque criam público, que mesmo que não participe de forma direta adere às suas causas por via das petições frequentes.

Ainda que exista uma marca de classe social vincada, em torno de um grupo de pessoas com altos níveis educacionais, as ações e possibilidades abertas por estes grupos ao nível local revelam-se um instrumento útil em torno de um projeto de cidadania, com uma articulação entre offline e online. Assim, a internet permitiu a visibilidade e impulso de grupos cujas ações até então não eram ponderadas.

 

ii. Novos Instrumentos para o Envolvimento Político: o Orçamento Participativo


A propósito dos novos espaços e dinâmicas de cidadania na área metropolitana de Lisboa, importa agora voltar a atenção para a implementação do Orçamento Participativo (OP)[38]. A relevância da discussão dos impactos deste tipo de instrumentos no estímulo e enriquecimento da estrutura de oportunidades políticas dos cidadãos torna-se ainda mais clara num contexto em que o debate em torno da qualidade da democracia tem vindo a questionar a capacidade de inclusão das visões e preferências da comunidade política (Lijhphart, 1997, Dalton, 2004). Conceitos como democracia deliberativa (Goodin, 2005; Silva, 2004) ou democracia participativa[39] têm servido de referente para a crítica aos limites de um modelo democrático meramente formal e “minimalista”.

As origens do OP estão associadas a movimentos políticos e sociais brasileiros que reclamaram a abertura dos processos de decisão política (sobretudo ao nível sub-nacional) à participação dos cidadãos – a primeira experiência de implementação do OP aconteceu em Porto Alegre, em 1989. Desde então, o processo tem vindo a ser aplicado e adaptado a diversos contextos, por várias autoridades locais.

O processo do OP normalmente envolve várias fases. Estas estão relacionadas com a discussão e “eleição” dos projetos locais percecionados como mais importantes por todos os cidadãos que participam no processo (sendo alocados os recursos aos projetos mais votados)[40].

Desta forma, estão (potencialmente) criadas condições que favorecem um maior envolvimento cívico nos processos de tomada de decisão - através da organização, informação, deliberação e compromisso entre os cidadãos. É preciso notar também que à medida que os cidadãos possuem mais qualificações e melhores competências para entender e formar ideias e opiniões políticas, tendem a procurar diferentes formas de influência política – engaged citizenship (Dalton, 2008) (recurso a meios mais “intensivos” de mobilização política, nomeadamente contacto direto com representantes políticos, consumo ético, participação em fóruns políticos, entre outros). Do ponto de vista da governação urbana, a implementação do OP representa uma via de aprofundamento da comunicação entre eleitos e eleitores, tornando o processo de decisão mais aberto e transparente.

Iniciado em 2008, o orçamento participativo segue, em Lisboa, os trâmites regulares desta experiência noutros pontos do globo. Numa primeira fase o município recebe e avalia os projetos que se enquadram nas áreas temáticas. Após a escolha dos projetos estes entram em fase de votação, sendo depois integrados no âmbito dos planos da câmara municipal. O orçamento participativo está ainda em vias de institucionalização nesta cidade. Ainda assim, é possível resumir o conjunto de procedimentos associados ao mesmo. O processo está ainda centrado na Internet, com a necessidade de registo e voto nos projetos a partir dessa plataforma. Ainda assim, no último ano procedeu-se à realização de assembleias participativas, ao alargamento do período de votação, mas também à instalação serviços de voto em vários dos autocarros da cidade e em vários pontos de apoio a cidadãos sem internet e com maiores dificuldades no uso da mesma (ex: juntas de freguesia).

Como se pode verificar desde 2008 que todos os números têm aumentado, desde o número de participantes, nas suas várias modalidades, até às propostas e projetos. Não se pode, para já, fazer qualquer análise que não descritiva, ainda que a tendência seja para o aumento. A abertura das instituições a novas práticas de participação parece ser um processo lento de institucionalização, em que quando as oportunidades surgem os cidadãos participam. A interação entre cidadãos, grupos de cidadãos e poderes instituídos é, portanto, fundamental nos processos de gestão e tomada de decisão associados às cidades.

 

Tabela 1 – Participantes, Propostas e Projetos

 

2008

2009

2010

Participantes

Registados no site

1732

6948

12681

Proponentes

247

533

767

Votos

1101

4719

11570

Propostas e Projetos

Propostas Apresentadas

580

533

927

Projetos a votação

89

200

291

Nº de Áreas temáticas[41]

3

14

14

Fonte: http://www.cm-lisboa.pt/op

Fazendo uma análise das propostas que têm sido escolhidas pelos cidadãos, verifica-se um conjunto diversificado projetos. O foco essencial dos projetos parece remeter para alternativas não implementadas pela própria autarquia, em que o foco se centra na requalificação de espaços da cidade com o objetivo de promover uma melhor qualidade de vida, mobilidade, sustentabilidade, espaços e património público requalificado, mas também a promoção de iniciativas de cariz solidário e de âmbito desportivo. Ainda que seja cedo para avaliar o impacto destes projetos na cidade, estes irão, com certeza, no longo prazo ser importantes na organização da cidade estando-lhe subjacente as potencialidades e limitações do OP.

 

Tabela 2 – Projetos escolhidos

 

2008/2099

2009/2010

2010/2011

Construção de Pistas Cicláveis

3ª Fase da Construção do Canil/Gatil Municipal em Monsanto 

Campo de Rugby

Parque Urbano Rio Seco

Centro Cultural de Base Local - Cinema Europa

Parque Urbano do Rio Seco - 3ªfase

Acessibilidades para Bicicletas

Qualificação do Largo do Coreto

Requalificação da Envolvente da Igreja de Santa Clara

Criação de um espaço verde e parque infantil – Quinta de Barros

Recuperação e Beneficiação Escola EB1 Manuel Teixeira Gomes 

Centro de Atividades Intergeracionais

Corredor Verde: Parque Eduardo VII – Monsanto

Praça João Bosco

Requalificação e Cobertura do Espaço Desportivo no Bairro do Cabrinha

 

Alargamento das faixas Bus, permitindo a circulação de bicicletas

 Casa destinada a Mães (Pós-parto)

Melhoria das condições da tomada e largada de passageiros junto a várias escolas

Quinta do Bom Nome 

Pop Up Lisboa 2010 (festival internacional de cultura urbana)

 

Sistemas de Iluminação sustentável da via pública - Bairro das Novas Nações

10º

Reforço da limpeza de cartazes/graffitis nos bairros históricos

11º

Festival de Netaudio de Lisboa

 

Como refere Nelson Dias (2008) com o OP institucionaliza-se a participação por parte dos cidadãos, estabelece-se um ambiente de comunicação entre eleitos e eleitores em que se promove uma cultura de cidadania, assim como maior solidariedade e coesão. Contudo, este implica também limitações como: o centramento em processos muito específicos e imediatos sem uma visão estratégica sobre o desenvolvimento do município, além da desigual participação entre grupos. Junta-se ainda a fraca capacidade financeira dos municípios.

 

 5. Conclusão

 

A discussão em torno da importância das classes sociais nas atitudes e comportamento político é já longa, mas, no entanto, a controvérsia parece não estar encerrada. Com este trabalho procurámos mostrar a relação entre classes sociais e cidadania na AML, tendo uma perspetiva multidimensional sobre estes conceitos. As diferentes configurações entre os vários tipos de recursos, os modos de relação com a política e diversidade de fontes de informação remetem para formas distintas de mobilização e atuação consoante as classes sociais. A perspetiva sobre estes grupos permite, então, refutar o conjunto de hipóteses acerca do fim das classes, e reafirmar, dentro de um novo contexto, a importância das desigualdades nas dinâmicas de participação e a emergência de novos fenómenos associados às práticas de cidadania e de governação nas cidades. Assim, ainda que não exista um acesso igualitário de todos os grupos há, contudo, um conjunto de novos espaços que se revelam essenciais na intensificação da participação dos grupos que usualmente participam, reforçando também a sua influência.

Subsequentemente, optámos por apresentar e discutir dois casos que, na nossa perspetiva, são paradigmáticos das transformações ao nível das atitudes face à cidadania política[42]. No primeiro caso, analisámos uma forma de ação política bastante heterogénea em termos de conteúdos, mas que no entanto utiliza uma plataforma comum, a Internet. Os bloggers são, no caso, os representantes de uma nova forma de intervenção cívica e política (mediada por tecnologias de informação) que mobiliza, informa e atrai atenções em torno de problemas locais (ou mesmo de outras escalas), potenciando, muitas vezes, as próprias redes sociais para a divulgação e/ ou pressão política.

Na nossa perspetiva, esta forma de ação cívica/ política é reveladora de uma atitude diferente perante a cidadania política: centra-se na ação direta, visando, por vezes a denúncia pública de diversas situações, como meio de pressão sobre as autoridades, o que denota uma vontade de influir mais direta e intensamente na decisão política[43].

No segundo caso, optámos por tratar não uma forma de intervenção “individualizada”, mas sim um instrumento/ fórum implementado pelas próprias instituições políticas: o orçamento participativo. Vimos que para além da importância da automobilização política é também fundamental que existam oportunidades e espaços para a informação e participação dos cidadãos nos processos de deliberação e decisão política.

Contrariamente às hipóteses normalmente avançadas nos trabalhos ligados ao “fim das classes”, vimos que o papel das circunstâncias sócio-económicas não “morreu”, em termos de mobilização e participação política (como os resultados para a AML atestam). Não queremos, no entanto, esquecer ou negligenciar outros fatores que possam afetar a mobilização e envolvimento político – vimos, por exemplo, a importância do acesso e domínio de novas tecnologias de informação. Deste modo, é importante referir que não tomámos aqui uma perspetiva determinística acerca das classes sociais e cidadania. Pelo contrário, se a primeira parte do texto permitiu estabelecer o lugar das desigualdades na participação, na segunda abordou-se os veículos de mudança e as estruturas de oportunidades emergentes e que concedem aos cidadãos um papel fundamental na mudança social. Deixa-se aqui o mote para que, no domínio das Ciências Sociais, se aprofunde a investigação dos fatores que favorecem ou mitigam a mobilização e participação dos cidadãos. Este é, na nossa perspetiva, um meio fundamental de análise (e denúncia) das consequências e impactos da desigualdade social na participação política, uma das formas mais insidiosas de erosão da democracia.

 

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[1] Doutoranda na University of Essex, Departament of Government. Os seus interesses passam, atualmente, pela Sociologia Política, Política Comparada, em particular, as dimensões internacionais das democratizações. slfcab@essex.ac.uk

[2] Mestrando em Sociologia no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e assistente de investigação no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Os seus interesses centram-se na Sociologia Histórica e da Modernidade, instituições, cidadania, classes sociais e poder. tiagomlcarvalho@gmail.com

[3] Pierre Bourdieu (1989) observa que todo o poder tende a ser um “poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, através de um crédito com que ele o credita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança, pelo que o homem político retira a sua força política da confiança que o grupo põe nele”.

[4] Não se trata, no entanto, de fazer um retrato exaustivo dos movimentos, iniciativas e atores envolvidos, mas antes uma reflexão crítica em torno do impacto das diferenças de classe na participação e valores políticos.

[6] Tradução do original realizada pelos autores.

[7] Nestas circunstâncias, cada indivíduo tenderá a desenvolver um processo reflexivo de planeamento da sua esfera individual, tornando-se assim na “unidade de reprodução social” (1992, 100). Richard Sennett discute também algumas das implicações destas mudanças nas suas obras “The corrosion of character” (1998, Nova Iorque: W.W. Norton) e “The culture of the new capitalism” (2005, New Haven: Yale Univ. Press).

[8] Em Portugal este é um tema central na pesquisa sociológica (ver Roldão, 2008; 2009).

[9] Para Atkinson (2007) há um conjunto de incoerências na obra de Beck, além de um centramento excessivo na individualização de forma descontextualizada, isto é, sem perceber eventuais efeitos da pertença a uma determinada classe social ou Estado. Assim, classes sociais e individualização não são opostas e exemplifica-o com o trabalho de Bourdieu que identificou uma “nova pequena burguesia”, baseada no capital cultural, que se caracteriza por uma “search for identity and self expression and a refusal to be assigned to a class” (idem: 362): é, assim, possível compatibilizar estes elementos com a teoria das classes.

[10] Do ponto de vista analítico o autor recorre a vasto conjunto de variáveis para caracterizar a realidade dos EUA, sendo a pertença a organizações voluntárias um dos indicadores mais discutidos (Putnam, 2000).

[11] Cf. Scherrer-Vignale, Vanessa. "Revisiting Political Avoidance" Paper presented at the annual meeting of the The Midwest Political Science Association, Palmer House Hilton, Chicago, Illinois,  2004 

[12] O conceito de normas de cidadania aqui desenvolvido diz respeito ao conjunto de expectativas partilhadas - acerca do papel dos cidadãos - numa dada comunidade política (Dalton, 2008).

[13] Entre artigos centrais para esta discussão destacamos Clark, Terry N., Seymour Lipset e Michael Rempel, “The declining political significance of social class”. International Sociology. 8 (3) (1993), 293-316; e Clark, Terry N. e Seymour Lipset, “Are social classes dying?”. International Sociology. 6 (4) (1991), 397-410.

[14] Neste artigo, os autores analisam 20 países europeus representados na base de dados do Inquérito Social Europeu (2002-03), http://ess.nsd.uib.no/ess/round1/.

[15] Tradução do original realizada pelos autores.

[16] No âmbito da União Europeia no ano 2000 definiu-se a “Estratégia de Lisboa” e em 2007 assinou-se o tratado atualmente vigente: “Tratado de Lisboa”.

[17] Na última década vários são os espaços culturais que emergiram na cidade de Lisboa, por exemplo: por sites: Crew Hassan (http://www.crewhassan.org/), Fábrica do Braço de Prata (http://www.bracodeprata.org/), Onda Jazz (http://www.ondajazz.com/), LXfactory (http://www.lxfactory.com/), apenas para referenciar alguns. Muitos destes espaços aproveitam antigas fábricas através da sua renovação.

[18] Opta-se neste trabalho por utilizar o indicador desenvolvido a partir do final dos anos 80 por António Firmino da Costa, Fernando Luís Machado e João Ferreira de Almeida no âmbito do ISCTE-IUL e CIES-IUL, devido à inclusão de informação relevante na reconstituição da classe social de forma multidimensional: condição perante o trabalho, qualificação profissional, posição hierárquica e setor de atividade [18]. O uso do indicador socioprofissional permite, através do cruzamento de profissão e situação na profissão, reconstituir o volume e a estrutura dos capitais económicos, organizacionais e qualificacionais. Matriz disponível em Machado et al (2003).

[19] International Social Survey Programme (http://www.issp.org/), modulo dedicado à participação política e cidadania.

[20] A variável construída inclui as seguintes práticas: assinar uma petição, boicote a produtos, participar numa manifestação, assistir a uma reunião ou comício político, contactar um político, doação, contactar media, participar num fórum político na internet, considerando-se apenas as práticas realizadas no ano transato. Realizou-se uma contagem em que, tendo em conta a distribuição, se recodificou as categorias da seguinte forma: nenhuma ação, uma ação, mais do que uma ação.

[21] No associativismo político tomou-se em consideração a pertença a um partido ou a um sindicato; no associativismo cívico estão presentes a pertença a grupos religiosos, desportivos ou outros. As categorias presentes em ambas são as seguintes: participa, pertence, já pertenceu, nunca pertenceu. O critério para a sua construção foi ligação mais forte a pelo menos uma das associações.

[22] A variável em consideração perguntava se as pessoas na generalidade das suas relações sociais, se confiava ou tinham cuidado. As quatro categorias desta variável, duas relativas à confiança e duas ao cuidado, foram agrupadas dicotomizando-se as variáveis.

[23] Combinou-se a utilização semanal de jornais e da internet enquanto fonte de informação política, pois estas são aquelas que envolvem maior sofisticação política, bem como a necessidade de recursos culturais e políticos na sua interpretação. O critério passou pelo uso regular destes media, isto é, pelo menos uma vez por semana. Não se incluiu a televisão por não ser diferenciadora já que estava disseminada por toda a população.

[24] Tendo em conta a forma como as variáveis estavam categorizadas, procedeu-se à sua dicotomização e combinação, resultando nas seguintes categorias: interesse e discussão (ativos); interesse sem discussão (interessados); críticos (discussão); sem interesse e sem discussão (desinteressados).

[25] Esta análise foi feita a partir dos object scores da análise de correspondências múltiplas com o qual se originou a análise de clusters a partir do método K-means (ou Quick Cluster). Desta forma é possível certificar as principais características das configurações em análise.

[26] Ainda que existam múltiplas desigualdades: género, etárias, educacionais, económicas, etc.

[27] Esta reconstituição fundamentou-se em dados recolhidos anteriormente bem como na possibilidade de recolha de informação disponível na Internet, numa espécie de etnografia digital, com base no mapeamento e leitura dos blogs e outros meios existentes e que se focam na cidade de Lisboa. Esta estratégia permitiu conhecer as diversas atividades e modos de intervenção desenvolvida por estes grupos. Procede-se aqui a uma análise exploratória destes movimentos.

[31] Esta divulgação está ligada aos processos de nobilitação urbana e novas formas de comércio que acarretam, como lojas gourmet etc.

[32] Ver por exemplo o blog: http://lisboasos.blogspot.com/

[38] Estaremos aqui concentrados no caso específico da implementação do OP, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa.

[39] Neste domínio destacamos particularmente a obra “Acting in an Uncertain World. An Essay on Technical Democracy”, de M. Callon, P. Lascoumes e Y. Barthe (2009, Cambridge, MA: MIT Press).

[40]  Informação sobre os processos de OP implementados em Portugal: http://www.op-portugal.org/.

[41] No primeiro ano as áreas temáticas foram as seguintes: espaço público e espaço verde; infraestruturas viárias, trânsito e estacionamento; urbanismo e reabilitação urbana. Nos anos seguintes as áreas temáticas eram: urbanismo; reabilitação urbana; habitação; espaço público e espaço verde; proteção ambiental e energia, saneamento e higiene urbana; Saneamento e Higiene Urbana; Infraestruturas Viárias, Trânsito e Mobilidade; Segurança dos Cidadãos; Turismo, Comércio e Promoção Económica; Educação e Juventude;  Desporto;  Ação Social; Cultura; Modernização Administrativa

[42]  A opção de apresentar dois casos específicos, é para nós, importante já que especifica as possibilidades e as mudanças que lhe estão inerentes, ultrapassando o caráter mais abstrato e “distante da realidade” que algumas abordagens têm construído em torno deste tema.

[43] Por sua vez, tal leva a nos interrogarmos se esta conceção não estará também ligada a uma conceção de representação política mais centrada numa relação mais próxima e interativa entre eleitos e cidadãos).

 

 

 

 

 

A emergência da cidade-providência enquanto conquista da emancipação social urbana [0]

Vanessa Duarte de Sousa

 

Introdução

  Já não nos surpreendemos com a constatação de que há uma necessidade de transição epistemológica e teórica na análise das cidades e que essa decorre, em muito, seja dos contextos seja das reflexões que se fazem sobre esses. É certo que outros olhares vão surgindo e que se vai ampliando o leque territorial que serve de base à discussão. A sociologia das cidades de hoje olha com maior humildade para as suas limitações procurando a ampliação nos conteúdos, nos tempos e nos espaços de referência. Fortuna (2006) destaca, a este respeito, três limitações da sociologia urbana convencional: i) privilégio dado a cidades centrais e privilegiadas do ponto de vista socioeconómico; ii) destaque atribuído a elementos casuísticos ou abuso na generalização de traços concretos de dadas cidades para outros espaços; iii) preocupação desenvolvimentista sobre as cidades do Sul, menosprezando o olhar sociológico que passa a recentrar-se nas cidades da modernidade, as ditas cidades globais. Cada vez mais nos deparamos com a noção de uma sociologia urbana eurocêntrica que provocou invisibilidades e anulou a existência de um conjunto vasto de cidades à escala global. Mas mesmo dentro dessas cidades visíveis se construíram invisibilidades. Cada vez mais vemos as cidades como espaços que são, simultaneamente, de hiperinclusão e de hiperexclusão. E uma dimensão não pode ser trabalhada sem ter por relação a outra. A necessidade de revisão das problemáticas da sociologia das cidades decorre de um conjunto de mudanças significativas. À escala global deparamo-nos com processos de reorganização territorial que não se circunscrevem à afirmação de que o mundo de hoje é essencialmente urbano – seja na sua configuração espacial, seja nos modos de vida – e de que há um novo conjunto de cidades que, pela sua dimensão, vão ocupando um lugar central no ranking mundial. É nas cidades que se dão as mudanças sociais globais, e são precisamente aquelas que foram sendo invisíveis na análise sociológica que são emblemáticas da forma, do sentido e do conteúdo dessas mudanças. Falar sobre o capitalismo global dos nossos dias é, em parte importante, complementar à análise do surgimento, do desenvolvimento e do contexto das megacidades. E é no Sul que se concentra a parte importante das megacidades do mundo. Mas se a sua visibilidade de hoje se pode associar à importância económica e política que adquirem, a sua invisibilidade terá tido motivações dessa mesma ordem. Como nos refere Seabrook (1996) as cidades do Sul vivem os «fantasmas do passado urbano do Norte». Se há dimensão que não pode ser menosprezada no Sul, será a da presença das cidades coloniais e das cidades imperiais. E esses «fantasmas» são, sem dúvida, um resultado do colonialismo e do imperialismo e do seu impacto sobre os modelos de desenvolvimento do Sul. É neste quadro que se situa a defesa por um pluralismo epistemológico nos estudos sobre as cidades. Não se trata de uma proposta que garanta apenas a convivência teórica das múltiplas perspetivas em presença, mas que procure o diálogo. Quando propomos a discussão sobre o conceito de cidade-providência, esse diálogo conceptual é imperativo. Se bem que em termos empíricos teremos a nossa atenção centrada sobre as lutas pela emancipação no Norte, há um Sul no Norte que vai escapando à reflexão. Este ensaio procura discutir o desenho inicial de um quadro analítico para a cidade-providência emergente, que permanece no quadro dessas invisibilidades referenciadas. Num primeiro momento, é empreendida uma reflexão de contextualização sobre a crise da cidade, identificação das suas fragmentações, das suas segregações. Trata-se de analisar o contexto empírico concreto em que se criam as condições para essa cidade-providência. De seguida, empreende-se uma reflexão sobre o futuro possível na promoção do bem-estar social. Não é possível olhar para o conjunto de práticas sem recuperar brevemente uma discussão já antiga sobre o papel do Estado e a sua relação com uma sociedade que vai garantido os mínimos de coesão social à custa de uma função providencial que se mantém ativa. As noções de solidariedade, dádiva e dom alimentam, paralelamente, a reflexão que se empreende, procurando lançar alguns dos elementos centrais para análise do conceito de cidade-providência que aqui se propõe. É no terceiro momento deste ensaio que se procuram introduzir os elementos centrais que balizam a construção teórica deste conceito. Parte-se de um conjunto de referenciais da sociologia das cidades para se discutir algumas das propostas de entendimento sobre o funcionamento das relações sociais na cidade. Apresenta-se um modelo compreensivo sobre esta cidade, que a coloca no centro de um conjunto de linhas divisórias que acompanham as lutas pela emancipação social – a linha abissal e a linha Norte-Sul. Finalmente, elabora-se uma proposta analítica para o conceito de cidade-providência. A partir das dimensões social, económica, política e ideológica, procuram-se identificar alguns dos questionamentos teóricos e empíricos que podem dar suporte à operacionalização futura desse mesmo conceito.
 
Da crise da cidade
  
Da análise das tendências de reorganização territorial à escala global destacaríamos o facto de termos um mundo cada vez mais urbanizado, pese embora com características socioeconómicas completamente distintas no seu interior. No «palco» dos processos decisórios, as cidades são «atores» fundamentais. Tornam-se o motor das economias, mas também o cenário das grandes desigualdades do espaço, ou seja, emerge o que Soja (1995, 2004) denomina de «metropolaridades» ou de «arquipélagos carcerários». Atualmente, verifica-se o que Lefebvre identificava como processo de «implosão-explosão» da cidade. Por um lado, a cidade estende-se ao ponto de gerar megalópoles. Por outro, as concentrações urbanas tornam-se gigantescas. Deterioram-se os centros urbanos, a par de um processo de crescimento urbano periférico. Nos centros pode registar-se um duplo processo: tanto são votados ao abandono ao ponto de passarem a ser apropriados por pobres, criando-se novos guetos, como se tornam espaços de poder para grupos mais abastados que pretendem manter as suas posições no centro da cidade (1991: 10-11). A vida urbana é entendida de forma central para o desenvolvimento da sociedade no seu conjunto. Fruto de um hiato cada vez mais visível entre os mais ricos e os mais pobres, gera-se uma sociedade que se protege através de mecanismos de segurança privada receando aqueles que são desprovidos de recursos, evidencia-se uma maior fragmentação do ponto de vista social e tendem a privatizar-se os espaços públicos da cidade (Borja, 2005), assiste-se a um processo de favelização das cidades à escala global, particularmente visível nos espaços onde essas dualidades são mais flagrantes (Davis, 2006), e as cidades vão-se tornando «fortalezas» (Davis, 2007). Vai-se olhando para a cidade como um contexto em crise permanente e lugar do medo, em que se sobrepõe a privatização à socialização do espaço público. Mas mais do que uma crise da cidade, sugere-se o desafio de «fazer cidade» (Borja, 2005: 32). Estas são consequências de um modelo hegemónico que mostra claros sinais de fragilização. Em paralelo, mantêm-se e emergem mecanismos de resistência reveladores de outras formas possíveis de viver a cidade. Tratam-se de modalidades contra-hegemónicas, que não terão a pretensão de universalização da resposta aos problemas, mas que recriam e reinventam as respostas em função das necessidades concretas das pessoas e de cada local. É neste contexto que pretendemos conceptualizar uma modalidade dessas emergências, que denominaremos de «cidade-providência». Reportamo-nos ao campo de práticas urbanas[1] que visam a construção, em reciprocidade, de um futuro comum assente na partilha de bens e serviços sem recurso a moedas, ou fazendo uso de moedas complementares donde emana o valor social dos bens e serviços nas trocas empreendidas. Incluem-se também as iniciativas que visando o lucro, procuram-no redistribuir por todos aqueles que delas fazem parte (exemplo de algumas cooperativas). Excluímos deste campo todo o conjunto de práticas solidárias caritativas que se retratam na noção mais ampla de solidariedade mas que, pela sua componente assistencialista, limitam o campo de possibilidades de emancipação social que vislumbramos nessa cidade-providência.
 
Os caminhos da promoção do bem-estar social   

Do Estado-Providência ao Estado-Não-Providência

Quando falamos no mundo atual, em que na maioria dos países se verifica a sua estruturação por via de um Estado que toma as decisões sobre parte importante das populações[2], não é possível falar em sociedade-providência sem a articular com a conceção que temos acerca das funções que o primeiro deverá desempenhar. Poderá assumir-se que, pelo facto do Estado não ser capaz de assegurar por si só a capacidade de providenciar bem-estar aos indivíduos, tenderá a haver uma parcela de ‘menos’ Estado na governação das sociedades atuais. Não nos parece que uma condição tenha de ser, necessariamente, reflexo da outra. Ou seja, pelo facto do Estado, cada vez mais recorrer a atores que lhe complementam a sua ação, não quer dizer, com isso, que esteja ou que tenha de ser diminuída a sua capacidade de regulação. Mas se há um consenso generalizado pela democratização dos países, que passa pela consolidação das formas de governo central e local dos territórios, o mesmo não se pode dizer em relação às funções do Estado. Se durante muitos anos se foi assumindo que ao Estado deveria caber uma função essencial de promoção de bem-estar social, decorrendo daqui o princípio da igualdade e da universalidade, o paradigma atual aponta mais para o desenho de formas desse se poder «descartar» de encargos e, consequentemente, perdendo-se esses princípios centrais. De modo mais ou menos consensual poderíamos atribuir ao Estado-Providência as seguintes funções: i) integração social – gerir as incertezas económicas e sociais (qualificação, mercado de trabalho, etc.); ii) integração sistémica – necessidade de aumentar a participação política (concertação social, acordos estratégicos, etc.); iii) reconhecimento coletivo das situações de risco social – são  riscos resultantes da vida em sociedade e a que todos, independentemente das suas condições materiais de existência, poderão estar sujeitos; iv) delimitação das políticas públicas - traduz-se numa forma de interpretar o social de acordo com o imaginário político; v) reforma permanente de um modelo contratual de sociedade – a forma de legitimação do poder e, em particular, da intervenção, que passa pela responsabilização das partes envolvidas. Mas em parte dos Estados em que essas funções foram sendo mais ou menos conseguidas, mantém-se uma tendência para seletividade das intervenções públicas para setores específicos da população. Vai-se esquecendo a máxima de que “uma política social para os pobres é uma pobre política social”. De Estados-Sociais ou de Estados-Pouco-Sociais fomos transitando para Estados-Economicistas e, simultaneamente, Estados-Económicos. De Estados-Providência ou de Estados-Pouco-Providência foi-se alimentando a ideia de Estados-Não-Providência ou de Estados de Situações de Emergência. Nas sociedades do Norte, habituadas a uma perspetiva desenvolvimentista europo-centrada ou norte-americano-centrada, é fácil descredibilizar e considerar como radicais as perspetivas do Sul que questionam a economia capitalista neoliberal e a sua sobrevivência. Aos poucos, essa crítica ao capitalismo na sua vertente predatória vai compondo os discursos do Norte, apesar da sua ainda frágil incorporação. Embora a crise atual tenha permitido a utilização de alguns dos instrumentos estatais que se considerava serem responsáveis pela estagnação dessa economia, certo é que ao mínimo indicador de confiança dos consumidores se parece esquecer a raiz especulativa em que se desenhou a crise. O Estado passou a ser entendido como o «bombeiro» dos «fogos» que são lançados na economia, ao invés de atuar na sua prevenção e, principalmente, de garantir um imbricamento da economia na sociedade, ou seja, de apostar numa economia que atente a finalidades sociais. Polanyi refere que este foi sendo o princípio da construção da história humana e que a civilização moderna foi anulando, tomando a economia como prioritária em relação à sociedade (1980, cit. in Lisboa, 2004: 296).  Em paralelo, a análise dos novos processos de gestão socioterritorial à luz das competências dos atores em jogo, principalmente no que concerne à articulação entre domínio público e privado (lucrativo ou não), leva-nos a afirmar por um papel cada vez mais importante atribuído a outras instituições em domínios quer antes eram de atuação exclusiva do Estado. Mas quando atentamos, em particular, ao caso português, verificamos que neste «empowerment institucional» joga-se mais a procura da eficiência e da eficácia das políticas centrais, do que a divisão das responsabilidades entre os diferentes atores em função do que são e devem ser as suas competências em cada domínio específico de atuação no território.  Se num primeiro momento, a articulação entre Estado e organizações da sociedade civil se situava a um nível de complementaridade, hoje estamos a presenciar uma substituição de papéis. O Estado desvincula-se de um conjunto de intervenções, mas não das políticas. Tratam-se de claras estratégicas de “Top-Up” – partem do nível central, são operacionalizadas em termos locais por organizações da sociedade civil que se apropriam pela possibilidade de financiamento de áreas de trabalho que continuam a apoiar na luta contra a exclusão, e, posteriormente, alimentam a máquina estatal de indicadores de resultados que são, no final, assumidos como algo alcançado pelo Estado. Para Boaventura Sousa Santos, uma das tensões dialéticas da modernidade situa-se, precisamente, na relação entre Estado e sociedade civil. ‘O estado moderno, não obstante apresentar-se como um Estado minimalista, é, potencialmente, um Estado maximalista, pois a sociedade civil enquanto o outro do Estado, autorreproduz-se através de leis e regulações que dimanam do Estado e para as quais não parecem existir limites, desde que as regras democráticas de produção de leis sejam respeitadas.’ (Santos, 2001). Por outro lado, um conjunto de funções que eram tradicionalmente asseguradas pelo Estado numa lógica universal estão, cada vez mais, a serem substituídas pela sua privatização. O caráter de universalidade subjacente à sua intervenção não terá o seu equivalente na atuação desenvolvida pelo setor privado.  Se é certo que para os atores até poderão estar a emergir novas funções, ao nível do Estado apenas se estará a rentabilizar a atuação pela via da diminuição do peso que antes teria de dar a dado tipo de intervenção por atuar de forma isolada. Parecem emergir sistemas de ‘welfare mix’, donde se incluirá o caso português, e que se traduz na articulação da dimensão pública e privada no providenciar do bem-estar social. ‘A more viable strategy in the South would be the promotion of a novel family- serving welfare mix, whose profile seems to be emerging some regions of this area (...): a mix of dellingent public regulations and incentives, corporate arrangements, third setor activism and private entrepreneurship to respond to family (and especially women’s) needs.’ (Ferrera, 2000: 178). A emergência destas formas mistas de provisão do bem-estar estará relacionada com a importância crescente do setor privado (se bem que não nos pareça, por razões múltiplas, capaz de substituir a intervenção estatal) e, com a tendência de descentralização de poderes e de competências para o domínio local e regional. O que não é possível esquecer é que, face aos novos riscos, face às mutações a que a nossa sociedade está sujeita, e perante os contextos de incerteza inerentes à gestão do quotidiano dos indivíduos, impera a necessidade de reforçar quer as funções do Estado no providenciar do bem-estar social, mas também de incentivar outros níveis de atuação que poderão trabalhar numa lógica de complementaridade e que são sustentados pelos atores que se mobilizam na construção da ação coletiva.
 
A construção de um modelo de desenvolvimento solidário
 
Face à incapacidade de promoção universal do bem-estar por parte do Estado, a própria sociedade vai criando os seus mecanismos de defesa e de proteção face aos riscos sociais. Se, tradicionalmente, as redes de solidariedade primárias eram centrais na consolidação desses mecanismos de proteção, hoje em dia tendem a fragilizar-se. O crescimento, nalguns casos desmesurado, das cidades, apoiou na fragilização dessas redes. Mas, paralelamente, vão-se recriando outras, que apoiam no «viver em comum» na cidade. E se é certo que as cidades são o palco privilegiado da exclusão social, da pobreza, da segregação territorial, não é menos verdade que se aliam oportunidades criativas e alternativas a esses problemas que vão afetando parte importante da população citadina. Uma dessas modalidades respeita ao que se vem denominando de economia solidária. Nos últimos anos têm-se multiplicado as experiências de trocas solidárias, mais ou menos formalizadas, que apontam para a sedimentação dos laços sociais, assim como para a (re)atribuição de valores sociais para bens e serviços. Do ponto de vista conceptual, emergiu o M.A.U.S.S (Mouvement Anti-Utilitariste des Sciences Sociales), donde se situam os trabalhos de Alain Caillé (2002a; 2002b; 2004; 2008; in Cattani et al, 2009), de Jean-Louis Laville (2004; 2007; in Cattani et al, 2009), de Jacques Godbout  (1997; 2002; 2008), de Maurice Godelier (2001), entre outros. Trata-se de um conjunto de contributos que destacam a componente sociológica da solidariedade. Mas é ao nível da América Latina, onde a maior parte destas experiências teve origem, que se vão multiplicando as reflexões teóricas sobre este tipo de práticas. Tratam-se de reflexões que trabalham o campo mais vasto da economia solidária, retratando temas gerais relacionados com o debate sobre os limites da economia capitalista e os desafios inerentes às formas alternativas que vão emergindo (Abramovich e Vázquez, 2007; Arruda, 2007; Gaiger, 2004, 2005, in Cattani et al, 2009; Lisboa, 2002; Singer, 2002, 2004; Wautiez et al, 2004). No entanto, muitos outros trabalham temas mais específicos, dos quais destacamos aqueles considerados mais pertinentes para o trabalho aqui proposto, nomeadamente o de economia moral (Lechat, 2001, 2002, in Cattani et al, 2009), de mercados solidários e de trocas solidárias (Abramovich e Vázquez, 2003; Lisboa, 2004, s/d; Primavera, 2008; Primavera e Wautiez, 2001; Soares, 2006), e ainda sobre redes globais de trocas e de colaboração solidária e a construção de movimentos sociais que congreguem iniciativas de clubes de troca, de compras coletivas, de campanhas por produtos éticos (biológicos, locais ou solidários), etc. (Arkel et al, 2002; Mance, 2002, in Cattani et al, 2009).     Laville propõe dois modelos de solidariedade que caracterizam as sociedades contemporâneas. “A solidariedade filantrópica corresponde ao primeiro deles, remetendo à visão de uma sociedade ética na qual os cidadãos, motivados pelo altruísmo, cumprem seus deveres uns para com os outros voluntariamente. A segunda forma é a versão da solidariedade como princípio de democratização societária, resultando de ações coletivas.” (in Cattani et al, 2009: 310). Esta aceção remete para a diferenciação do ato de solidariedade não apenas no respeitante aos objetivos – uma no sentido de providência social e a outra, mais uma vez, apelando à ideia de movimento social –, mas também por relação à estrutura social. A primeira enquadra-se no que denominamos de solidariedade caritativa, que Laville sugere poder tornar-se num instrumento de poder e de dominação. A solidariedade como princípio de democratização apela à reciprocidade assim como à emancipação. É nesta última que se enquadrarão variantes nas formas de solidariedade, que podem, a nosso ver, ser diversas em função dos contextos espaciais – rurais e urbanos – assim como se registarão variações em função das classes sociais mobilizadoras dessas ações solidárias. Singer fala em desenvolvimento solidário entendendo-o como “um processo de fomento de novas forças produtivas e instauração de novas relações de produção, de modo a promover um processo sustentável de crescimento económico, que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se encontram marginalizados da produção social e da fruição dos resultados da mesma” (2004: 7). Nesta conceção, o autor não só retoma algumas dimensões do tradicional conceito de desenvolvimento sustentável, como introduz a questão da igualdade social, podendo situar-se o desenvolvimento solidário como movimento social na exata medida em que este se concebe com a pretensão de abolição do capitalismo e da divisão de classes. A sua perspetiva sugere que nos situamos atualmente num modelo misto de desenvolvimento, onde se dá uma combinação complexa entre diferentes modos de produção.  Dumas e Séguier (2004), identificando os limites do crescimento, avançam com a proposta de um modelo de desenvolvimento solidário, assente em três princípios: alteridade (reconhecimento do outro); reciprocidade (partilha de responsabilidades); cogestão (envolvimento concreto). Laville (2007) defende que a economia solidária agrega atividades que no seu conjunto se constituem como uma democracia da economia dada pelo envolvimento ativo dos cidadãos. Martins (2008) regista três elementos que têm conduzido à ampliação dos sentidos da prática democrática atual, a saber: i) experiências de democracia participativa; ii) os novos movimentos sociais com impacto transnacional; iii) o individualismo contemporâneo na redefinição da ação coletiva ou das individualidades reflexivas, que reforça o sentido do viver solidário que pretendemos retratar. Na mesma linha de ideias, Santos e Rodríguez, assinalam na sua quinta tese sobre as alternativas de produção que a “radicalização da democracia participativa e da democracia económica são duas faces da mesma moeda” (2003: 59). Por seu lado, Laniado (2008) enquadra a solidariedade enquanto tradução dos novos movimentos sociais. Destaca também três fatores de mudança trazidos por esses movimentos, nomeadamente, a emancipação, a experiência e o usufruto, e a solidariedade generalizada. Não deixa de ser interessante verificar que as abordagens teóricas mais recentes colocam a solidariedade não apenas como um elemento de providência social, mas como uma condição de participação pública, o que ressalta não apenas a procura do bem-estar enquanto sucesso da gestão democrática, mas também como condição para ampliação dos campos de ação da própria democracia. À economia social e solidária chamar-lhe-ão de “constelação de esperanças” (Namorado, 2004), outros, numa versão mais poética aclamam por uma “civilização do amor” (Miglieano, 1990). Mas se é consensual que a economia solidária é muito mais vasta do que este campo restrito de trocas, também nos parece redutor encará-las apenas sob um ponto de vista económico.

Da sociedade-providência à cidade-providência 

Nas discussões mais antigas e dicotómicas sobre o tipo de relações dominantes na cidade, sobressaía como sua característica o individualismo, a prevalência dos contactos secundários e a fragilidade nos laços sociais. Era como se o campo ou o rural representasse por si só o espaço privilegiado para funcionamento da sociedade-providência e a cidade se distanciasse claramente da característica de suporte social àqueles que aí viviam. Na verdade, os estudos urbanos têm manifestado dificuldades em associar «comunidade» à cidade. Como refere Fortuna (2006), tem-se desenvolvido uma representação dual na análise da cidade: i) por um lado, entende-se a cidade com uma função libertadora e, nesse sentido, essa constrói-se contra o controlo social exercido na comunidade; ii) por outro, a cidade é vista como uma rutura com a «boa» comunidade pré-urbana com vínculos e interações fortes, fazendo uma leitura da cidade como sendo anticomunidade. A vida nas cidades é marcada por alguns paradoxos: na mesma medida em que se parecem fragilizar os laços sociais entre os indivíduos, aumentam as redes de sociabilidade em que estes se incluem. Da mesma forma que se discutem as fragilidades na participação para a construção da ação coletiva, emergem, em paralelo, novas formas de reivindicação e de organização social. Um dos elementos que ressalta na teoria sociológica contemporânea, reporta-se ao individualismo que caracteriza as relações sociais e económicas. Philippe Corcuff afirma mesmo que o “individualismo constitui uma contradição cada vez mais forte do neocapitalismo” (2008: 214). Simmel (2001) e Wirth (2001) sublinhavam a diversidade e a multiplicação das relações sociais nas cidades. No entanto, se para o primeiro se evidencia a emotividade da vivência do urbano, o segundo procura aprofundar os critérios que diferenciam os espaços urbanos dos rurais. Do homem da cidade, Simmel (2001)  destacava as suas características de independência, individualidade, reserva mental, intelectualismo, espírito de cálculo, atitude blasé, indiferença face ao outro, cosmopolitismo. Simmel chama ainda à atenção que o aumento da população proporciona o aumento da liberdade de movimentos entre os indivíduos, mas fragiliza a sua coesão interna. Esta conceção sugere que em espaços de menor dimensão se regista, inversamente, uma maior coesão quando tal não pode ser visto de modo linear. Os estudos sobre o rural demonstram que esses espaços tendem a concentrar diferentes conflitualidades que se traduzem em diferentes lideranças, pelo que se revelam muito distantes daquilo que se poderia denominar de sociedade coesa. De resto, Granovetter (1973) refere que os vínculos fortes que podem levar à união local são também os responsáveis por maiores fragmentações sociais. E se coesão for considerada como harmonia, consenso, equidade, então não se tratará mais do que uma utopia, seja nos espaços metropolitanos, seja nos outros espaços. Já Wirth (2001) procura identificar os critérios de definição de uma cidade, a saber: dimensão, densidade, heterogeneidade. A partir destes critérios explora as características do modo de vida urbano. Ressalta a tolerância da diferença, a fragilização dos laços de solidariedade que garantiam a unidade da sociedade tradicional, a existência de mais contactos secundários do que primários e perda de sensação de participação. No quadro de um entendimento sobre as solidariedades urbanas, será interessante perceber de que forma se podem gerar laços fortes e trocas solidárias a partir desses mesmos contactos secundários. Nesta aceção parece registar-se o paradoxo da vivência na cidade em Wirth: se se consegue individualidade parece perder-se cidadania. Reconhecendo a satisfação material dos americanos face a um conjunto de indicadores de qualidade de vida, em Bowling Alone (cit. in Boggs, 2001; Durlauf, 2002), Robert Putnam também afirma a erosão do capital social, ou seja, o colapso de redes entre os indivíduos que seriam fundamentais para a comunidade, ação coletiva e participação democrática. No entanto, Granovetter (1973), numa aceção distinta de Wirth, refere que os vínculos débeis são produtores de alienação, e argumenta que a fragilidade nos vínculos é indispensável para as oportunidades individuais e para a integração dos indivíduos nas comunidades. Utilizando a sociometria para suporte ao seu argumento, Granovetter diz que a força de um vínculo é uma combinação de tempo, de intensidade emocional, e dos serviços mútuos que caracterizam esse vínculo. Assim, há uma maior probabilidade de se reforçarem os laços de amizade entre pessoas que interatuam com mais frequência. Singly (2006) elabora uma discussão sobre os laços gerados pelo individualismo. Há similitudes nas perspetivas de Granovetter e de Singly: o individualismo gera oportunidades individuais e o indivíduo moderno não se privará da sua liberdade para engendrar um laço social forte. A aceção de Wirth parece contrariar a noção de que a cidade é o palco privilegiado da participação e da opinião pública. No entanto, são elementos que só ganham sentido na cidade. “Não há opinião pública no campo, mas a meu ver, há uma que se constitui na cidade desde o século XIII. Em Florença ou em Paris, mesmo que seja para comentar sobre o Arno, o Sena ou o céu, todo um povo fala, se comunica, comenta.” (Le Goff, 1998: 56). Complementar à perspetiva de Simmel, Wirth afirma que o que se ganha em contactos físicos, perde-se em contactos sociais. A cidade é, em Wirth, o espaço em que se despreza o singular. Outros autores, traduziram de outra forma a fragmentação dos laços sociais nas cidades modernas. Neste sentido, Borja e Castells (2004) afirmam que neste contexto de globalização se afirma uma nova lógica espacial em que os espaços de fluxos dominam sobre os espaços de lugares. Não se trata apenas dos fluxos de informação, mas também dos fluxos de pessoas, de bens, de serviços, etc. Mas se os espaços de fluxos estão integrados à escala global, os espaços de lugares, onde se dá o quotidiano dos indivíduos, emergem cada vez mais fragmentados. Diremos que o cenário atual nos conduz à formulação de que os espaços de fluxos estão também a dar claros sinais de vulnerabilidade e de que a solução das “crises da metrópole” poderá passar pela integração dos lugares. É a alta integração destes espaços de fluxos, que os autores já reivindicavam ser os causadores das fragmentações sociais existentes, que está a gerar, na atualidade, todo o colapso do sistema financeiro e económico global como o fomos conhecendo nas últimas duas décadas. Se esta aceção se trata de futurismo ou realismo, só o tempo ajudará a esclarecer.  Se se admite que o indivíduo não consegue percecionar a cidade como um todo e que ele também não consegue apreender o seu lugar no conjunto, como de resto é afirmado por Wirth, o que é viver na cidade, efetivamente? Se esse viver é limitado espacialmente, porque não considerar a existência de redes fortes de sociabilidade nesses espaços em que o indivíduo constrói a sua própria cidade? E porque não considerar que é nesses espaços que se procuram lugares de cidadãos, se enfrentam as dificuldades do quotidiano, mas se reclamam respostas solidárias a problemas locais? Porque não considerar que é nesses enclaves, nesses fragmentos de cidade que se utiliza a solidariedade para enfrentar essa cidade em crise? Estamos longe de acreditar de que o homem na multidão (Poe, s/d) se pode alimentar dessa e que pode viver como um permanente errante. Acreditamos verdadeiramente que sem estabelecimento de laços sociais se está verdadeiramente só na multidão e que o viver em sociedade é marcado, necessariamente, pelo estabelecimento de redes sociais e por socializações permanentes que podem dar origem a práticas concretas de solidariedade em reciprocidade. A discussão sobre a possibilidade de construção de uma cidade-providência é indissociável de reflexões sobre o papel que aí se atribui à economia. Na verdade, a dimensão formal da economia, a discussão sobre o valor do «dinheiro», o centramento no trabalho remunerado como meio de estruturação de uma sobrevivência minimamente condigna, são dimensões que ganham relevo nas cidades. “O facto fundamental é que se tem muito mais necessidade de dinheiro na cidade do que no campo. Primeiro, porque muito raramente o camponês é levado a comprar coisas para as quais precisa de moeda.” (Le Goff, 1998: 36). O próprio Simmel (2001) afirmava que a cidade era a sede da economia monetária. Identificava um paralelismo entre o dinheiro e a racionalidade relacional. A metrópole apresentava uma relação produtiva impessoal, sendo quase que eliminada a economia familiar e a troca direta: “o dinheiro toma o lugar de toda a diversidade das coisas e sujeita todas as diferenças qualitativas ao critério do «quanto custa».” (Simmel, 2001: 35). Também Wirth refere que as relações sociais na cidade são calculistas e utilitaristas. Vai mais longe quando afirma que a relação monetária substitui as relações sociais, ou seja, verifica-se a mercantilização das relações sociais. Para este autor, todas as necessidades humanas têm respostas mercantilizadas. Tal como Castel (2001) afirma, a mercantilização de bens e serviços é um resultado do sistema capitalista e, particularmente, do processo de maior divisão do trabalho e da sociedade salarial que se criou.   Reconhecendo-se que a crise na cidade resulta de uma polarização de rendimentos, é certo que nem todos os cidadãos têm capacidade de acesso ao conjunto dos bens e serviços que a cidade oferece. Começa a ser cada vez mais evidente que a cidade é um campo fértil para a criação de alternativas à mercantilização crescente que se verifica nestes espaços. À escala global, o campo da economia social e solidária traduz a necessidade dos cidadãos partilharem entre si aquilo que a cidade transformou em capital económico. É importante perceber a especificidade das práticas solidárias na cidade, que possam estar a gerar a referida cidade-providência. Muito embora esta não seja hegemónica pode ser uma efetiva solução para a lógica «mercadocêntrica» que tem gerado as grandes desigualdades vividas em todo o mundo. De modo mais preciso, não poderemos falar de cidade-providência, mas de fragmentos da cidade onde se dá um modo de regulação providencial, não de caráter assistencialista cuja presença é já deveras antiga. Nessa cidade procuram-se modos de vida solidários, desenham-se alternativas não mercantis ou sendo de caráter mercantil vão sendo organizadas de modo redistributivo. Se quisermos olhar para a cidade-providência à luz das diferentes propostas de Santos, diríamos, em primeiro lugar, que essa se enquadra no conjunto das lutas pela emancipação social, entendida como resistência a todas as formas de poder (2000). No entanto, essa pode ter um enquadramento diferenciado consoante se trate de uma realidade do Norte ou do Sul. Aqui preferimos utilizar uma formulação mais precisa, que distinga o Sul no Norte e no Sul, e do Norte no Norte e no Sul. Embora diferentes, de uma forma geral os processos de segregação, de hiperexclusão, de pobreza são partilhados no Sul (seja do Sul ou do próprio Norte). As condições de inclusão, de riqueza, de dominação estão presentes em qualquer Norte (tanto do Norte como do Sul). Estas linhas divisórias dos processos de dominação e de exploração acompanham uma outra que Santos denomina de linha abissal (2009), que recorta transversalmente os dois mundos: o Norte e o Sul, onde se distinguem tensões diferenciadas. No primeiro caso, o autor identifica a tensão entre regulação e emancipação que associa às sociedades metropolitanas e, no segundo caso, a tensão entre apropriação e violência presente nos territórios coloniais. Se esta é uma proposta que nos permite analisar as grandes divisões à escala global, o processo complexifica-se quando se trata de trabalhar escalas mais reduzidas, nomeadamente ao nível do estudo de uma cidade, de um bairro, de um prédio. O que consideramos é que dentro da cidade-providência entram conflituantes estas dimensões de divisão do conhecimento/ reconhecimento do outro, e cruzam-se os diferentes modos de regulação independentemente dos contextos geográficos e de pensamento que tomemos como referência. E se nalguns casos essa cidade pode ser construída como uma alternativa ao modelo económico dominante, noutros essa é desenhada como forma de sobrevivência e de resistência para subsistência. Por adaptação aos conceitos de pós-moderno de oposição e de pós-colonial de oposição, desenvolvidos por Santos (2006), poderíamos dizer que esta cidade-providência poderá desenhar-se no sentido de uma cidade pós-colonial de oposição. Embora utópica, trata-se de uma cidade que procura a emancipação social e que luta pela rutura com a referida linha abissal. De qualquer forma, também não se constroem mudanças sem utopias, e os caminhos possíveis objetivados mostram que essas se vão conseguindo alcançar para de seguida se construírem outras.    

 Sistema compreensivo da cidade-providência no quadro dos diferentes modos de regulação e de dominação     



Fonte: Própria. Operacionalização das propostas de Santos (2000, 2006, 2009) ao conceito de cidade-providência

Será que estamos perante o emergir efetivo de uma nova metrópole, que valoriza os laços sociais entre os indivíduos e que, aos poucos, vai desmercantilizando parte das trocas que permeiam as relações sociais que aí ocorrem? Talvez a síntese que melhor enquadra este tema se encontra em Fontes (2008). Procura evidenciar que o território é atravessado por um cruzar de espaços domésticos com espaços de convívio comunitário, chamando a atenção para a existência de práticas sociais de tipo «comunidade» nas maiores metrópoles. Outros são os que seguem uma postura de mudança e de entendimento da cidade com o intuito de aí estruturar novas políticas para melhoria da condição urbana. Disso é exemplo o contributo de Ebenezer Howard (1999) com a sua proposta de cidade-jardim e o desenho de uma cidade que deveria sustentar-se em laços sedimentados de vizinhança e de práticas que incentivassem às sociabilidades quotidianas. Parte-se da reflexão sobre os laços sociais e do reconhecimento da crise relacional urbana, para a análise da construção das utopias urbanas que procuram a recriação desses laços.  
As dimensões analíticas sobre a cidade-providência

Quando equacionamos a emergência da cidade-providência, não estamos a defender que essa exista de forma dominante, estruturada ou consolidada. O que afirmamos é que na cidade, onde as desigualdades são flagrantes, podemos encontrar formas de emancipação social desenhadas por grupos de cidadãos e de cidadãs, com vista a proteger um coletivo face aos riscos. Mas trata-se de uma proteção que é desenhada do coletivo para esse mesmo coletivo. Não havendo uma só teoria que sustente a reflexão sobre este campo emergente, consideramos ser possível ler a cidade-providência a partir de quatro dimensões analíticas distintas, mas complementares entre si, a saber: económica, social, política e ideológica.

 

A economia solidária na cidade
 
Ao nível da dimensão económica, estas formas alternativas enquadram-se na abordagem mais ampla do que se denomina por economia solidária. Aqui se destaca todo o conjunto de trocas solidárias na cidade, não assente em princípios de especulação económica e que se traduz na luta contra a tendência crescente de mercantilização de bens e serviços, que Robert Castel procura evidenciar em Metamorfoses da Questão Social (2001). Um dos elementos centrais na economia capitalista é que esta transforma o mercado enquanto espaço de trocas e de relações de reciprocidade em relações de poder. Os preços representam parte desta face do poder intrínseco às relações do mercado capitalista, sendo resultado da correlação de forças (Lisboa, 2004: 294) e da transformação dos produtos em fetiches (idem: 301). Segundo Lefebvre, a cidade tornou-se o grande laboratório do homem, e é neste contexto que procura desenvolver a sua leitura a partir do direito à cidade, como condição de promoção de maior humanismo e de renovação democrática. Defende que a cidade não é mera consequência do processo de industrialização, mas que constitui sua finalidade (1991:141). A cidade pode ser vista no seu valor de uso, ou seja enquanto obra que é apropriada pelos seus residentes, como pelo seu valor de troca, em que a cidade é encarada como produto, orientada para o dinheiro, comércio e troca. É na cidade que se revelam os grandes contrastes entre ricos e pobres, entre poderosos e oprimidos, mas que, simultaneamente, não apaga o sentido comunitário, o sentimento de apego por parte dos cidadãos, ou o contributo para a construção da beleza da obra (idem: 4-5). A cidade tem um duplo papel: é lugar de consumo e consumo de lugar. Intensifica-se o valor de troca, mas mantém-se, mesmo que residual, o valor de uso. No entanto, assume que se dá a supremacia do valor de troca sobre o uso e o valor de uso, e que a cidade industrial praticamente anula este último (idem: 12-13). Na opinião do autor verifica-se uma crise teórica e prática da cidade. A mercadorização de algumas das dimensões centrais da vida humana é apenas uma das faces deste «capitalismo imprudente». Polanyi refere, a este respeito, que a atividade humana foi transformada em trabalho, sendo produzida para venda,  a terra é o outro nome que se dá à natureza que não é produzida pelo homem, e, por fim, o dinheiro torna-se um mero símbolo de poder de compra, sem que tenha sido necessariamente produzido, mas cuja vida é alimentada pelos bancos e finanças públicas (1980, cit. in Lisboa, 2004: 296). O mercado atual é dominado pelas grandes corporações de poder, pelos monopólios e pela especulação. É neste quadro que se alimenta a sua vertente hegemónica e de dominação. Mas dizer isto não anula a possibilidade de construção de alternativas, até porque essas são hoje uma realidade objetivada. A economia solidária é a sua expressão mais emblemática. A este respeito Santos e Rodríguez assinalam que o pensamento crítico emergente decorre do reconhecimento de três características negativas da economia capitalista, a saber:
“Em primeiro lugar, o capitalismo produz sistematicamente desigualdades de recursos e de poder. […] Em segundo lugar, as relações de concorrência exigidas pelo mercado capitalista produzem formas de solidariedade empobrecidas, que assentam no benefício pessoal em lugar de se basearem na solidariedade. […] Em terceiro lugar, a exploração crescente dos recursos naturais a nível global põe em perigo as condições físicas da vida na Terra.” (2003: 24-25).
Por isso, apesar da economia capitalista ser dominante, não podemos falar apenas numa economia, mas sim em economias, que também não se esgotam no campo da economia solidária. Se o mercado capitalista significa poder, a economia solidária evidencia a capacidade de empowerment (dar poder) aos seus participantes. Representa a mudança nas relações de poder dominantes na busca por um mercado democrático (Lisboa, 2004: 303-304). Entrámos claramente num contexto em que se sobrepõe o valor de troca sobre o valor de uso. Tudo passa a ser traduzível em dinheiro, mas como nos diz Lisboa et al (2006:4):
“…há um alto preço a pagar quando é apenas através da moeda que nos relacionamos, pois aqui estamos diante duma espécie de socialização asocial, a qual permite uma participação do indivíduo na sociedade de consumo, mas não o integra redes primárias de sociabilidade e apoio mútuo, gerando um indivíduo socialmente desintegrado, indiferente e alienado, afetivamente carente e neurótico. No extremo, esta forma moderna de socialização constitui uma socialização dessocializante, dessolidarizante, que nesta forma limite ameaça a continuidade da vida social.”
O dinheiro tornou-se, como referido por Olavo Bilac, no «envenenador de almas» e «prostituidor de consciências» (1997, cit. in Lisboa et al, 2006: 3). No seio da economia solidária encontramos o mote de variadíssimas expressões locais e globais, embora mantenham um cariz essencialmente contra-hegemónico. Mas o despoletar destes novos e velhos experimentalismos não pode ser isolado do seu contexto de ebulição. Foi durante a crise da Argentina, no início do novo século, que se deu a multiplicação das práticas solidárias com recurso a moedas alternativas, como resultado da inexistência de dinheiro oficial. Um coletivo de milhões de pessoas foi capaz de gerar alternativas não capitalistas. E rapidamente estas iniciativas se expandem por toda a América Latina, contexto geográfico extremamente rico seja na diversidade como na criatividade para a construção de «um outro mundo possível», mas que aos poucos se vai disseminando pelos vários continentes. A dificuldade em encontrar iniciativas espontâneas de economia solidária informal no Norte prende-se com o grau de formalização que se implantou nas suas estruturas sociais. Os pobres no Sul são cada vez mais entendidos como produto das contradições geradas pela dominação do modelo de crescimento neoliberal. Nos países do Norte os pobres continuam a ser encarados, nos discursos dominantes, como incapazes, aqueles que não têm competência para se adaptar ou que não se esforçam para tal. O informal confunde-se aqui com o ilegal, facto nem sempre visível no Sul, em que o informal pode ser condição de combate à pobreza e nem sempre é ilegal.

A cidade como palco de uma nova sociedade-providência
 
Ao nível social, emana destas novas formas a procura de sedimentação das redes sociais urbanas, para além de se traduzir, muitas vezes, em ações coletivas de combate a situações de maior vulnerabilidade social. Face a um Estado cada vez menos social recriam-se e inventam-se novas modalidades de sociedade-providência na cidade, que se traduzem num novo modelo de regulação social. De acordo com Santos, a sociedade-providência é entendida como: “[…] as relações de interconhecimento, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança, através das quais pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil e com uma lógica de reciprocidade semelhante à da relação de dom estudada por Marcel Mauss.” (Santos, 1993: 46).  Santos adianta que quando, nos anos 80, se referia à sociedade-providência, pretendia identificar trocas não mercantis de bens e serviços que apoiavam na promoção do bem-estar e proteção social que nos países desenvolvidos são assegurados pelo Estado (1995: i). Trata-se do reassumir das funções que vão sendo alienadas pelo Estado, recuperando práticas existentes antes do surgimento do Estado (Hespanha, in Cattani et al, 2009). A cidade-providência não se limita ao campo das solidariedades primárias, nem tampouco ao das solidariedades secundárias que decorrem dessas relações de interconhecimento identificadas por Santos. Na verdade, estas trocas de bens e serviços na cidade estendem o campo de possibilidades de ação entre desconhecidos, mas que através de redes sociais concretas se tornam possíveis. O interconhecimento não será, atualmente, condição prévia para o estabelecimento dessas trocas, mas sim a partilha dos valores, dos ideais, das condições ou modos de produção, das necessidades, etc. Acrescentaríamos que as trocas que medeiam a construção desta sociedade-providência podem até ter uma base mercantil, mas não capitalista. A existência de mercado não destitui a dimensão providencial. Esta última ficará diminuída sempre que as relações de mercado são estabelecidas numa base de exploração daqueles que se encontram em situação de opressão. Quando se trata de implementar justiça social nas trocas de bens e serviços, apoia-se à construção de uma maior igualdade, que é desenhada essencialmente pela sociedade como reação a um Estado e a uma Economia que lhes é cada vez mais distante. Por outro lado, não foi apenas no Sul que o Estado falhou na promoção do bem-estar social. De resto, a discussão sobre a sociedade-providência reflete a procura de alternativas face à falência do estado-providência (Nunes, 1995: 5). E as cidades são exemplos do melhor e do pior dos mundos sociais. Aí conseguimos identificar as maiores segregações sociais e espaciais. É também nesse contexto que se visualizam as consequências mais nefastas do capitalismo, como dos «não lugares»[3] na atuação do Estado. Santos (1995: ii-iii) procura identificar os elementos distintivos da sua conceção de sociedade-providência face às formulações mais tradicionais. Por um lado, considera que sociedade-providência e estado-providência são um par conceptual e que este último não anulou a existência da primeira. Por outro, os modos de providência são distintos. A sociedade-providência regida por uma providência societal assenta numa solidariedade concreta e o estado-providência é determinado por uma solidariedade abstrata. Por fim, entende que a sociedade-providência não é constituída por relações que devam ser entendidas como resíduos de sociabilidade pré-moderna, pelo contrário é constituída por relações que traduzem uma forma específica da sociabilidade moderna. A sociedade-providência traduz um conceito que é recuperado como um fenómeno pós-moderno, embora possa ter expressões contextuais diferenciadas. De qualquer modo, de acordo com Nunes, mantêm-se dois problemas. Por um lado, não é possível substituir o estado-providência pela sociedade-providência. Por outro, a sociedade-providência é caracterizada pela tensão entre o seu potencial humanizador e o seu potencial de geração de exclusões (1995: 6-7). Essas tensões sentidas na sociedade-providência estendem-se e amplificam-se na cidade. Num contexto em que se intensifica o individualismo nas relações sociais quotidianas, a cidade-providência na sua formulação e expressão fragmentada não resolve, por si só, todo o conjunto de problemas de pobreza e de exclusão social. O seu potencial emancipatório não tem equivalente num potencial universalizante que, teoricamente, deveria caber enquanto responsabilidade social do Estado. Sendo uma alternativa, a sua emergência não deve servir de argumento para um «Menos-Estado» que apenas resolva as situações-limite de maior vulnerabilidade social e que sirva somente para policiar a economia. A este respeito, Santos e Rodríguez destacam a necessidade das lutas pela produção alternativa serem “impulsionadas dentro e fora do Estado” (2003: 57).  

Um novíssimo movimento social urbano
 
Ao nível político, os modos de vida urbanos solidários podem ser encarados como novos movimentos sociais que refletem formas de ampliação democrática (Martins, 2008; Laniado, 2008). Visa-se refletir sobre a tradução política das práticas solidárias desenvolvidas na cidade, seja na adoção de práticas solidárias como forma de subsistência (particularmente válidas em classes mais populares), como de estruturação da mudança e, por isso, assente na construção de uma utopia que se quer concretizável, entre outras possibilidades. Para Touraine, o pensamento sobre os movimentos sociais é indissociável da discussão sobre a condição de classe. Na sua conceção um movimento social só existe quando uma ação coletiva visa alterar as condições de dominação existentes numa dada sociedade. “O movimento social é a ação, ao mesmo tempo culturalmente orientada e socialmente conflitual, de uma classe social definida pela sua posição de dominação ou de dependência no modo de apropriação da historicidade, dos modelos culturais de investimento, de conhecimento e de moralidade, para os quais ele próprio é orientado.” (Touraine, 1996: 104). Se bem que, evidentemente, essa condição de dominação que sustenta a emergência dos movimentos sociais nos pareça manter o sentido quando se discute a raiz da cidade-providência, certo é que esta complexifica o olhar sobre os motivos e as consequências que permeiam este movimento. Não bastaria alterar as situações de dominação ou de opressão, está em causa a mudança nas próprias estruturas de pensamento, a forma como se constrói a economia e a produção, o modo como se estabelecem as redes sociais, a própria forma como se governa a cidade.  Aqui entendemos a cidade-providência como um novíssimo movimento social que se traduz em formas de denúncia das novas formas de opressão, em paralelo com a denúncia das teorias e movimentos emancipatórios, tal como defendido por Santos (1996). Trata-se de “pensar uma «cidade» pelo seu «avesso», é reconsiderar e rever o lugar do acordo original, resgatar o espaço da cidade para o pleno exercício da composição de óikos e nomos, de uma economia de relações que se articulam no espaço e no tempo” – o que é sugerido por Lopes (2003: 269), a respeito do Movimento dos Sem Terra e que se enquadra no sentido mais lato do entendimento desta cidade que aqui propomos. Gohn associa aos movimentos sociais tanto à componente de denúncia, como à de pressão direta e indireta. Têm o caráter de representação de forças sociais que se organizam e geram um campo de atividades e de experimentação social, donde emana a criatividade e a inovação social. À semelhança de Santos (1996), Gohn atribui aos movimentos sociais a atuação de acordo com uma agenda emancipatória (Gohn, 2003: 13-14). Não se tratam dos movimentos sociais com as características dos movimentos pelas lutas dos trabalhadores de finais do século XIX e de inícios do século XX. Também se distinguem dos novos movimentos sociais por causas urbanas, ambientais ou feministas, surgidas, essencialmente, na segunda metade do século XX. Acompanham a transição para o século XXI e reclamam por uma nova economia, com cariz pós-materialista, pós-consumista e pós-utilitarista. Também não se traduzem em reivindicações centradas nas condições específicas de vida de grupos da população que são assolados por situações de exploração laboral e estendem-se para lá da conscientização global sobre problemáticas concretas sobre as quais urge atuar. Este novo movimento que aqui se pretende retratar, a par de outros (donde destacaríamos a emergência e proliferação de práticas de governação participada onde o ator central é o Estado), reclamam por uma nova estruturação social. Parte-se do reconhecimento de uma crise social generalizada, em que os cidadãos estão cada vez mais distantes da vida social e alienados por força de uma condição capitalista que materializou e mercantilizou grande parte dessa vida – até mesmo valores sociais que se poderia acreditar serem imunes a este processo, como a solidariedade, o amor, a dádiva. Não podemos olhar para estes novos movimentos sociais urbanos de forma ingénua. Como nos refere Borja (2005: 30-31), os movimentos sejam de moradores ou de caráter cívico podem conter em si o melhor e o pior das gentes. Se nalguns casos podem reclamar pela justiça social urbana, noutros podem estar imbricados de lógicas excludentes e não solidárias, sendo o caso dos movimentos xenófobos ou racistas. Por isso propõe a existência de governos de proximidade, em que se articule a democracia deliberativa com a participativa, com identidades e sentimentos de pertença face ao caráter de anonimato e de inacessibilidade dos processos de globalização, que façam frente à frigidez do mercado e ao procedimentalismo eleitoral. Se ao nível urbano, a questão da moradia e de acesso à habitação se mantém na agenda, surgem novas reivindicações. Houve uma mudança do curso dos movimentos em função da alteração do próprio contexto socioeconómico. Os movimentos urbanos passam a englobar a luta pela produção de proximidade e por alternativas de subsistência, que procuram criar uma rutura com os modos de produção, de (re)distribuição e de consumo impostos pelo modelo capitalista neoliberal dominante. Passa-se para a defesa da pluralidade dos direitos e alarga-se o espectro do sentido do viver a cidade. Os novos movimentos urbanos englobam tanto a discussão do acesso à cidade, como a luta contra a violência urbana ou a mobilização para a participação no governo sobre a cidade (Gohn, 2003: 31).
 
A reinvenção da emancipação social urbana e a construção do direito à cidade
 
O olhar sobre a cidade-providência implica uma dimensão ideológica evidenciada na luta pela emancipação social e, nalguns casos, pela reinvenção da emancipação social (Santos, 2000), onde as práticas são desenvolvidas nos dois lados da linha abissal (Santos, 2009) e que intersetam dimensões legais e ilegais a partir das quais se constrói a cidade. Sendo a cidade uma entidade cuja construção é mediada pelo direito, uma das suas tensões dialéticas remete para o facto de contemplar, simultaneamente, momentos de alegalidade e de ilegalidade, o que faz com que a conquista de novos direitos ou a construção de novas instituições que decorrem da própria dinâmica urbana não se possa realizar sempre a partir do marco legal pré-existente (Borja, 2005: 23). Independentemente do ângulo analítico, a cidade-providência constrói-se a partir de múltiplos experimentalismos que reivindicam novos valores sociais e culturais. Reclama por novos direitos do viver a e na cidade. Por oposição ao conformismo, reclama pela mudança. Por oposição ao pensamento dominante que gera invisibilidades, essa cidade constrói-se na luta pelas visibilidades, pela rutura com a linha abissal. Lefebvre defende uma ciência da cidade, que a tome como objeto e que apoie na sua transformação. A sua formulação medeia esta reflexão da cidade-providência à luz da dimensão política, mas também da dimensão ideológica. Não se trata de pensar na reconstituição da cidade antiga, mas sim na construção de uma nova cidade que assente em bases completamente distintas das anteriores. Para tal propõe a procura de um novo humanismo, que traduza a procura de um outro homem, o homem da sociedade urbana (1991: 104-107). Lefebvre apela a uma reforma urbana que tem de ser revolucionária, “não por força das coisas, mas contra as coisas estabelecidas”. Tem de ter um suporte social e das forças políticas para se tornar atuante, por isso deve apoiar-se na classe operária, a única com capacidade de terminar com a segregação que lhe é dirigida. A classe operária não fará sozinha essa reforma urbana, mas sem ela essa reforma urbana não será possível. O calar desta classe significa a perda da sua missão histórica e portanto a perda do «sujeito» e do «objeto». A classe operária é aquela que nega a estratégia de classe que tem sido dirigida contra si, assim como reúne os interesses daqueles que habitam a cidade. A ciência da cidade terá aqui o papel de fundamento teórico e crítico. É uma ciência transformadora, que não se limita a analisar os fenómenos, mas que em complemento com outras forças sociais – donde a classe operária adquire o papel principal – deve conseguir estruturar o caminho dessa reforma urbana (idem: 111-112). Também a pensar no sentido da mudança que é construída coletiva e individualmente, Borja propõe a cidade conquistada não como objeto mas como objetivo. Mas a cidade só conquista se for conquistada. Parte da hipótese central de que cidade, espaço público e cidadania são conceitos interdependentes. Entende a cidade enquanto realidade histórico-geográfica concreta, o espaço público relaciona-o a lugar de representação e de expressão coletiva da sociedade e, finalmente, a cidadania remete para o direito público. Nessa conceção dialética a cidade é composta por direitos individuais e coletivos. No entanto, como os indivíduos não vivem sozinhos, considera que os direitos individuais têm uma dimensão coletiva e sem direitos e deveres coletivos não existe cidade (idem: 22). A cidadania é vista como uma conquista, tal como a cidade, que nunca se completa totalmente e que nunca é definitiva. “A cidade é o nascimento da história, o ouvido do ouvido, o espaço que contém o tempo, a espera com esperança. […] Uma cidade que se conquista individualmente face aos que se apropriam privadamente da cidade e das suas zonas principais.” (idem: 26). A cidadania constrói-se não apenas através da integração física, mas também simbólica. Pressupõe reciprocidade – não basta sentir-se cidadão, é preciso ser-se reconhecido coletivamente enquanto tal. Para Borja, o direito de cidadania adquire um caráter de centralidade. A construção do direito à cidade, para Lefebvre, é parte da reforma urbana e da ciência da cidade que visa a construção de uma praxis concreta. O viver a cidade depende dessa prática que só pode ser conseguida com o apoio daquela classe que mais tem sido alvo de privação nesses direitos – a classe operária –, embora reconheça que a miséria se venha a estender para outros grupos e classes sociais. A cidade atual é regida por um conjunto de contradições que servem de pretexto para a emergência de um conjunto de direitos concretos (à habitação, saúde, educação, trabalho, cultura, etc.). É neste contexto que o direito à cidade se estrutura como uma exigência que, globalmente, o autor descreve como direito à vida urbana (Lefebvre, 1991:116). A reivindicação desse direito deve ser um “meio e um objetivo, um caminho e um horizonte” (idem: 143). Gera-se o contexto em que se desenha a possibilidade de um novo humanismo – do homem urbano – onde a cidade se torna obra e apropriação. Mas se a classe operária até pode não ter esse sentido espontâneo para a criação de obra, esse pode ser garantido por um suporte da filosofia e da arte. Trata-se de uma revolução económica, política e cultural de caráter permanente (idem: 144-145). Para Borja, também a cidade é “o passado apropriado pelo presente e é a utopia como projeto atual. […] Não há urbanismo sem conflito, não há cidade sem vocação de mudança. A justiça urbana é o horizonte sempre presente na vida das cidades.” (2005: 27). Sendo o direito à cidade entendido como uma conquista, as perspetivas atuais apontam para um olhar multidimensional que ultrapassa em muito a conceção redutora do direito à habitação, que tradicionalmente foi entendido como condição elementar da vivência urbana. A cidade-providência enquanto novo experimentalismo socioeconómico e democrático é o exemplo da luta pela conquista de direitos e da vontade em construir uma outra vida urbana, que vise a desmercadorização da vida quotidiana, que procure a interculturalidade, que incentive as relações de vizinhança, que transforme a cidadania em condição de partida para o viver coletivo. A discussão sobre o direito à cidade passa a ser alimentada pelo reconhecimento da crise de «citadinidade» (Ascher, 1998). Analisa-se a cidade no sentido mais amplo de associação a cidadania[4], discutindo os direitos mais diversos donde o acesso à habitação é apenas um dos elementos. Discutem-se as possibilidades de acesso ao espaço público, o direito à mobilidade e a transportes condignos, o direito ao emprego, o direito a serviços de saúde e de educação, o direito à segurança, o direito a serviços públicos básicos (água, luz, saneamento), o direito à cultura e ao lazer, etc. A amplificação do debate destes direitos faz das cidades os espaços de referência da política pública e das suas múltiplas experimentações possíveis.  
Conclusão
 
Caberá refletir então sobre a forma como estes modos de vida emergentes podem contribuir para a mudança nas políticas públicas sobre a cidade. Esses não serão generalizáveis, não os encontraremos senão nalgumas esquinas das nossas cidades. Mas procuram modelos de vivência coletiva em equidade e coesão. Trata-se de conquistar a cidade e de, aos poucos, conquistar novas formas de regulação de toda a sociedade. “A cidade deve conquistar-se contra o medo de sair do marco protetor do contexto familiar conhecido, vencendo o risco de se meter no ruído e na fúria urbanos, superando as frustrações que comporta não obter imediatamente tudo o que as luzes da cidade parecem oferecer. (…) A pessoa livre é aquela que sente que, à sua maneira, conquistou a cidade. Então pode exercer as liberdades urbanas.” (Borja, 2003). É possível sustentar que mesmo num quadro de fragilização dos laços sociais, mas de sedimentação de redes interpessoais amplas, a capacidade de auto-organização dos indivíduos pode conduzir à construção de novas formas de entre-ajuda e de novas redes sociais nas cidades. Não teremos, por isso, a cidade, mas as múltiplas culturas que se podem entrecruzar no redesenhar permanente da cidade. Tal como Fortuna reivindica da “reconceptualização da cidade como espaço fragmentado e disputado” emerge o reconhecimento de que “só no cruzamento de diferentes campos discursivos e tradições intelectuais pode a cidade reencontrar-se na plenitude da sua multivocalidade e polivalência” (2001: 4). Com esta proposta temática pretende-se aferir da emergência de práticas solidárias nos contextos urbanos. Considera-se que na sua diversidade, as cidades contemplam consensos e conflitos, assim como delas emergem lógicas individualistas a par com formas de construção coletiva da ação. Fruto da sua multiculturalidade e da sua multiespacialidade, a cidade revela-se como um palco complexo de relações sociais, que estarão na base da sua capacidade criativa e de inovação. Ao nível social, é nas cidades que verificamos o desabrochar de uma multiplicidade de experimentalismos, com vista à promoção da coesão mas também da recriação dos laços sociais.
 
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[0] Texto conforme o novo Acordo Ortográfico. Convertido pelo Lince.

[1] Tratam-se de práticas que têm uma dimensão territorial mais abrangente do que as cidades. No entanto, constitui nosso objetivo procurar perceber qual a sua especificidade nestes contextos.

[2] Com níveis de consolidação diferenciados. Veja-se a título de exemplo o caso de África em que, nalguns países, o governo Estatal se confunde com o governo das cidades desses países.

[3] Utilizamos esta figura metafórica por relação ao conceito de não lugar de Marc Augé, tratando-se de um espaço desmerecedor de uma classificação concreta pela sua não utilização e não apropriação, traduzindo-se essencialmente num lugar de passagem onde se verifica o desvio do olhar.

[4] Veja-se a este respeito a Carta Mundial do Direito à Cidade [Fórum Social das Américas, Quito, julho de 2004;  Fórum Mundial Urbano, Barcelona, setembro de 2004; V Fórum Social Mundial, Porto Alegre, Janeito de 2005]. Já em 2002 se havia construído a Carta dos Direitos Humanos das Cidades (Freitag, 2002).







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