01/11/2010
ANO X N 6 NOVEMBRO / DEZEMBRO 2010
Editor Mauro Kleiman
Publicação On-line Bimestral
Comitê Editorial
• Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
• Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional)
• Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. em Planejamento Urbano e Regional)
• Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)
• Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)
• Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
• Hugo Pinto (Prof. Dr. Universidade do Algarves – Portugal)
IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq
LABORATÓRIO REDES URBANAS
LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS
Coordenador Mauro Kleiman
Equipe Aline Alves Barbosa da Silva, Priscylla Conceição Guerreiro dos Santos, Fernanda Colmenero de Melo e Moura
Pesquisadores associados
Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva
Artigos
Algumas notas sobre possíveis relações entre redes técnicas e a biopolítica foucaultiana
Fernando Augusto Souza Pinho
Expansão urbana e redução de áreas verdes na localidade do Cabula VI região do miolo da cidade do Salvador, Bahia
Augusto César da S. M. Copque, Fabíola Andrade Souza, Denise Vaz de Carvalho Santos, Rosevânia Cerqueira da Paixão
A via expressa “Linha Amarela” e seus impactos no território da metrópole do Rio de Janeiro
Mauro Kleiman
Algumas notas sobre possíveis relações entre redes técnicas e a biopolítica foucaultiana
Fernando Augusto Souza Pinho
Introdução Não há como negar a importância das redes de infra-estrutura e de serviços urbanos na contemporaneidade. Certamente o que conhecemos hoje sob a alcunha de “cidade moderna” tem como uma de suas mais importantes referências a introdução destes equipamentos e serviços no espaço urbano. Seria sensato também afirmar que essas redes atuaram como causas e conseqüências do que se conhece como modernização das cidades, ou, como denominam Fernandes e Gomes (1998), “modernização urbana”[1]. O conceito de rede deriva da palavra em latim “retiolus” e designa um conjunto de linhas entrelaçadas, o que aponta para a ligação de pontos separados (OLIVEIRA, 2008). A rede pode ser pensada como um entrelaçamento de fios e nós articulados, que formam uma malha. No caso da rede urbana, por exemplo, poderíamos representar os centros urbanos como os nós da rede e os fios que os articulam seriam as estradas, os rios, as ferrovias, etc. Os estudos sobre redes têm sido pautados por interesses e abordagens multidisciplinares, abrangendo campos disciplinares como a Geografia, o Urbanismo, a Economia, a Sociologia, entre outros. Uma determinada corrente teórica propõe definir as redes a partir de dois pontos de vista: um que considera a sua realidade material, o que configuraria uma rede técnica; outro que contempla os seus aspectos sociais, sendo assim chamada de rede social. Outra elaboração teórica (complementar ou interdependente da anterior) destaca a espacialização das redes, através de seus elementos espaciais concretos (a parte tangível das redes que configura uma determinada estrutura espacial) e/ou seus elementos sócio-espaciais (de menor visibilidade, são representados pelas relações sociais que dão dinamicidade às redes, imprimindo-lhes elevado grau de flexibilidade e de adaptação a novas demandas e configurações). Neste ensaio, interessa-me especialmente problematizar as redes técnicas, promovendo um certo deslocamento em sua abordagem. Ainda que provisoriamente e tateando a questão, pretendo ir além da questão técnica (ou do tecnicismo), buscando outro olhar sobre a temática e assim procuro investigar as possíveis relações entre a biopolítica, conforme pensou Michel Foucault, e as redes técnicas. Para essa discussão, numa tentativa de restringir a análise, reduzindo sua complexidade, tratarei especificamente da rede de transporte urbano e o possível papel reservado ao controle do território e da população, segundo o conceito foucaultiano de biopolítica. Inicio essa reflexão, na primeira parte do texto, tratando sobre a importância da máquina (e da técnica) no desenvolvimento do modo de produção capitalista. Na segunda parte procuro orientar a discussão para as relações entre capitalismo, cidade e transporte. Em seguida, apresentando elementos importantes do pensamento foucaultiano, sugiro algumas formas de se relacionar o nascimento da biopolítica e o aparecimento das redes técnicas.
O Modo de Produção Capitalista e as Redes Técnicas
Segundo Marx (1968), a máquina surgiu com o propósito de regular a insubordinação do trabalhador ao capital. Surgiu não como forma de aliviar a carga de trabalho, mas sim como meio de baratear os custos de produção, tornando o trabalhador um elo cada vez mais desnecessário, a não ser no que diz respeito à busca de majoração da mais-valia. No momento em que a ferramenta é finalmente retirada das mãos do trabalhador, tornando-se parte constituinte de uma máquina (nas palavras de Marx, a “máquina-ferramenta”), as antigas formas de resistência à exploração perdem suas bases de sustentação. Assim se completa a separação entre o trabalhador e seus meios de produção. A máquina então aparece como materialização do capital e como um elemento estranho e hostil ao operário (OLIVEIRA, 1977). Desde cedo, nas ferramentas em que o homem agia como força motriz, este passou a ser substituído pela tração animal ou pelas energias eólica ou hídrica. Com a revolução industrial o trabalhador que operava com uma única ferramenta é substituído por uma máquina que opera com mais de uma ferramenta e acionada por uma única força motriz. Ou seja, as características da máquina-ferramenta vão tornando-se mais complexas em termos de função e de energia motriz. Do uso da força humana e da força animal, imperfeitas, caras, indisciplinadas, limitadas e descontínuas, se chega ao uso de outras formas de energia de maior produtividade. O uso do vapor, neste sentido, veio resolver os problemas advindos do uso do vento e da água como forças motrizes, numa demonstração da incansável busca por maior controle da natureza exclusivamente para fins produtivos, e não para melhoria das condições de vida do operário (LESSA & TONET, 2008). Com o tempo, o motor, como um dos três elementos da máquina, assume um maior grau de independência, já livre das contingências da força humana e animal. Um motor pode agora acionar várias máquinas-ferramenta simultaneamente, o que vai demandar, no intuito da acumulação, maior capacidade motriz e de seus mecanismos de transmissão. Afastando-se das forças motrizes primárias e criando uma base material mais adequada aos seus propósitos, penso que é o “sistema de máquinas”[2] que vai levar ao ápice a idéia de que a indústria moderna passou a caminhar sobre seus próprios pés. Esse “grande autômato”, embora não prescinda totalmente do trabalhador para algumas funções específicas, tende a ser mais perfeito na medida em que permite maior continuidade do processo de produção e que promove menor interferência humana. Ao restringir, portanto, a ação humana à vigilância da máquina em casos eventuais, potencializa-se aí o surgimento de um sistema automático, passível de contínuo aperfeiçoamento (em direção a maior produtividade e maior independência do trabalho vivo).
“A produção mecanizada encontra sua forma mais desenvolvida no sistema orgânico de máquinas-ferramenta combinadas que recebem todos os seus movimentos de um autômato central e que lhes são transmitidos por meio do mecanismo de transmissão. Surge, então, em lugar da máquina isolada, um monstro mecânico que enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus inumeráveis órgãos de trabalho.” (Marx, 1968, p. 435)
Vê-se, então, o grau de importância da máquina para a eficiência e eficácia da produção capitalista em termos de economia de mão-de-obra e tempo. O homem como um apêndice da máquina e como uma de suas engrenagens, máquinas que criavam máquinas e as redes de suporte a essas máquinas: eis a forma como o capitalismo se ergueu sobre seus próprios pés, a partir de uma base técnica que lhe é própria. A partir desta análise feita por Marx, uma ousada analogia poderia ser pensada acerca das relações entre homem, máquina e as redes técnicas. Vejamos: as redes técnicas urbanas não poderiam ser pensadas como a materialização do capital no âmbito citadino? Afinal, grande parte delas foi financiada pelo capital privado ou foi construída pelo poder público com o objetivo de criar condições atrativas para o capital privado. De uma forma ou de outra, a instalação destas redes não foi um fator de sucesso para que as barreiras ao domínio do capital caíssem por terra? Considero não ter sido ao acaso que o desenvolvimento do regime capitalista se debruçou em responder às seguintes questões: Como promover a circulação de bens e mercadorias com menor custo? Como realizar o deslocamento da força de trabalho, com um menor dispêndio de esforço físico de modo que esse pudesse ser aplicado na eficiência do trabalho? Como tornar viável a retirada progressiva das classes populares das áreas centrais urbanas, mantendo-as na periferia das cidades, contribuindo assim com a especulação imobiliária? Estas e outras questões só poderiam ser respondidas através da implantação e da expansão das redes de infra-estrutura e de serviços urbanos. Obviamente, não se pode desconhecer o fato de que o alcance e o uso dessas redes se dão de forma seletiva e desigual no território, segundo um instável equilíbrio entre a conveniência das forças capitalistas e as reivindicações sociais.
Capitalismo, Cidades, Transporte
Na contemporaneidade, em tempos de “globalização”, a liberdade dos fluxos se impõe como importante estratégia econômica para garantir a acumulação do capital. Nesse contexto, o sistema de transportes, composto por redes de infra-estrutura e de serviços[3], tem um papel de destaque, já que é através dele que se realizam a distribuição e/ou circulação de matérias-primas, objetos e pessoas. Aliás, desde os seus primórdios, o regime capitalista deve muito de sua expansão a este sistema e suas redes. A partir do momento em que foi criado até os dias de hoje, o sistema de transportes continua a cumprir sua função básica, com maior ou menor nível de atualização tecnológica e segundo o jogo estabelecido entre interesses públicos e privados para a manutenção ou redução das desigualdades sociais. Lembremo-nos, então, dos deslocamentos realizados graças à força humana[4] na cidade colonial. Os limites do território urbano estavam determinados pelo alcance desses precários deslocamentos. Predominava uma separação nítida entre o espaço rural e o urbano, cuja centralidade era ainda restrita ao núcleo original da cidade. Com a transição para o regime republicano passa a vigorar outra percepção do espaço e do tempo nas cidades. Surgem os bondes a tração animal e passa a vigorar um serviço de transporte coletivo urbano: regular, com tarifa, horário e itinerário definidos[5]. Vejo este momento como o início de uma complexa relação de interdependência entre a oferta de transporte e a expansão dos limites territoriais urbanos. Ao iniciar o século XX, no emblema da moderna cidade republicana, instalam-se os bondes elétricos em substituição aos bondes a tração animal. Na cidade de Belém[6], por exemplo, o serviço de bondes elétricos foi concedido ao capital inglês, enquanto que a sua fiscalização continuava sob a responsabilidade da Intendência Municipal. Eis a modernidade na belle-époque brasileira: o bonde a tração elétrica substitui o bonde a tração animal, o capitalista inglês substitui o capitalista nacional. No fim dos anos 40, o ônibus, que já disputava mercado na cidade desde a primeira década do século XX, passou a ser a modalidade hegemônica em Belém, graças à extinção dos bondes elétricos. Com diferenças quanto às datas de extinção dos bondes elétricos, aqui o caso de Belém ilustra bem a experiência de outras capitais brasileiras: a opção pelo rodoviarismo e a expansão da indústria automobilística representam o sotaque norte-americano que assumiu a ideologia do progresso em terras brasileiras. Feita esta breve retrospectiva, pergunto: Qual o elemento comum nessa processual modernização tecnológica do transporte nas cidades brasileiras? Respondo: a demanda por circulação, no tempo e no espaço, ou seja, maior velocidade frente à ampliação do tecido urbano. Além disso, é muito importante destacar que a imagem de uma cidade moderna, além de sua imaterialidade, foi construída também por elementos materiais, entre os quais se encontram as redes técnicas (água, esgoto, energia elétrica, transporte). No caso dos bondes elétricos, por exemplo, sua introdução como uma novidade tecnológica e um dos mais expressivos símbolos de um ideal de “modernidade” almejada pelo poder público municipal, representou uma das mais significativas intervenções urbanísticas, produzindo diversos efeitos na sua dinâmica sócio-espacial. A esse respeito, Sarges (2000, p. 120-121) escreveu:
“O serviço de viação urbana por bondes elétricos se constituiu num dos “grandes” exemplos de transformação na dinâmica da vida urbana de Belém do início do século XX, pois o bonde era uma dessas obras nascidas do progresso técnico apresentando-se de um modo fantasmagórico, quando causa impactos tecnológicos nas “mentalidades” da população e quando mostram suas articulações internas, na medida em que características como tamanho e automatismo acabaram redundando em construções monstruosas.”[7]
Biopolítica e Redes Técnicas
Vimos que a imagem de uma cidade moderna na virada do século XIX para o XX foi em boa parte constituída pela introdução das redes técnicas, em especial a elétrica, viária, de transporte e de água e esgoto. Não esqueçamos que a cidade moderna como uma abstração, como um discurso, necessitava estar ancorada em alguma materialidade de modo que não apresentasse um conteúdo vazio de significados. E uma significativa parte desta ancoragem material do discurso sobre a cidade moderna se deu através da instalação das redes técnicas, ainda que sua espacialização tenha sido e continue seletiva e concentrada. Nesta seção, procurarei apresentar argumentos que apontem para a minha hipótese de que as redes técnicas urbanas representam um dos dispositivos biopolíticos que objetivam, entre outros propósitos, a normalização da conduta dos indivíduos no corpo social. Mais uma vez, reforço aqui que tal reflexão será feita especificamente para o sistema de transporte urbano. Reformulando e especificando, assumo a hipótese que o sistema de transporte urbano, através de suas redes e serviços, constituiu-se em um exemplo de dispositivo biopolítico. Antes de mais, faz-se necessário estabelecer um ponto de partida. De que lugar eu falo para construir essa hipótese? Recorro essencialmente ao importante legado teórico deixado por Michel Foucault (1926-1984). Filósofo sui generis, Foucault lançou novos olhares à compreensão do social, cujos reflexos revolucionaram campos de saberes e de práticas para além da filosofia, tais como a história, a psicanálise, o feminismo, as ciências sociais, entre outros. Todavia, reconhecendo os limites deste ensaio, não será possível fazer jus ao arcabouço teórico-metodológico foucaultiano e, por esta razão, ainda que sob o risco de cair em simplificações, tentarei ir direto aos pontos que me interessam. Uma das mais importantes contribuições de Foucault é representada pela analítica do poder e sua relação com o saber. A novidade está em que o poder não seria uma essência, algo localizado somente nos aparelhos do Estado; ao contrário, o poder é uma prática social, historicamente constituída, e que se exerce em todo o corpo social como uma rede e da qual não se pode escapar. Por isso não existiriam pontos específicos de localização do poder, muito menos os seus donos e aqueles que dele estão excluídos. Onde há poder, há resistência, uma espécie de contrapoder, com os mesmos pontos móveis e transitórios. O poder, para Foucault, não poderia ser visto apenas em sua conotação negativa, como repressão, destruição e violência. Foi importante reconhecer também sua positividade, o seu impulso para a criação e transformação. Nesta dupla concepção, o poder tem uma “eficácia produtiva”, já que agindo sobre o corpo busca torná-lo útil e dócil (MACHADO, 2009). Em “Vigiar e punir”, Foucault demonstrou que o indivíduo era o alvo daquilo que ele chamou de “disciplina” ou “poder disciplinar”, cujo objetivo era torná-lo um corpo dócil, “um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2009b, p. 132). Nesse viés o poder disciplinar teria quatro características básicas. A primeira é um tipo de poder que organiza o espaço, distribuindo os indivíduos segundo um determinado objetivo específico. O controle do tempo é a segunda característica, que faz os indivíduos sujeitarem-se ao tempo visando o máximo de eficiência e eficácia produtiva. A terceira característica refere-se à vigilância como um instrumento de controle, onipresente e contínuo e sem limites, aos moldes do Panopticon, de Jeremy Bentham. Por fim, a última característica aponta para a presença de um registro regular do que era conhecido, o que implica que o exercício do poder produz um saber. Tem-se, portanto, que o poder disciplinar é um exemplar típico das relações de produção industrial capitalista, tendo em vista que foi através dele que se produziu o indivíduo necessário para o seu funcionamento e ampliação. Foi em “História da sexualidade”, originalmente publicado em 1976, que Foucault chegou à descoberta dos conceitos de biopoder e de biopolítica. Ao estudar o “dispositivo da sexualidade”, Foucault observou que não somente o sexo era alvo de poderes disciplinares, mas também todo um conjunto de procedimentos que gerenciava a vida e a morte. Ou seja, na virada do século XVIII para o século XIX, surge uma nova forma de exercício do poder, não mais direcionada ao indivíduo – como age o poder disciplinar, mas sim à “gestão calculada da vida da população de um determinado corpo social” – o biopoder (DUARTE, 2009). Porém, como destaca Foucault, a passagem do poder disciplinar para o biopoder não significa a exclusão de um pelo outro e sim a integração de ambas as modalidades. A biopolítica seria constituída, como modo de exercício do biopoder, pelos mecanismos de normalização da vida da população (FONSECA, 2009). Fazer viver e deixar morrer sugerem um traço característico da biopolítica. Biopoder, biopolítica, mas e o que seria um dispositivo? Para Foucault (2009a, p. 244), o dispositivo seria um “conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas.” A atuação de um dispositivo é sempre estratégica, através de relações de força que sustentam determinados saberes e que, por sua vez, também as sustentam. Como então eu poderia trazer essa discussão para o campo de ação das redes técnicas? Inicialmente lembremos que as redes técnicas surgiram no processo de modernização da cidade e como elementos de racionalização do espaço urbano. De certo que a estratégia disciplinar estava presente nessa ordem. Vejamos um trecho bem ilustrativo de “Vigiar e punir”:
[A disciplina] “imobiliza ou regulamenta os movimentos; resolve as confusões, as aglomerações compactas sobre as circulações incertas, as repartições calculadas. Ela deve também dominar todas as forças que se formam a partir da própria constituição de uma multiplicidade organizada; deve neutralizar os efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominá-la: agitações, revoltas, organizações espontâneas, conluios – tudo o que pode se originar das conjunções horizontais. Daí o fato de as disciplinas utilizarem processos de separação e de verticabilidade, de introduzirem entre os diversos elementos do mesmo plano barreiras tão estanques quanto possível, de definirem redes hierárquicas precisas, em suma de oporem à força intrínseca e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante.” (FOUCAULT, 2009b, p. 207)
Que grande semelhança com as práticas urbanísticas do século XX! O saber urbanístico, em nome da racionalidade e funcionalidade do espaço citadino, celebra a hierarquia, a segregação e a circulação... Circulação mas também a imobilidade, afinal todos circulam, desde que saibam exatamente o seu devido lugar. Hierarquia, segregação, circulação e imobilidade são igualmente produtos das redes técnicas. As redes de água, esgoto, energia elétrica e comunicação permitem a valorização de áreas da cidade (em função de sua maior ou menor cobertura) e aceleram a individualização da vida em função do conforto no ambiente íntimo. As redes viárias estabelecem hierarquias quanto a sua maior menor utilização. A cobertura das redes de transporte favorece a circulação, do centro à periferia, ao mesmo tempo em que estimulam permanências nestes dois extremos da cidade.
“Uma leitura da história das técnicas nos mostra o quanto as inovações nos transportes e nas comunicações redesenharam o mapa do mundo no século 19. Tratava-se de um período caracterizado pela consolidação e sistematização de inovações realizadas anteriormente. As trilhas e os caminhos foram progressivamente substituídos pelas estradas de ferro no transporte de bens e mercadorias; com o advento do telégrafo e em seguida do telefone, a circulação das ordens e das novidades já dispensava a figura do mensageiro. Todas estas inovações, fundamentais na história do capitalismo mundial, se inscreveram e modificaram os espaços nacionais, doravante sulcados por linhas e redes técnicas que permitiram maior velocidade na circulação de bens, de pessoas e de informações.” (DIAS, p. 141-142)
Como dispositivos de normalização as redes técnicas impõem uma nova conduta, individual e coletiva. Para se ter acesso à água, esgoto, energia elétrica, comunicação é necessário que o indivíduo adote um modo de vida compatível: uma habitação que esteja preparada para se conectar a essas redes através de tubulações, fios e demais equipamentos, além de ser “produtivo” e tendo dinheiro para pagar por seu conforto ou pelo menos por um nível mínimo de cidadania. No caso das redes de transporte, o acesso também se dá pela capacidade de pagamento e pelo uso esperado desses serviços. É necessário saber comportar-se adequadamente, adequar-se aos horários dos serviços, às tarifas. Contudo, seria ingênuo pensar que esse uso se dá de forma passiva. Aliás, no próprio uso tido como adequado aparecem os conflitos, os confrontos, as resistências. Sendo estes serviços pagos, espera-se que a qualidade de sua oferta seja minimamente aceitável, que a cobertura dessas redes seja ampliada e que sejam minimizadas suas desigualdades. Estas exigências podem se dar a um nível mais “silencioso” ou, no extremo, através de formas mais agudas. Aí estariam os quebra-quebras, as ligações clandestinas...
Considerações Finais
Em seu livro “Geografia do poder”, Claude Raffestin já chamava atenção para a necessidade de um olhar que reconhecesse as redes técnicas como estruturas reveladoras das ações de poder. A introdução das redes técnicas mudou a percepção de tempo e espaço na cidade, promoveu a mudança de hábitos e de condutas corporais, ou seja, elas atuaram no espaço material e imaterial de nossa sociedade. Além de articularem movimentos e instituições em escala mundial, as redes engendram processos de exclusão social, marginalizando centros urbanos e alterando estruturas de trabalho (DIAS, 2001). Ao contrário da universalização dos prejuízos decorrentes da operação das redes, os ganhos, infelizmente, não se distribuem de forma homogênea no conjunto da sociedade. A eficácia desse “dispositivo de poder” é paradoxal, na medida em que remete ao deslumbramento, ao medo e à sedução. De fato, estar atento a esse lado (quase) oculto das redes é um aspecto importantíssimo para que seja possível promover um planejamento urbano e regional socialmente justo. Ao fim deste ensaio é possível constatar que a questão aqui apresentada, ainda que de forma inicial, tem potencial para outros desdobramentos e, principalmente, convoca para os necessários aprofundamentos. Problematizar as redes técnicas para além de suas aparências funcionais, iluminando uma face oculta do poder, é também politizar o debate sobre sociedade e território.
Referências Bibliográficas
DIAS, Leila Christina. Redes: emergência e organização. In: CASTRO, Iná Elias et al (org.). Geografia: conceitos e temas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000. p. 141-162.
DUARTE, André. Foucault no século 21. Cult, São Paulo, n. 134, p. 45-47, abr. 2009.
FERNANDES, Ana & GOMES, Marco Aurélio de Filgueiras. A pesquisa recente em história urbana no Brasil: percursos e questões. In: PADILHA, Nino (org.). Cidade e urbanismo: história, teorias e práticas. Salvador: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBA, 1998. p. 13-28.
FONSECA, Márcio Alves da. A época da norma. Cult, São Paulo, n. 134, p. 57-59, abr. 2009. FOUCAULT, Michel. Sobre a História da Sexualidade. In: Microfísica do poder. 27ª. reimp. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009a. p. 243-276. _____. Vigiar e punir. Nascimento da prisão 36ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2009b.
LESSA, Sérgio & TONET, Ivo. Introdução à filosofia de Marx. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. V. I: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27ª. reimp. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009 [1979]. p. VII-XXIII.
OLIVEIRA, Carlos Alonso Barbosa de. Considerações sobre a formação do capitalismo. Campinas, 1977. Tese (Mestrado). Universidade Estadual de Campinas.
OLIVEIRA, Agda da Luz. Discussão teórica sobre o conceito de rede urbana. +Geografia s, Feira de Santana, n. 1, p. 25-29, maio / nov. 2008. PEREIRA, Mirlei Fachini Vicente. Redes, sistemas de transportes e as novas dinâmicas do território no período atual: notas sobre o caso brasileiro. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 21, n. 1, p. 121-129, abr. 2009.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a belle-époque. Belém: Paka-Tatu, 2000.
[1] A historiografia brasileira sobre a modernização urbana, segundo Fernandes e Gomes (1998), poderia ser caracterizada e agrupada em dois ciclos: aqueles relacionados às transformações urbanas operadas na virada do século XX, em que as cidades brasileiras foram remodeladas segundo a negação de seu passado, comporiam a primeira fase ou o primeiro ciclo da modernização urbana; os estudos que abrangem o período de 1930 a 1960 representariam o segundo ciclo da modernização urbana, onde se verifica a presença de grandes obras de infra-estrutura e, ao contrário da fase anterior, o embate entre o antigo e o moderno. [2] Marx (1968) define “sistema de máquinas” como um conjunto de diferentes máquinas-ferramenta que operam sob reciprocidade em diversos processos parciais conexos, em oposição à cooperação de máquinas de uma espécie única. [3] Cabe destacar que, ao fazer referência ao sistema de transportes, considero que são seus componentes os diferentes modos de transporte (ferroviário, rodoviário, aquaviário, aeroviário), suas respectivas infra-estruturas (ferrovia, rodovias, hidrovias e rios navegáveis, terminais, etc.) e áreas de cobertura (urbano ou regional). [4] Também denominada de tração humana, normalmente realizada por escravos. A rigor, até onde é de meu conhecimento, não existia um serviço de transporte, cuja categoria existirá formalmente a partir da introdução do bonde a tração animal, como veremos a seguir. [5] Eis alguns elementos que definem formalmente um serviço de transporte e que expressem os atributos de regularidade, confiabilidade, entre outros. [6] Tomo aqui o caso da cidade de Belém mais por uma questão de experiência própria e menos por seu caráter típico ou excepcional, que seriam atributos necessários a um estudo de caso estrito senso. Porém, em comparação com a literatura sobre o assunto, salvo engano, tendo a ver similaridades entre outras cidades brasileiras e Belém; embora não negue as especificidades regionais. [7] Os destaques constam no original.
Expansão urbana e redução de áreas verdes na localidade do Cabula VI região do miolo da cidade do Salvador, Bahia
Augusto César da S. M. Copque, Fabíola Andrade Souza, Denise Vaz de Carvalho Santos, Rosevânia Cerqueira da Paixão
2. Referencial Teórico
2.1. Áreas verdes e ambiente
Segundo Costa e Ferreira (2008), uma árvore contribui significativamente para a manutenção de um microclima mais ameno, que interfere no conforto térmico local. Podendo transpirar até 400 litros de água diariamente, uma árvore pode ter um efeito térmico sobre sua vizinhança equivalente a cinco condicionadores de ar com capacidade de 2.500 kcal cada um. A vegetação contribui também para a redução de poluentes no ar, através da suas atividades funcionais de oxigenação, diluição, absorção e adsorção (PAIVA E GONÇALVES, 2002). A presença de vegetação é um indicador de qualidade de vida, e, segundo a Sociedade Brasileira de Arborização Urbana, SBAU, toda cidade deveria manter o índice de área verde por habitante na ordem mínima dos 15m²/hab. A lei estadual n° 7.799 de fevereiro de 2001, diz no parágrafo III do artigo 1º: (...) o meio ambiente deve ser protegido, visando à garantia da qualidade de vida, que se traduz na segurança, saúde, igualdade, dignidade da pessoa humana e bem estar social, considerando-se os recursos ambientais como bens indivisíveis, que devem ser acessíveis a todos, importando o seu dano irreversível na inviabilidade do exercício dos direitos constitucionalmente garantidos. (BAHIA, 2001) Percebe-se que nos locais onde chegam os empregos, a infraestrutura e a acessibilidade, chega também a população que não tem condições de adquirir a propriedade da terra, que ocupa áreas perigosas (encostas e terrenos alagadiços) e o que restar de áreas verdes em uma região. As áreas que não são urbanizadas simultaneamente aos investimentos formais ou instituídas e fiscalizadas como áreas públicas - reservas, praças, parques - numa cidade em expansão, estão propensas a serem invadidas para fins de moradia. De acordo com Mascarenhas (2008), em 1995 a Prefeitura do Salvador publicou um documento intitulado “Uma Abordagem Ambiental para o Manejo do entorno da Avenida Luiz Viana Filho”, com considerações que direcionavam para a expansão da cidade no entorno desta avenida (incluindo o Miolo e consequentemente a localidade do Cabula VI), destacando a necessidade de proteção e controle da Mata Atlântica e cursos d água que a circundam. Situação desconsiderada no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de 2007, onde a Avenida é vista como área de expansão habitacional e de serviços, sem mecanismos de proteção ao ambiente natural. Esse processo de supressão de áreas de cobertura vegetal natural compromete o meio ambiente. Alguns problemas urbanos funcionam como indicadores da perda de qualidade ambiental como a migração de espécies de animais para outras áreas, quando não são extintas; a impermeabilização excessiva do solo, potencializando a dimensão de enchentes; processos erosivos, com perda de qualidade de mananciais; alteração do microclima, com possível impacto sobre as condições térmicas da cidade; dentre outros. A manutenção de áreas verdes é, portanto, crucial para a qualidade de vida urbana (Loboda e Angelis, 2005). Segundo Mascarenhas e Cunha (2006), devem ser considerados mais estudos em caráter urgente sobre as áreas verdes remanescentes para planejar melhor o que deve ser suprimido para construções e o que deve ser mantido e preservado, dando ênfase ao potencial paisagístico do local que reserva uma topografia singular e merece um cuidado maior nos projetos de urbanização no sentido de destacar as áreas verdes como elementos de qualificação do ambiente urbano.
Ano / Ambientes | Áreas Verdes (m² – %) | Ambiente Construído (m² – %) | Área Total (m²) |
1959 | 998.009,58 – 100% | 0 – 0,0% | 998.009,58 |
1976 | 919.205,86 – 92,10% | 78.803,72 – 7,90% | 998.009,58 |
1992 | 540.322,38 – 54,14% | 457.687,20 – 45,86% | 998.009,58 |
2002 | 308.325,41 – 30,89% | 689.684,17 – 69,11% | 998.009,58 |
2006 | 307.978,72 – 30,86% | 690.030,86 – 69,14% | 998.009,58 |
2009 | 293.364,03 – 29,39% | 704.645,55 – 70,61% | 998.009,58 |
A via expressa “Linha Amarela” e seus impactos no território da metrópole do Rio de Janeiro
Mauro Kleiman
Resumo
O artigo aponta como a via expressa “Linha Amarela”, tem forte impacto na modelagem da criação de área de expansão da camada de alta renda, e na remodelagem de bairros suburbanos no Rio de Janeiro.
Palavras-chave: via expressa; mobilidade; recomposição territorial;Rio de Janeiro.
I- Introdução
A auto-estrada urbana “Linha Amarela” tem tido importante papel na configuração recente da metrópole do Rio de Janeiro. Concebida no contexto de um sistema de auto-estradas urbanas, que previa cinco delas (das quais foram executadas até o momento duas), inseridas no “Plano Dioxiadis” de 1967, a via será inaugurada apenas trinta anos depois. Já tendo examinado em artigo anterior(Chão Urbano Ano X nº 4 JUL-AGO 2010) seus impactos na mobilidade e acessibilidade, neste artigo enfocaremos seus impactos no território. A auto-estrada “Linha Amarela” impacta fortemente a dinâmica do mercado imobiliário, sendo elemento de indução de recomposição espacial e territorial. Por seu traçado e característica de via expressa propicia rápida acessibilidade a vasta área de expansão, situada a oeste, principalmente ao novo bairro de camada de alta renda (Barra da Tijuca e adjacências), mas também aos Subúrbios tradicionais que atravessa. O artigo pretende mostrar como este grande equipamento de transporte influi tanto na criação do novo bairro, quanto na remodelagem socioeconômica dos subúrbios tradicionais. A via impulsiona tanto a dinâmica imobiliária residencial, como a localização de grande comércio (shopping-centers e mega-centers, estes incluindo um mix de comércio, centro de serviços e lazer).
II– Impactos da Via Expressa no território
A autoestrada urbana “Linha Amarela”, como grande equipamento de transporte é um dos elementos indutores de alteração na mobilidade, e de um movimento duplo de recomposição territorial no Rio de Janeiro. A via expressa modifica o binômio acessibilidade/distância espaço-temporal que vão contribuir para determinar mudanças na mobilidade, e para alavancar a ocupação imobiliária residencial e comercial do novo bairro de classe alta e suas regiões adjacentes, e na remodelação dos bairros suburbanos.
II.1- Impactos na área da Barra da Tijuca
No período pós-implementação da “Linha Amarela”, a região da Barra da Tijuca e adjacências – Jacarepaguá, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Pequena, e Vargem Grande, concentraram a maior parcela dos empreendimentos imobiliários da cidade.
Entre os principais empreendimentos imobiliários estão tanto os que localizam-se na orla marítima como condomínios de prédios e de casas (Alfabarra, Golden Green, Ocean Front Resort, Saint Tropez, Santa Mônica, Riserva Uno, Península), como na área de acessibilidade dada pela Linha Amarela que abre o mercado de vasta área no interior da Barra, na divisa com Jacarepaguá (por exemplo, o condomínio Rio 2 com previsão de 48 mil unidades!).
Tomando dados da Prefeitura do Rio de Janeiro, entre 2000-01, grandes empreendimentos imobiliários são licenciados para a Barra da Tijuca no formato de “condomínios fechados” com um total de 6343 unidades em 496 imóveis significando um acréscimo de 18,8% na área já edificada, e 13,5% no número de imóveis, representando 24% de área total licenciada da cidade (Coleção Estudos Cariocas, junho de 2002).
Importante conjunto de centros comerciais de grande porte, alguns dos quais inclusive plufuncionais; combinando lojas, lazer, com universidades e centros médicos, e por vezes, com centros empresariais acoplados, são construídos ou expandidos (como o maior da Região - o Barra Shopping), no período, sendo os shoppings centers Via Parque, Dowtown, Citta América, New York City Center (este último com um complexo de 18 salas de cinemas UCI, mais lojas e praça de alimentação), Recreio Shopping, Rio Desing e Shoppings de menor porte, como Barra Garden, Barra Point, Bay Side) e hipermercados (Carrefour, Extra, Pão de Açúcar), além de grande comércio para construção e mobiliário residencial (Leroy Merlin, Etna, Casa Shopping).
Para o período mais recente 2003, 2004-2008 pelos dados da ADEMI, temos que em 2003 (ao segundo semestre – início da pesquisa) a Barra da Tijuca, o Recreio e Jacarepaguá somam 56% dos lançamentos na cidade; em 2005, 69%; em 2006, 76%; em 2007, 65%; e em 2008, 67%.
Empreendimentos de muito grande porte construídos ou estão em construção na área correspondente ao acesso proporcionado pela via expressa a zona distante da orla marítima (Rio 2 com terreno de 1,2 milhões de metros quadrados (mais que o bairro do Leblon) que abrigará 48 mil habitantes; a Vila Panamericana com 1480 unidades; o Centro Metropolitano que crescerá com inúmeras torres de escritórios, de 36 andares e torres residenciais e mais um shopping center); além dos empreendimentos na orla (AlfaBarra, Ocean Front) ou das lagoas (próxima ao maior shopping da Região – Barra Shopping (empreendimento de vários prédios denominado “Península”).
II. 2- Impactos nos Subúrbios
A abertura da via expressa tem possibilitado (segundo dados da ADEMI) o lançamento de mais empreendimentos imobiliários às suas margens em áreas próximas levando a que em 2006 e 2007 os subúrbios já participem com importante percentual de lançamentos no Rio de Janeiro, como o Méier, 14% ( Arena Park, em Pilares)
Com 486 unidades, em 2007 em Del Castilho 7% (Norte Village com 617 unidades) através de condomínios de prédios residenciais com equipamentos de lazer (piscinas, clubes, etc.) em locais com proximidades com grandes centros comerciais plurifuncionais que surgem no mesmo período.
Em 2008 bairros do Subúrbio que não recebiam lançamentos há anos como Pavuna e Abolição entram no circuito imobiliário, sendo que em 2007 a maior valorização de preço médio por m2 nos Subúrbios tem crescimento de 24,5% em um ano (passou de R$ 1100,00 para R$1370,00 – Dados ADEMI)
Numa área onde inexistia comércio de grande porte a abertura da via e sua porosidade para bairros marginais, ativa a capacidade deste tipo de via expressa de grande circulação de veículos, de atrair a localização de grandes centros comerciais. No caso áreas de indústrias desativadas com vastos terrenos são transformados em pontos de comércio com características de plurifuncionalidade. Com base inicial num empreendimento de shopping center – o Norte Shopping, contando no seu interior com hipermercado e centro médico – estabelece-se em seu entorno outros comércios – Wall Mart, Leroy Merlin e hipermercado (Extra), que compõem atualmente, inclusive com a expansão do próprio shopping (com 10 salas de cinema, mais lojas e uma torre de escritórios), o maior centro comercial do Rio de Janeiro. Muito próximo a este localiza-se um outro shopping – o Nova América – que ocupa as instalações de uma antiga fábrica têxtil do mesmo nome (edificação protegida pelo patrimônio histórico do Rio de Janeiro) com concepção de multiuso com lojas, e áreas de lazer com bares que tem cenário de uma rua do Rio de Janeiro; cinemas; revendedoras de automóveis; e uma universidade (Universidade Estácio de Sá). O Shopping Nova América tem também ligação direta com uma estação de metrô do Rio de Janeiro (linha 2 que liga o Centro aos subúrbios, e até o limite com a periferia da metrópole).
III - Conclusão: o papel da auto estrada urbana “Linha Amarela” na recomposição territorial no Rio de Janeiro
Com um traçado inovador possibilitando acessibilidade tanto a área expansão “nobre” da metrópole a antigos subúrbios, a via expressa “Linha Amarela” pode ser entendida como um dos indutores mais importantes no processo de composição e recomposição territorial sobre os planos morfológicos, funcional e social mais recente do Rio de Janeiro.
A “Linha Amarela” apesar da defasagem entre o momento de sua concepção (final dos anos 1960), e sua construção (1994-97), não teve alterada seu caráter de infraestrutura de circulação “pura”. A concepção de via está articulada ao modelo racional-funcionalista, onde a função de circulação está separada das demais, e neste sentido, encaixa-se perfeitamente no “bojo” do “Plano Lúcio Costa” para a Baixada de Jacarepaguá (onde localiza-se a área de camada de alta renda do Rio, onde, todos os usos e atividades estarão ordenadas em áreas de especificidades).
Mas, por outro lado, provoca uma ruptura na morfologia urbana dos Subúrbios marcados até então marcada pela rua como espaço público, por tratar-se de um modelo perfeito de equipamento de circulação restritamente reservado aos deslocamentos motorizados automotivos, separados das demais funções para melhor propiciar tráfego fluido e veloz entre pontos do território do Rio de Janeiro.
Em termos funcionais a via materializa o “eixo transversal” proposto no Plano Lucio Costa indutor de acessibilidade para camadas de menor renda localizadas em áreas da periferia imediata e longínqua e subúrbios a todos os equipamentos de consumo e lazer e serviços que a “nova cidade,“ localizada na Barra da Tijuca, propicia.
Em termos morfológicos a via expressa apresenta diferenciações entre as duas áreas analisadas. Nos Subúrbios, a via passa “por cima”, corta, separa, parte, descontinua a estrutura urbanística da rua contribuindo para transformações morfológicas na paisagem suburbana. Já para a área de expansão “nobre” a via é parte integrante da constituição de uma nova paisagem urbana, a paisagem da cidade modernista concebida por Lucio Costa, onde a cidade adapta-se ao automóvel, e, portanto ela complementa e reitera a morfologia proposta. Sua implementação atrai empreendimentos de consumo de grande porte para seu entorno imediato (shopping centers, como o Via Parque, hipermercados, comércio de materiais de construção e mobiliário residencial e parque de diversões), dado a acessibilidade que propicia aos consumidores de toda a metrópole beneficiando o grande comércio instalado no cruzamento da via com o “eixo monumental” do Plano Lucio Costa – a Av. da Américas – e ao longo desta última via.
Para a dinâmica imobiliária, por seu turno, a rede abre toda uma acessibilidade para vasta área até então desocupada localizada na parte dos “fundos” da área de expansão “nobre”, longe da área marítima; e para os bairros suburbanos, e de Jacarepaguá marcado por ocupação residencial unifamiliar e pequeno comércio. O importante conjunto de empreendimentos imobiliários residenciais com equipamentos de lazer e serviços vai reiterar a área de expansão nobre como de habitação da renda alta, mas tem provocado transformações no plano social em Jacarepaguá com a introdução de imóveis residenciais para camadas média e alta, onde antes predominava a renda média baixa e média, e atraiu comércio multifuncional de shoppings (ainda que de médio porte) e hipermercados. Observa-se também empreendimentos imobiliários residenciais para camadas médias altas em áreas limítrofes a de expansão “nobre”, sendo comercializadas como tal, mas que tinham substrato de áreas de ocupação de renda média baixa ou baixa.
O efeito para os subúrbios em todos os planos tem produzido uma recomposição territorial. Em termos de transformações morfológicas a mudança é radical fabricando-se uma nova paisagem urbana. A via expressa com seu território fechado, viadutos, acessos em rampa, corta e substitui a estrutura de ruas sinuosas, estreitas, com forte porosidade, e separa, parte, divide, bairros suburbanos ao meio. Onde antes se percorria a pé todo um bairro, atualmente a circulação só é possível de veículo automotor.
Em termos sociais as mudanças são muito mais radicais nos subúrbios tradicionais que na área de expansão “nobre”. Composto por camada de renda baixa, média baixa e um enclave de renda média em determinado bairro (Méier) e, por caracterizar-se como a zona industrial a via expressa irá contribuir para a alteração em curso para a área de renda média. Esta transformação está assinalada pela introdução nos Subúrbios de grandes empreendimentos imobiliários com equipamentos de lazer, à imagem e semelhança das áreas “nobres”, e a localização de importante complexo de dois mega-centros comerciais com um “mix” de hipermercados, conjunto de cinemas, lojas de móveis utensílios domésticos, roupas, eletrodomésticos, revendedoras de automóveis, praças de alimentação, universidades, centros médicos, grandes lojas de materiais de construção e decoração, combinadas com prédios de escritórios.
A via expressa “Linha Amarela”, por seu singular traçado transversal aos tradicionais eixos de penetração longitudinais do Rio de Janeiro, altera a correlação tempo-espaço tanto para a área de expansão “nobre” como para os bairros suburbanos tradicionais, contribuindo para o crescimento e consolidação da primeira e a re-modelagem dos Subúrbios. A introdução e uso cada vez mais intensificado da via tem sido elemento importante no processo de mudanças morfológico, funcional e social destas parcelas com implicações para o território da metrópole do Rio de Janeiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS