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Chão Urbano

Chão Urbano ANO X – N° 5 SETEMBRO / OUTUBRO 2010

01/09/2010

Integra:

ANO X  N 5  SETEMBRO / OUTUBRO 2010

 

Editor

Mauro Kleiman

 

Publicação On-line

Bimestral

 

Comitê Editorial

• Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

• Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional)

• Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. em Planejamento Urbano e Regional)

• Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)

• Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)

• Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

• Hugo Pinto (Prof. Dr. Universidade do Algarves – Portugal)

 

IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS

LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

 

Coordenador Mauro Kleiman

 

Equipe

Aline Alves Barbosa da Silva, Carolina Rezende Kroff, Priscylla Conceição Guerreiro dos Santos, Fernanda Colmenero de Melo e Moura, Natalia Andrea Urbina Castellón

 

Pesquisadores associados

Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva

 

Artigos

 

Cadastro Técnico Multifinalitário Urbano Para Regularização Fundiária: O Caso de Alagados – Salvador/BA

Augusto César da S. M. Copque; Fabíola Andrade Souza

 

Infraestrutura de Dados Espaciais no Estado da Bahia

Fabíola Andrade Souza; Augusto César da S. M. Copque

 

Rio de Janeiro: contextualizando o processo de revitalização na região portuária

Márcia Regina Martins Lima Dias

 

 

 

 

Cadastro Técnico Multifinalitário Urbano Para Regularização Fundiária: O Caso de Alagados – Salvador/BA

Augusto César da S. M. Copque; Fabíola Andrade Souza

 

Resumo: A expansão urbana está no centro das preocupações dos gestores públicos nos últimos anos, uma vez que o aumento populacional tem impacto direto na gestão dos recursos existentes no município e na qualidade de vida de seus habitantes. No tocante à questão habitacional, as políticas públicas não têm conseguido atender à demanda crescente e a população tem-se instalado de forma irregular em áreas pertencentes a terceiros ou com restrições ambientais. A regularização fundiária tem sido fortemente estudada e divulgada no país, mas suas ações são pequenas e a legislação ainda não abrange todos os aspectos necessários, principalmente quanto à garantia do registro de posse de lotes com precisão de localização espacial. Este artigo busca avaliar as questões mais relevantes para a qualidade nos levantamentos cadastrais de apoio à regularização, utilizando como estudo de caso o georreferenciamento de imóveis no Programa de Regularização Fundiária realizado na região de Alagados, em Salvador-Ba.

 

Palavras-Chave: Regularização fundiária, geoprocessamento, cadastro técnico multifinalitário.

 

Abstract: Urban sprawl is a central concern of public managers in recent years, since the population increase has a direct impact on resource management in the city and the quality of life of its inhabitants. Concerning the issue of housing, public policies have failed to meet the growing demand and people have settled illegally in areas belonging to third parties or environmental constraints. The regularization has been heavily studied and disseminated in the country, but their actions are small and the legislation does not cover all necessary aspects, especially regarding the security of the record of ownership of lots with an accuracy of spatial location. This article attempts to assess the issues most relevant to the quality of cadastral surveys in support of adjustment, using as case study the georeferencing of property in Land Regularization Program conducted in the area of Alagados in Salvador-Ba.

 

Keywords: Land regularization, GIS, technical multipurpose cadastre.

 

1. Introdução

Ao longo das últimas décadas, pode-se observar a grande expansão ocorrida nos maiores centros urbanos do Brasil em função da migração da população oriunda de áreas rurais ou de cidades menores. O crescimento trouxe para o gestor público, entre outras questões, a necessidade de acomodar este contingente populacional em lugares adequados para moradia, situação que ainda não foi resolvida, gerando grande número de famílias aglomeradas nas chamadas áreas subnormais ou áreas irregulares.

A expansão das cidades ocorreu e ainda ocorre, em sua grande maioria, sem as regras e normas do planejamento formal, implicando em uma ocupação irregular, frequentemente realizada por moradores de baixa renda, cujas condições não permitem acesso às áreas da cidade onde a infraestrutura básica de transporte, saneamento, segurança, saúde, educação, entre outros, já esteja instalada.

Estes assentamentos geralmente “têm como característica marcante a ocupação ilegal, ou seja, o morador não é o real proprietário da terra onde está instalado, o que pode vir a gerar conflitos com os proprietários de direito e insegurança para a população” (SOUZA, 2008, p. 12).

Ainda existe resistência por parte dos gestores para intervir nestas condições de forma definitiva, contudo, alguns destes têm buscado atuação através da regularização fundiária dos terrenos ilegais, que pode ser vista como (ALFONSIN apud LIMA et al, 2003, p. 3):

 

 

“(...) o processo de intervenção política, sob os aspectos jurídicos, físicos e sociais, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiada”.

 

 

Mesmo existindo muitos programas de regularização fundiária no Brasil, os resultados são insuficientes, a defasagem entre o número de famílias ocupantes de áreas ilegais e o número de famílias que efetivamente recebeu título de posse ou propriedade da terra, ainda é grande.

De acordo com Sarubbi Neto (2004), o investimento realizado pelos municípios para manter e atualizar informações cadastrais não é suficiente, o que vem a gerar uma rápida desatualização dos dados, acompanhada do constante crescimento informal das cidades. Tudo isso, termina atrasando o acesso aos beneficiários das ações de regularização e dificultando a ação dos gestores públicos.

Para que o trabalho dos gestores no controle das ocupações e no desenvolvimento das cidades seja facilitado, algumas administrações vêm utilizando tecnologias de geoprocessamento, permitindo a delimitação das áreas invadidas e o mapeamento e identificação das famílias ocupantes de terrenos irregulares, potenciais beneficiários da regularização.

Contudo, para garantir a exata localização dos lotes e seu posicionamento no espaço urbano, alguns cuidados devem ser observados na fase de projeto e levantamento da informação, evitando dados inadequados (a exemplo de medidas e localização do lote) para regularizar a situação, uma vez que as técnicas de coleta, processamento e armazenamento dos dados espaciais variam de acordo com os interesses de aplicação dos mesmos.

Este artigo pretende abordar algumas questões a serem observadas para o correto levantamento de lotes urbanos visando à regularização fundiária, utilizando como referência o trabalho realizado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – CONDER, na região de Alagados no município do Salvador-Bahia (Ver mapa na figura 01).

 

2. Regularização Fundiária no Brasil

Alguns autores, entre eles Angeoletto (2001), Brito (2007) e Souza (2008), afirmam que a urbanização no Brasil ocorrida no século XX intensificou-se a partir da década de 1960, não apenas como um processo demográfico a partir do aumento da população humana, mas especialmente em função de mudanças sociais que transformaram as maiores cidades em grandes centros econômicos, onde a industrialização e a oferta de empregos atraíam as pessoas interessadas em “obter melhores condições financeiras e um padrão de vida mais confortável” (SOUZA, 2008, p. 18)

 

 

Figura 01: Mapa de Localização de Alagados

 

Alfonsin (2007) reforça esta informação ao identificar que, entre os anos de 1940 e 2000, a taxa de urbanização brasileira cresceu de 31% para mais de 80% e que esta inversão acabou por acentuar as diferenças regionais, econômicas, sociais e jurídicas no país. Muito desta desigualdade ocorre em função da má distribuição de renda e a população com menor poder aquisitivo, que busca melhores condições de vida nos grandes centros urbanos, com isso, estes acabam sendo “empurrados” para a periferia[1], por não ter condições de pagar pela infraestrutura instalada nas áreas consolidadas.

Entre as décadas de 1960 e 1970, período de grande expansão urbana, o planejamento voltado para a política habitacional foi intensificado, surgiram diversos órgãos e planos elaborados em todas as esferas de governo; porém, estes planos estavam baseados nos princípios divulgados e recomendados pelas agências internacionais, financiadoras dos programas, e os especialistas não conheciam a realidade local em suas nuances sociais e culturais, o que gerou projetos inadequados à situação (MARICATO, 2000).

Estes programas, apesar de serem divulgados como voltados para atendimento da população carente, acabavam direcionados para os interesses do mercado imobiliário formal, e os financiamentos atingiam apenas as classes média/baixa, enquanto a população carente, que crescia exponencialmente, continuava sem condições de ocupar a cidade de forma planejada. Valendo-se da auto-construção, estes moradores mantiveram-se fora da realidade gerida pelos governos e passaram a estabelecer-se de maneira informal, em terrenos de valor irrisório, abandonados, com pendência judicial, áreas verdes ou encostas.

Apenas a partir da década de 1980, depois que a maioria dos grandes assentamentos informais já estava consolidada, a questão da habitação para famílias carentes passou a ser discutida amplamente e a regularização fundiária tornou-se elemento essencial para resolver a política habitacional. Esta importância, mais uma vez, deu-se muito mais em função da pressão dos financiadores internacionais do que dos interesses políticos, mesmo assim, foi relevante o reconhecimento do déficit habitacional do Brasil, não apenas sob o ponto de vista quantitativo, mas também qualitativo.

Alguns números do déficit habitacional podem ser vistos a seguir: para o Ministério das Cidades (2005), no país, faltam 7,2 milhões de moradias, sendo que dos 44 milhões de domicílios existentes, 12 milhões estão sem registro oficial de propriedade. Na Bahia, o IBGE (2007) e a CONDER (2007) apontavam em torno de 650 mil famílias sem habitação. Enquanto, em Salvador, tanto o Governo do Estado (DOE, 2007) quanto o Ministério das Cidades (2005) estimam a falta de cerca de 100 mil habitações, ao mesmo tempo em que Gordilho Souza (apud Carvalho, 2002) calcula 28,7% da população morando em áreas irregulares ou com urbanização precária.

Mesmo existindo variação nos métodos de levantamento e, consequentemente, nos números apresentados como resultado, percebe-se que a quantidade de famílias ocupando áreas com irregularidade habitacional é grande e crescente, agravando-se com o aumento do desemprego. O poder público deve agir no sentido de evitar esta expansão informal e de regularizar as áreas invadidas pela população de baixa renda que se encontram consolidadas, permitindo que os moradores instalados tenham acesso ao mínimo de infraestrutura para uma vida saudável.

Souza (2008) apresenta algumas situações de irregularidade fundiária: “áreas loteadas ainda não ocupadas pelos proprietários; regiões alagadas, especialmente os terrenos de marinha; áreas de proteção ambiental; áreas de risco e terrenos de uso coletivo” (INSTITUTO PÓLIS apud SOUZA, 2008, p. 30). Em todas as situações, a característica principal é a inexistência de documento com validade jurídica garantindo propriedade ou posse ao ocupante e a ameaça constante de expulsão por parte do proprietário legal.

O reconhecimento do Governo Federal da importância de regularizar estas áreas veio através do Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01 de 10 de julho de 2001, definidora de princípios e instrumentos que permitem a intervenção efetiva na forma em que as terras urbanas são ocupadas e valorizadas. Dentre os instrumentos definidos neste Estatuto, pode-se relevar:

Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS

ZEIS são áreas da cidade destinadas à ocupação popular, podendo ser assentamentos consolidados ou em fase de ocupação, bem como terrenos vazios reservados para construção de novos conjuntos habitacionais. Contudo, como características comuns estão: a destinação do uso para população de baixa renda; a prioridade na resolução de processos de regularização e a necessidade de definir projetos de urbanização com acesso à infraestrutura adequada e inserção dos cidadãos na sociedade.

 

Usucapião

Usucapião garante direito de propriedade àquele que ocupa, de forma irregular, terras particulares, com no máximo 250m2, por mais de cinco anos, apenas para moradia. O ocupante que adquirir este direito não poderá ter outros títulos de propriedade urbana ou rural e não paga taxas judiciais.

 

Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia

Este instrumento outorga direito de uso para terrenos públicos, ou seja, o morador não se torna proprietário, mas adquire direito de posse ou exploração sobre a terra por um período de tempo estabelecido. Só é válido para áreas ocupadas até 30/06/2001, com tamanho máximo de 250m2, para fins de moradia e deve ser registrada em cartório.

 

Concessão de Direito Real de Uso – CDRU

A CDRU foi definida em 1967 para regularização de áreas públicas, apesar de não ter-se encontrado referências a sua aplicação. No tocante à caracterização do terreno e de seu uso, este instrumento iguala-se à concessão de uso para fins de moradia, contudo, o lote pode ser usado para outros fins além do residencial, do mesmo modo, pode ser repassado para terceiros através de ato intervivos ou sucessão.

A simples aplicação destes instrumentos não garante à população o justo acesso à cidade. Os programas de regularização devem ser realizados em paralelo a projetos de urbanização, integração da comunidade, emprego e geração de renda, acesso a crédito e gestão com participação da população envolvida. Além disso, há necessidade do desenvolvimento de políticas públicas que controlem a comercialização dos terrenos e a disponibilização de novos espaços para construção popular.

 

3. Cadastro Técnico Multifinalitário para Regularização Fundiária

A gestão do espaço urbano está cada vez mais complexa diante dos processos econômicos e sociais que ocorrem no mundo e torna-se imprescindível que o gestor público conheça os aspectos mais relevantes de seu município e de sua população. Isto pode ser facilitado com o uso de ferramentas apropriadas, como a realização de cadastros técnicos multifinalitários (CTM) com o apoio de bases cartográficas, que permitem representar espacial e fielmente a ocupação do solo das cidades e dar uma dimensão mais próxima da realidade para a tomada de decisão.

Nesse sentido, o cadastro técnico é entendido como um sistema de registro da propriedade imobiliária, feito de forma geométrica e descritiva, contendo as propriedades imobiliárias corretamente georreferenciadas, possibilitando o conhecimento detalhado sobre todos os aspectos levantados (medidas cartográficas até ao nível dos imóveis, a legislação que rege a ocupação do solo e uma avaliação sobre a melhor forma de ocupação do espaço para se obter o desenvolvimento da área a ser regularizada). O conceito de multifinalitário implica na utilização deste cadastro para diversas ‘finalidades’, podendo abarcar desde tributação (mais comum), até planejamento urbano ou a identificação de imóveis para regularização.

Observa-se a relevância dos cadastros técnicos multifinalitários a serem feitos de forma rápida, eficiente e a custos baixos, condições que podem ser proporcionadas com o uso de tecnologias de geoprocessamento. Este termo, segundo Corso (2002), Câmara e Monteiro (2004), Davis e Câmara (2004), entre outros autores, representa um conjunto de tecnologias voltadas à coleta, armazenamento, tratamento, análise e uso de informações de caráter espacial para um objetivo específico.

Num cadastro imobiliário a ser levantado para um projeto de regularização fundiária pode-se aplicar algumas técnicas de geoprocessamento, de forma a permitir uma identificação mais precisa das áreas ocupadas, dos imóveis construídos e das famílias moradoras, dando subsídios para o gestor público emitir os registros de propriedade ou posse, de acordo com cada situação, e evitando a ocorrência de erros.

No que tange a coleta de dados através do uso do Global Position System - GPS e a aplicação de uma base cartográfica como referência, deve-se atentar para algumas questões importantes, como: a escala do produto, considerando o erro gráfico aceitável, sendo que este possui uma relação direta com exatidão da cartografia e sua escala; a precisão e a acurácia (qualidade do dado coletado conforme sua aplicabilidade) do levantamento. Uma vez que estas características implicam na qualidade do produto gerado, nas suas possibilidades de utilização e no seu grau de confiabilidade. Tavares Júnior (2006) apresenta a relação entre escala, precisão e tamanho do menor objeto a ser representado na escala, conforme tabela 01.

ESCALA

PRECISÃO

MENOR OBJETO

1:500

0,1 m

0,01 m2

1:1.000

0,2 m

0,04 m2

1:2.500

0,5 m

0,025 m2

1:5.000

1,0 m

1,00 m2

1:10.000

2,0 m

4,00 m2

1:25.000

5,0 m

25,00 m2

1:50.000

10,0 m

100,00 m2

Tabela 01: Precisões e menores objetos representados em cada escala.

Fonte: Tavares Júnior, 2006, p. 4.

Leal Júnior e Sá (2004) abordam a importância das bases de dados espaciais refletirem corretamente os estados dos objetos, tanto no tempo quanto na forma, sendo que estes dados servem de apoio à regularização fundiária e à garantia da propriedade e, caso estejam errados, corroboram para injustiças e irregularidades, especialmente no tocante a delimitação dos lotes.

No caso de regularização fundiária aplicada a imóveis rurais, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA fixou que a precisão posicional deve ser de 50 cm, o que só se obtém em escalas 1:2.500 ou maiores. Contudo, a legislação tocante à regularização fundiária urbana não aborda a necessidade de levantamento cadastral nem de precisão posicional. Percebe-se, entretanto, que um erro de 50 cm não seria aplicável, uma vez que a maioria dos imóveis em loteamentos irregulares tem área menor que 250 m2, dimensão máxima de um lote a ser regularizado sem ônus para o ocupante.

De acordo com estudo realizado por Brandão (2003), a tolerância posicional das coordenadas dos pontos que definem os limites dos lotes urbanos deveria ser em torno de 10 centímetros. O autor toma por referência a Lei 6.766/1979 que estabelece como dimensão mínima para um lote de área urbana 125m2, com 5m de frente para a via de acesso, não levando em consideração loteamentos irregulares.

Para atingir a tolerância posicional de 10 centímetros sugerida, os levantamentos cadastrais deveriam ser realizados em escala 1:500. Levantamentos em uma escala tão grande exigiriam a utilização de receptores GPS de alta precisão, como é o caso dos topográficos, cujo custo pode ser fator proibitivo para a maioria dos municípios, ou a utilização de técnicas de levantamento mais tradicionais, como levantamento com teodolito, mas que apresentam um tempo de resposta menor que o do GPS.

Segundo Brandão (2003), para as medições que definem limites de lotes há restrições no uso de GPS, principalmente em relação ao levantamento cadastral em áreas urbanas, pois as edificações podem prejudicar a recepção dos sinais dos satélites. Ainda que o GPS apresente vantagens diante dos métodos tradicionais de levantamentos, nas medições cadastrais, com relação à qualidade posicional do levantamento, devem ser observadas algumas preocupações, como:

a) amarrar cada ponto de limite do lote a duas ou mais estações de referência;

b) realizar múltipla ocupação dos pontos de limite;

c) realizar a análise da configuração dos pontos do levantamento;

d) realizar o ajustamento do levantamento.

Além da precisão no posicionamento do lote, deve-se atentar também para a exatidão nas informações que caracterizam o imóvel e a família a ser beneficiada, sendo que os dados levantados servem de embasamento para o processo administrativo que dará origem ao documento de posse, a ser registrado em cartório, dentro dos critérios estabelecidos em lei.

 

4. Análise espacial e a Regularização Fundiária da região de Alagados

Salvador, capital da Bahia, é a terceira maior cidade do Brasil em população, abrangendo mais de 2,8 milhões de habitantes[2], e 30.895 ha[3], sua densidade habitacional gira em torno de 90,63 hab/ha e seu déficit é estimado em 100 mil moradias[4]. Da mesma forma que na maioria das grandes cidades brasileiras, sua expansão urbana deu-se através do aumento exponencial no fluxo das migrações campo-cidade a partir das décadas de 1940 e 1950 do século XX, época em que “começaram a ocorrer as primeiras ‘invasões’ na cidade em decorrência do desequilíbrio na ordem espacial” (CARVALHO apud SOUZA, 2008, p. 53).

Uma das regiões que acompanhou este crescimento foi Alagados (vide figura 1), limitada por uma rede ferroviária e a Avenida Suburbana (Avn. Afrânio Peixoto) a leste, pela Enseada do Cabrito da península de Itapagipe a norte, pela localidade do Bonfim a oeste e pela Região da Calçada e adjacências a sul, atualmente com uma população em torno de 110 mil habitantes[5] e uma área de 270ha. Conforme apresentado em Carvalho (2002), Alagados é uma conurbação de diversos assentamentos irregulares, cuja característica comum está na “construção de casas de madeira sobre palafitas em áreas alagadiças”.

Esta ocupação, na região de Alagados era composta por terras pertencentes à União e aforadas a terceiros, ainda na década de 1940. Como o processo de reintegração de posse movido pelo foreiro não foi efetivado, a expansão da ocupação foi intensificada no decorrer das décadas seguintes, forçando o governo estadual a urbanizar a região, através de diversos programas de intervenção desenvolvidos entre os anos de 1970 e 2000 e que permitiram o aterramento das áreas alagadas e melhorias habitacionais para as famílias ocupantes; contudo a titularização dos invasores permaneceu inalterada.

Só em 2005, após a criação do Estatuto da Cidade e de instrumentos jurídicos mais efetivos voltados para a questão fundiária, que surge uma iniciativa efetiva de regularizar a situação dos moradores de Alagados. Neste ano, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão[6], autorizou, sob o regime de aforamento em condições especiais, a cessão à CONDER, do imóvel urbano constituído de marinha, acrescido de terrenos de marinha, com área total de 3,15 km² na região de Alagados, com vistas à regularização fundiária direcionada para famílias carentes e de baixa renda ali residentes.

A CONDER é uma empresa pública cuja finalidade volta-se para a promoção, coordenação e execução da política estadual de desenvolvimento urbano, metropolitano e habitacional do Estado da Bahia. Com a cessão do terreno de marinha na região de Alagados, esta empresa deveria executar ações de regularização fundiária e decidiu desenvolver um sistema que permitisse a utilização de dados geográficos associados aos cadastros imobiliários, permitindo maior agilidade na execução e controle dos processos de emissão de títulos de posse.

O projeto desenvolvido estava sustentando por três pontos principais para o cadastro técnico multifinalitário: levantamento cadastral dos lotes, com caracterização de sua área e georreferenciamento sobre base cartográfica em escala 1:2000; levantamento cadastral para identificação dos moradores e coleta de documentação para comprovar os dados levantados. Todas as informações foram cadastradas em um sistema de informações geográficas, permitindo a geração de escrituras de posse com base nos dados do imóvel e da família e na impressão de mapas de localização do imóvel, a serem anexados à escritura.

A escala utilizada na base cartográfica de referência e, consequentemente, no levantamento, era a melhor existente, atualizada e disponível sobre o município de Salvador, porém não atende ao ideal abordado neste artigo, pois sua precisão está em torno de 40 centímetros. Mesmo não havendo exigência legal para este tipo de levantamento, o cadastrador coletou as medidas reais do lote com trena, dando maior precisão no cálculo da área a ser utilizada na escritura.

De acordo com as exigências do Estatuto da Cidade, apenas os lotes utilizados para moradia, com menos de 250 m2 e cujo ocupante não possui outros imóveis puderam ser regularizados sem ônus. Nas demais situações, ainda não houve emissão dos títulos de posse.

O programa de regularização fundiária de Alagados já levantou mais de mil unidades e entregou cerca de 550 escrituras dentro destas condições e pretende, nos próximos meses, agilizar o trabalho de levantamento para mais sete mil unidades dentro da mesma área, permitindo melhorar a qualidade de vida dos moradores e contribuindo para diminuir as desigualdades sociais.

 

5. Considerações finais

Percebe-se a importância da precisão nos levantamentos cadastrais, uma vez que a localização exata do imóvel e suas medidas devem ser descritas na escritura e erros de poucos centímetros no posicionamento podem impactar no correto dimensionamento da área a ser regularizada.

Contudo, enquanto a legislação não obriga o levantamento dentro de uma precisão específica, os dados levantados devem ser amarrados a melhor cartografia disponível para a região cadastrada. No caso de Alagados, a cartografia utilizada como referência espacial para localização dos imóveis dentro do município teve precisão de escala 1:2.000, permitindo erros de até 40 centímetros em relação ao posicionamento real.

Não atende à precisão ideal de 10 centímetros sugerida por Brandão (2003), mas o simples fato de georreferenciar o imóvel e registrar um mapa em cartório anexo à Escritura já é um avanço considerável, uma vez que facilita a identificação de sua localização e permite evitar erros de sobreposição no loteamento, garantindo maior exatidão através das coordenadas descritas para posicionamento do imóvel e de seus confrontantes, com comprovação através dos mapas.

O cadastro técnico é base para utilização de técnicas de geoprocessamento e sistema de informações geográficas e é uma ferramenta importantíssima para a tomada de decisões, planejamentos estratégicos e gestão territorial, tanto para administração pública como o setor privado. Este trabalho realizado pela CONDER foi inovador no Brasil para regularização fundiária de terrenos da União e deve ser seguido como exemplo. Contudo, o apoio tecnológico apenas facilita os processos, não resolvendo problemas relacionados a outros aspectos importantes num programa de regularização, como resolução de questões relacionadas a disputas judiciais entre os moradores pela posse de um imóvel ou da necessidade de melhoria urbana na região regularizada. O Estado deve estar apto para atuar em vários aspectos ao mesmo tempo e não apenas em um particular.

As equipes técnicas e administrativas devem estar engajadas com a comunidade de forma que as soluções apontadas permitam alterar a vida dos habitantes de uma região ocupada irregularmente de forma mais abrangente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALFONSIN, B. de M. O significado do Estatuto da Cidade para os processos de regularização fundiária no Brasil. In: Rolnik, Raquel et al (Org.). Regularização Fundiária Plena: Referências Conceituais. 86-93p. Ministério das Cidades. Brasília-DF. 2007.

ANGEOLETTO, F. Urbanização e Degradação Ambiental. In: Serpa, Ângelo. (Org.) Fala, Periferia! Uma reflexão sobre a produção do espaço periférico metropolitano. Salvador: Editora da UFBa. 2001.

BRANDÃO, A. C. O princípio da vizinhança geodésica no levantamento cadastral de parcelas territoriais. Tese do doutorado em engenharia de produção. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Santa Catarina-PR. 2003.

BRITO, F. O deslocamento da população brasileira para as metrópoles http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142006000200017&lng=pt&nrm=iso capturado em 17/01/2007 às 11:41.

CÂMARA, G.; MONTEIRO, A. M. V. Conceitos Básicos em Ciência da Geoinformação. http://www.dpi.inpe.br/gilberto/livro/introd/cap2-conceitos.pdf capturado em 09/07/2004 às 14:07 horas.

CARVALHO, E. T. de. Os Alagados da Bahia: Intervenções Públicas e Apropriação Informal do Espaço Urbano. 306p. Dissertação de mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFBa. Salvador-Bahia. 2002.

CONDER. http://www.conder.ba.gov.br/webnews/news/noticia.asp?NewsID=1404 capturado em 19/09/2007 às 18:16 horas.

CORSO, G. Dados Geográficos: Aspectos Tecnológicos. In: Corso, Gilberto & Rocha, Mª Célia F. Dados Geográficos: Aspectos e Perspectivas. Cadernos REBATE. LCAD/UFBA. Janeiro/2002.

DAVIS, C.; CÂMARA, G. Arquitetura de Sistemas de Informações Geográficas. http://www.dpi.inpe.br/gilberto/livro/introd/cap3-arquitetura.pdf capturado em 09/07/2004 às 14:07 horas.

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IBGE. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2007/estimativa.shtm capturado em 07/10/2007 às 12:30 horas.

LEAL JÚNIOR, M. B.; SÁ, L. A. C. M. Atualização temporal nos sistemas de geoinformação para o cadastro imobiliário. 1º Simpósio de Ciências Geodésicas e Tecnologias da Geoinformação. UFPE, set/2004.

LIMA, A. L. de; PAIXÃO, S. K.S.; SÁ, L. A. C. M. de. Sistema de Geoinformação – SIG Aplicado a Problemática da Regularização Fundiária em Zonas Especiais de Interesse Social. Programa de Pós-Graduação em Ciências Geodésicas e Tecnologia da Geoinformação – UFPE. XXI Congresso Brasileiro de Cartografia. Belo Horizonte-MG, outubro/2003.

MARICATO, E. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. In: Maricato, Ermínia & Arantes, Otília & Vainer, Carlos. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 3ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2000.

MINISTÉRIO DAS CIDADES. Secretaria Nacional de Programas Urbanos. Regularização Fundiária. Coordenação Geral de Raquel Rolnik, Celso Santos Carvalho, Sandra Bernardes Ribeiro e Denise de Campos Gouvêa – Brasília: Ministério das Cidades, dezembro de 2005.

SARUBBI NETO, P., et al. Compatibilização de base cartográfica e base descritiva do cadastro imobiliário fiscal com suporte em imagens de satélite. 1º Simpósio de Ciências Geodésicas e Tecnologias da Geoinformação. UFPE, set/2004.

SERPA, Ângelo. Fala, Periferia! Uma reflexão sobre a produção do espaço periférico metropolitano. Salvador: Editora da UFBa. 2001.

SOUZA, A. G. Limites do Habitar: Segregação e exclusão na configuração urbana contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX. Salvador: Editora da UFBa. 1ª edição, 2000.

SOUZA, F. A. Aplicação de Sistemas de Informações Geográficas em Programas de Regularização Fundiária: O Caso de Alagados em Salvador – Bahia. Monografia apresentada ao curso de MBA em Gestão de Sistemas de Informação da Faculdade de Tecnologia Empresarial – FTE. Salvador-Ba. 2008.

TAVARES JÚNIOR, J.B., et al. Avaliação de Imagens Ikonos II e Quickbird para Obtenção de Bases Cartográficas para o Cadastro Técnico Municipal. Congresso Brasileiro de Cadastro Técnico Multifinalitário – COBRAC. UFSC. Florianópolis-SC. Out/2006.



[1] O termo periferia atualmente não se aplica apenas para áreas afastadas do centro da cidade, mas atinge regiões com escassez de infraestrutura e ocupadas por população de baixa renda, conforme SERPA, 2001.

[2] Fonte: IBGE com base na população estimada em 01/04/2007.

[3] Fonte: CONDER/INFORMS.

[4] Fonte: MINISTÉRIO DAS CIDADES (2005), IBGE apud DOE (2007) e GORDILHO-SOUZA apud OLIVEIRA (2007).

[5] Dados do Censo 2000 do IBGE citados em CARVALHO (2002).

[6] Baseando-se no Decreto Lei 9.760/46 e na Lei 9.636/98 e autorizando na Portaria Ministerial nº 271/05.

 

 

 

Infraestrutura de Dados Espaciais no Estado da Bahia

Fabíola Andrade Souza; Augusto César da S. M. Copque

 

Resumo: Este artigo faz uma análise sobre a situação de disponibilização de dados geográficos no âmbito do governo do Estado da Bahia e os atuais esforços de construção de uma Infraestrutura de Dados Espaciais (IDE) que abranja e divulgue os dados e metadados para acesso das organizações interessadas e do público em geral.

Palavras-chave: Infraestrutura de Dados Espaciais, IDE, Bahia.

 

Abstract: This article is an analysis of the situation of availability of spatial data within the government of Bahia and the current efforts to build an Spatial Data Infrastructure (SDI) covering and disseminating data and metadata access to relevant organizations and the general public.

Keywords: Spatial Data Infrastructure, SDI, Bahia.

 

1. INTRODUÇÃO

Um dos mais complexos problemas enfrentado atualmente pelos gestores públicos diz respeito à gestão do meio ambiente, considerando-se seus aspectos naturais (físico e biológico), as infraestruturas construídas e as relações socioeconômicas e culturais do ser humano que atua dentro deste ambiente. O uso e ocupação do solo tem ocorrido de maneira informal e sem respeito e atenção ao ambiente natural, principalmente a ocupação de áreas protegidas por legislação e/ou sujeitas a riscos. Os tomadores de decisão, muitas vezes, não dispõem de recursos adequados para o acompanhamento dos vetores de crescimento das cidades e consequente controle da ocupação.

Avaliar os impactos da ação humana sobre o meio ambiente requer análises complexas, sobretudo utilizando dados relacionados com o espaço geográfico; ações que ocorrem em um espaço implicam em formas de representá-lo, portanto, o uso de bases de dados geográficos torna-se relevante. Neste sentido, buscando atender à demanda crescente de gestão do território e agir de maneira rápida e eficaz na tomada de decisão, tem-se usado os Sistemas de Informações Geográficas (SIG), que permitem utilizar as bases de dados para representar espacial e fielmente a ocupação do solo das cidades, permitindo a delimitação das áreas ocupadas, dos remanescentes florestais, dos recursos hidrográficos, das condições de solo, bem como da distribuição espacial da população com base em suas condições socioeconômicas, dentre outros aspectos, o que permite dar uma dimensão mais próxima da realidade.

Contudo, ainda existem problemas quanto às fontes de dados utilizadas como referência para as análises espaciais, pois os dados disponíveis geralmente estão dispersos e armazenados em formatos e com características diferentes, dificultando a interoperabilidade por parte dos usuários. O conceito de Infraestrutura de Dados Espaciais (IDE) surgiu a partir das sugestões de resolução deste problema, sua proposta permite que o usuário possa manipular grande volume de informações geográficas espalhadas por diversos provedores de dados, sem necessidade de conversões e cópias dos dados.

No âmbito internacional, algumas ações pioneiras foram tomadas no sentido de criar IDE em nível nacional e internacional. Corso e Rocha (2003) abordam a importância destas iniciativas e apresentam os estudos realizados pela Rede Européia de Informação Geográfica (GINIE), que apontava, em 2001, 120 países com projetos de IDE em desenvolvimento, relevando os aspectos fundamentais neste processo: apoio político e legal, coordenação, sustentabilidade financeira, dados, acesso à informação e existência de padrões.

Dentre as iniciativas internacionais, pode-se destacar o Canadá[1], através do serviço Canadian Geospatial Data Infraestructure (CGDI) da GeoConnections; a Colômbia[2], envolvendo várias instituições públicas; a África do Sul[3], com o projeto National Spatial Information Framework (NSIF) e com acesso livre aos dados; os Estados Unidos[4], desde 1994 através do Comitê Federal de Dados Geográficos (FGDC); e a União Européia[5], com a consolidação dos dados de várias nações através do projeto INSPIRE.

No Brasil, esta proposta ainda está em estágio inicial, cujo passo mais significativo foi o decreto federal nº 6.666/2008 que institui a criação de uma Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), designando a Comissão Nacional de Cartografia (CONCAR) como entidade responsável por definir padrões a serem utilizados na construção e disponibilização de dados geográficos através desta IDE nacional.

A padronização e disponibilização dos dados e metadados[6] geográficos produzidos pelas instituições federais começou a se concretizar pela INDE apenas em abril de 2010, antes disto, o Estado da Bahia buscou pioneirismo com a definição de uma IDE regional, envolvendo as instituições estaduais responsáveis pela produção e disseminação de dados geográficos. Este artigo pretende apresentar as bases de conceituação desta proposta baiana e das ações executadas até o momento.

 

2. INFRAESTRUTURA DE DADOS ESPACIAIS

O SIG hoje já é utilizado em diversos estudos e projetos como ferramenta importante no apoio ao gestor, por exemplo, para cadastro imobiliário, gestão das redes de saneamento básico, estudos de impacto ambiental, análises de risco, definição de áreas para implantação de aterros sanitários, dentre outros, porém, ainda há necessidade de congregar todas as informações produzidas por esta ferramenta em um único ponto de busca e análise, permitindo maior poder de avaliação. Além disso, compartilhar informação geográfica é essencial, principalmente quando se considera o custo de levantamento e manutenção destas informações.

Davis Jr e Alves (2008) identificam que as primeiras tentativas de compartilhamento de dados estavam relacionadas à transferência e conversão do formato e, ainda que ocorresse através da Internet, o foco do trabalho sempre estava direcionado para os dados e não em sua utilidade para o usuário. Atualmente, a evolução tecnológica levou à criação do conceito de Infraestrutura de Dados Espaciais cuja “estrutura” está relacionada à prestação de serviços dentro de um ambiente de compartilhamento e distribuição de dados, não importando o formato e a localização e evitando a necessidade de conversões e duplicações nos dados (DAVIS JR e ALVES, 2008).

O conceito de IDE está relacionado à combinação do uso de tecnologia com procedimentos de gestão para permitir aos usuários acesso a dados geográficos disponibilizados por diversas instituições diferentes sem se preocupar com questões como: formato de armazenamento do dado (ex: shapefile, DXF, DWG), parâmetros de qualidade (ex: precisão), limitações do conteúdo (ex: área de cobertura, escala, período) ou projeções cartográficas (ex: UTM, geográfica).

Corso e Rocha (2003) apontam que:

 

[...] A palavra infraestrutura é usada neste contexto para promover o conceito de um ambiente confiável de suporte, buscando uma analogia com redes de transporte, energia ou telecomunicações, que neste caso facilitará o acesso e intercâmbio de informação geográfica entre usuários e produtores de dados espaciais. (CORSO E ROCHA, 2003, p. 07)

 

Para Castro (2009), os dados podem ser originados de qualquer nível: local, nacional, regional e global, a idéia principal seria:

 

[...] oferecer serviços de acesso à informação de cunho geográfico, com base em grandes catálogos de acervos de informação, sem fazer diferença o local, o meio e a estrutura física de armazenamento, incluindo em seu rol ações relacionadas à disseminação e integração de bases de dados, metadados e padronizações. (CASTRO, 2009, p. 181)

 

O diferencial de uma IDE em relação ao uso dos dados geográficos diretamente por softwares de SIG é ressaltado por Davis Jr e Alves (2008) quanto aos seguintes fatores: os usuários sempre têm acesso às versões mais atualizadas dos dados nos respectivos provedores, sem precisar copiá-los; é desnecessário ter softwares específicos nos computadores para acesso aos dados; e não há necessidade de conhecer os formatos e padrões dos dados, uma vez que a visualização destes é implementada de forma transparente num portal de Internet.

De acordo com a Global Spatial Data Infrastructure Association (GSDI, 2008), a IDE fornece as bases para a localização, avaliação e aplicação dos dados espaciais por usuários e fornecedores de todos os níveis de governo, setor comercial, setor não lucrativo, mundo acadêmico e público em geral.

Os principais elementos envolvidos na estrutura de uma IDE podem ser visualizados na Figura 01 e são descritos a seguir.

 

 

 

Figura 01: Estrutura de uma Infraestrutura de Dados Espaciais (IDE). Fonte: Davis Jr & Alves (2008) adaptado pelos autores (2010).

 

Na extremidade superior encontra-se o usuário, que pode ser tanto uma pessoa física (elemento 01) acessando os dados através de um browser (navegador de internet), quanto um sistema de computador (elemento 02) que poderá requisitar o acesso direto através de um Web Service padrão. No nível interno da IDE, o Geoportal (elemento 03) funciona como um grande portal de Internet que disponibiliza serviço de busca e publicação de dados e metadados oriundos de fontes diversas.

Através de um catálogo de Web Service (elemento 04), o Geoportal pesquisa e lista para o usuário os metadados disponíveis para todos os dados geográficos existentes, conforme requisitos de busca (Ex: mapas de Salvador na escala 1:2000 em anos diversos). A partir da identificação dos metadados existentes, o usuário pode definir se irá consultar o dado pelo Geoportal, fazer download (se disponível) ou visitar a instituição responsável para aquisição.

Pode-se citar como exemplo de dados as informações cartográficas ou temáticas relacionadas a hidrografia, hipsometria, vegetação, geomorfologia, sistema viário, distribuição da população, dentre outros; enquanto que os metadados, ao descreverem as características dos dados, apresentam informações como sistema de projeção, escala, área de abrangência, forma de acesso, produtor, nome do responsável pela divulgação e outros, a depender da especificação seguida.

Caso o usuário opte por consultar no Geoportal, este irá requisitar os dados ou Web Services selecionados aos provedores (elemento 06) e disponibilizá-los em um único mapa, liberando diversas ferramentas de navegação para o usuário interagir com ele. A vantagem, neste processo, é que os dados acessados não necessariamente estão armazenados em um mesmo lugar ou têm características iguais (ex: sistema de projeção). As ferramentas tecnológicas de uma IDE permitem que o usuário trabalhe com dados oriundos de lugares, estruturas de hardware e software e características diferentes, para tanto, os provedores devem criar Web Services com estes dados estruturados e disponibilizar os serviços para acesso através do Geoportal ou por softwares SIG que suportem a tecnologia. Na Figura 02 pode-se observar a estrutura do Geoportal do projeto INSPIRE, na Europa.

 

 

Figura 02: Estrutura do Geoportal INSPIRE. Fonte: http://www.inspire-geoportal.eu/index.cfm/pageid/341 capturado em 09/12/2009.

 

Contudo, é importante ressaltar que os bancos de dados e metadados (elementos 07 e 05 respectivamente) devem estar estruturados dentro de um padrão mínimo definido para armazenamento, permitindo buscas e disponibilização através das ferramentas tecnológicas. Dentre os padrões mais utilizados atualmente estão os definidos pela CONCAR para adoção pela INDE brasileira, sendo o OMT-G[7] para dados e o ISO-19115[8] para metadados.

Deve-se atentar, por fim, que o conceito de IDE vai além de um simples conjunto de dados geográficos e seus atributos alfanuméricos, uma vez que abarca a necessidade de metadados; formas de busca, visualização e avaliação das informações; modos de acesso aos dados; e, além disso, a existência de um ambiente para conectar dados e aplicações. Este formato sugere a elaboração de um portal de acesso único que funcione como um catálogo e permita a navegação por todos os dados e serviços disponíveis, bem como a definição de acordos entre as instituições envolvidas e a criação de padrões de dados e políticas comuns de ações. (CORSO e ROCHA, 2003).

Uma tecnologia que permita o compartilhamento de informações produzidas em diversos provedores de dados cujas informações são de interesse ao gestor público, é imprescindível para seu papel na sociedade. A gestão focada no apoio às áreas mais vulneráveis socioeconômica e fisicamente, prescinde de apoio sustentado por tecnologias e bases de dados que dêem subsídio à tomada de decisão imediata e eficaz. Especialmente pelo fato da legislação brasileira abordar a importância de preservação de áreas vulneráveis, especificamente aquelas sujeitas a impactos ambientais em função da intervenção humana.

Cerqueira (2008) valida a utilização de SIG na espacialização e visualização de um sistema de indicadores de sustentabilidade ambiental para rios urbanos - analisando a Bacia do Cobre (Salvador-Ba), contudo, destaca a precariedade das fontes de informação no Estado da Bahia, onde “os dados, de certa maneira, são até produzidos, mas estão dispersos, sem padronização e sem referência, o que impossibilita a geração de bancos de dados públicos de uso comum, bem como estatísticas” (CERQUEIRA, 2008, p. 188), especialmente quando se trata da escala urbana.

Castro (2009), ao analisar a disseminação e uso do geoprocessamento nas prefeituras municipais da Bahia, respalda este ponto de vista ao apontar a IDE como um caminho alternativo para obtenção de sucesso em projetos relacionados à geotecnologia, principalmente por possibilitar redução de custo e acesso aos dados de forma mais fácil e confiável, evitando a duplicidade de iniciativas e o desperdício de recursos.

 

3. BASES DE DADOS GEOGRÁFICOS NA BAHIA

No Estado da Bahia, existem iniciativas de algumas instituições na formação de bases de dados geográficos voltadas para mapeamento estadual, regional e/ou municipal, cujos dados ainda encontram-se dispersos e armazenados com formatos e características variadas.

Corso et al (2002) identificam que na Bahia os maiores usuários de geoprocessamento são organizações públicas e que o perfil destas instituições se divide em: provedoras de dados, provedoras de serviços e usuários. Destacam, especialmente, a CONDER[9] e a SEI[10], no âmbito estadual, como provedoras de dados em escala urbana e regional, respectivamente; enquanto o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) seria o principal provedor federal, cuja base cartográfica encontra-se desatualizada e em escala pequena (1:100.000 e 1:250.000).

Em relação à CONDER, pode-se identificar através de seu site que existe o Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia (INFORMS), cujo acervo montado é composto de produtos analógicos e digitais de cartografia sistemática, cartografia temática, fotografias aéreas, ortofotos, imagens georreferenciadas, imagens de satélite e um banco de dados geográficos com foco em informações cartográficas, socioeconômicas, institucionais e de cadastro técnico multifinalitário, abarcando mais de 40 municípios do Estado. Ainda que existam mapas disponíveis para consulta on-line de parte destas informações, o acesso às bases de dados cartográficos ainda ocorre através de contratos ou convênios, com repasse de recursos à instituição, o que nem sempre é viável para os usuários interessados.

No tocante à SEI, as informações disponíveis no site apresentam a existência de um grande acervo de dados econômicos e sociais ainda como dados alfanuméricos e a disponibilização de alguns mapas temáticos (Ex: divisão político-administrativa, pluviometria, geologia, solos, dentre outros) em formato PDF; parte das informações pode ser consultada e visualizada sob forma de mapa temático através de um SIG-WEB denominado SIDEGEO. Esta instituição também disponibiliza as folhas cartográficas do IBGE em escala 1:100.000 que foram digitalizadas e georreferenciadas, contudo, estes dados encontram-se defasados, por datarem de período correspondente ou anterior à década de 1970.

A maior novidade, neste contexto, é o projeto de atualização cartográfica do Estado, coordenado pela SEI, com conclusão prevista para o final de 2010. O objetivo principal é a atualização da Base Cartográfica Sistemática, na escala de 1:25.000 nas regiões  Oeste,  Litoral e Extremo Sul; e na escala 1:50.000 no semi-árido baiano. As especificações técnicas definidas visam à elaboração de mapeamento sistemático e temático a partir dos seguintes produtos e serviços: imageamento, Modelo Digital de Superfície (MDS) com precisão de 1,8m, ortofotos digitais com resolução de 80cm e curvas de nível de 10m e 20m a depender da escala de cobertura. A forma de disponibilização destes dados para o público em geral está em discussão, provavelmente ocorrerá através do Geoportal com restrições na qualidade das imagens.

Em relação a outras instituições do governo estadual, várias apresentam iniciativa voltada para produção de dados geográficos específicos e, eventualmente, a divulgação destes através de sistemas WEB de consulta espacial. Pode-se citar, por exemplo, iniciativas do Instituto do Meio Ambiente (IMA), Instituto de Gestão das Águas e Clima (INGÁ) e Departamento de Infraestrutura de Transportes da Bahia (DERBA).

Ainda que estas instituições apresentem muitas informações de interesse entre elas e para o público em geral, percebe-se uma dificuldade de intercâmbio devido à falta de padronização das informações e de políticas claras para permuta de dados.

 

4. IDE NA BAHIA

Numa iniciativa pioneira no país, o governo baiano, através da Comissão Estadual de Cartografia (CECAR) e do Fórum de Gestores de Tecnologia da Informação e Comunicação (FORTIC), está trabalhando na criação de uma IDE estadual.

O objetivo desta IDE é permitir a divulgação e utilização dos dados produzidos sobre o Estado de maneira centralizada, através de um portal na Internet que permita acesso integrado a todos os dados espaciais existentes, inicialmente, nas instituições estaduais, sem necessidade de conversão dos dados ou de duplicação da informação, cuja gestão ocorre de forma compartilhada entre os provedores de dados. Posteriormente, dados das instituições federais e municipais com atuação na Bahia também devem integrar-se ao projeto.

Segundo dados do FORTIC (2009), a IDE-BAHIA vislumbra a construção de um ambiente que permita compartilhar dados, sem que haja replicação ou redundância, respeitando os processos de produção inerentes à rotina dos produtores e criando condições reais para o desenvolvimento de aplicativos que integrem dados de múltiplas fontes sem a necessidade de cópia ou transferência.

Para o autor (op. cit.), dentro desta IDE, o Geoportal busca prover uma estrutura de dados e informações integradas em conjunto com os diversos órgãos produtores e consumidores de dados geográficos e espaciais nos diversos níveis de governo, visando:

 

  • coletar, tratar, compartilhar e disponibilizar bases espaciais de órgão e entidades do Poder Executivo Estadual;
  • promover o intercâmbio de dados e o acesso a informações espaciais produzidos por outros Poderes e Esferas de Governo, por organismos não governamentais e pela iniciativa privada.

 

A IDE-BAHIA, atualmente conta como instituições participantes: Secretaria de Planejamento do Estado (SEPLAN), Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDUR), Secretaria do Meio Ambiente (SEMA), Companhia de Processamento de Dados do Estado (PRODEB), Casa Civil, INGÁ, DERBA, CONDER e SEI.

No momento está sendo licitada a contratação de empresa especializada no desenvolvimento tecnológico e institucional de uma IDE e do Geoportal para acesso, através da ação conjunta das instituições envolvidas. A proposta é que este mesmo grupo faça parte da coordenação da IDE quando ela estiver em atividade. Corso e Rocha (2003) destacam a importância da coordenação de uma IDE envolver as organizações responsáveis pela produção do dado, uma vez que ao envolverem-se na definição das políticas, há um maior comprometimento na ação necessária.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso de uma IDE mostra-se viável ao permitir disponibilizar bases de dados variadas, atualizadas e confiáveis, oriundas de provedores diferentes, sem obrigar o gestor a construir estes dados ou ter que convertê-los, gerando duplicidade e onerando seu trabalho.

O sucesso, contudo, não depende apenas da qualidade do dado disponibilizado, nem das formas de acesso, mas principalmente, da política de estruturação e disseminação destes dados, definida entre as instituições provedoras, e dos recursos disponíveis para manutenção; uma vez que a liberação das informações e o acesso rápido e ágil a bases de dados atualizadas garantem a eficácia do projeto.

Em relação à IDE-BAHIA, pode-se destacar seu pioneirismo diante dos demais Estados do Brasil e a forte participação dos principais órgãos provedores e usuários de dados. Contudo, devemos observar que esta iniciativa está sendo capitaneada pelo corpo técnico das instituições, havendo necessidade de um forte envolvimento político e comprometimento financeiro, para que o projeto siga adiante e possa ser bem sucedido, inclusive, em gestões de novos governos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Decreto nº 6.666 de 27 de novembro de 2008. Institui, no âmbito do Poder Executivo Federal, a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais – INDE. Diário Oficial da União. Brasília.

BORGES, Karla A. V. A Gestão Urbana e as Tecnologias de Informação e Comunicação. Belo Horizonte - MG. Disponível em: http://www.miniweb.com.br/Geografia/Artigos/geo_mundial/gestao_urbana.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2004 às 11:32 horas.

CÂMARA, Gilberto; MONTEIRO, Antônio M. V. Conceitos Básicos em Ciência da Geoinformação. Disponível em: http://www.dpi.inpe.br/gilberto/livro/introd/cap2-conceitos.pdf. Acesso em 09 de julho de 2004 às 14:07 horas.

CASTRO, Cássio M. S. 2009. Análise da utilização do geoprocessamento na administração municipal: alcances e limitações dos programas governamentais de disseminação das geotecnologias. Dissertação de mestrado. Escola Politécnica - UFBa. Salvador-Ba. 247 páginas.

CERQUEIRA, Érika do C. 2008. Indicadores de sustentabilidade ambiental para a gestão de rios urbanos. Dissertação de mestrado. Escola Politécnica - UFBa. Salvador-Ba. 225 páginas.

CORSO, Gilberto. 2002. Dados Geográficos: Aspectos Tecnológicos. In: Corso, Gilberto; Rocha, Mª Célia F. (Org.) Dados Geográficos: Aspectos e Perspectivas. Cadernos REBATE. Salvador-Ba. LCAD/UFBA.

CORSO, Gilberto; ROCHA, Mª Célia F.; CARVALHO, Silvana S. de. 2002. Infra-Estrutura de Dados Espaciais: O Caso Baiano. In: Corso, Gilberto; Rocha, Mª Célia F. (Org.) Dados Geográficos: Aspectos e Perspectivas. Cadernos REBATE. Salvador-Ba. LCAD/UFBA.

CORSO, Gilberto; ROCHA, Mª Célia F. (Org.) 2003. Informação Geográfica: Infra-estrutura e acesso. Cadernos REBATE. Salvador-Ba. LCAD/UFBA.

DAVIS JR, Clodoveu A.; ALVES, Leonardo L. Infra-Estruturas de Dados Espaciais: Potencial para Uso Local. Disponível em: http://www.ip.pbh.gov.br/ANO8_N1_PDF/ANO8N1_Clodoveu.pdf. Acesso em 03 de novembro de 2008 às 13:45 horas.

FORTIC. Fórum de Gestores de Tecnologia da Informação e Comunicação. Disponível em http://www.fortic.ba.gov.br. Acesso em 25 de novembro de 2009 às 21:30 horas.

GSDI. Global Spatial Data Intrastructure Association. Disponível em: http://www.gsdi.org. Acesso em 13 de novembro de 2008 às 21:27 horas.

projeto INSPIRE, na Europa.



[1] http://www.cgdi.ca

[2] http://www.icde.org.co/acuerdos.html

[3] http://www.nsif.org.za

[4] http://www.fgdc.gov

[5] http://www.inspire-geoportal.eu/index.cfm

[6] Metadado é a documentação descritiva sobre um determinado dado, deve explicar e identificar este dado.

[7] Detalhes sobre o padrão em http://www.concar.ibge.gov.br/plenaria14/

[9] CONDER – Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (http://www.conder.ba.gov.br).

[10] SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (http://www.sei.ba.gov.br).

 

 

Rio de Janeiro: contextualizando o processo de revitalização na região portuária

Márcia Regina Martins Lima Dias

 

Introdução

O presente artigo aborda a proposta de transformação no cenário urbano da Região Administrativa Portuária - RA I pela implementação do Projeto Porto Maravilha da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e sua relação com a sociedade com especial destaque para o processo de revitalização. Tem por objetivo discutir o processo de ocupação e uso do território e propor uma reflexão sobre o projeto apresentado pela Prefeitura Municipal com foco nos eventuais impactos, positivos ou negativos, a serem gerados na região. Para tal, relaciona as ações governamentais à demanda retratada pelos indicadores sociais e a percepção da sociedade sobre o projeto, como uma das formas de validação de políticas públicas e com vistas à valorização do patrimônio cultural material e imaterial. Para desenvolver o tema foi necessário criar uma interface entre uma gama de autores e conteúdos nas áreas da arquitetura, engenharia civil, direito, geografia, filosofia, sociologia e história cuja temática fosse a evolução da ocupação territorial de uma Metrópole. Como parâmetro de análise para o processo de revitalização, foram utilizados os exemplos do Porto Madero, na cidade de Buenos Aires, Argentina, cujo processo de reforma completou 20 anos em novembro de 2009, e a cidade de Paris, França, cujo processo está em curso. A assinatura do acordo de cooperação assinado pelos Prefeitos do Rio de Janeiro e da capital francesa, prevê que técnicos do Ateliê Parisiense de Urbanismo apresentem sugestões para a região. A Gestão em áreas portuárias como vemos em Porto Madero e Boston teve por base a extinção das atividades portuárias propriamente ditas. Apresentaram um complexo projeto urbano que compreende a criação de espaços de lazer, cultura, gastronomia, eventos, além da criação de áreas para expansão do mercado imobiliário com novas construções, atraindo novos investimentos empresariais e residenciais. No Brasil, as intervenções contam com a participação e o desenvolvimento de uma política urbana federal, mantidas ou não as atividades portuárias. Cidades como o Rio de Janeiro, Recife, Olinda, Natal, São Luís e Porto Alegre são o foco de projetos que contam com operações consorciadas entre as esferas governamentais e a iniciativa privada. Podemos citar outras cidades que passaram por processos semelhantes, entretanto, não farão parte deste recorte, tais como: Barcelona, Vancouver, Sidney, entre outras. O Ministério das Cidades definiu alguns preceitos que devem ser observados quando se traçam as estratégias de Gestão e Ocupação: gestão e monitoramento de longo prazo; mix de ocupação da área (presença de “âncoras”); respeito à memória coletiva, ao patrimônio e ao contexto preexistente; e atenção ao poder da paisagem como edificação coletiva e de identidade. As questões ambientais com especial destaque para processos de intervenção urbana, aliadas ao papel do setor imobiliário, com a crescente busca por lugares de atração para investimentos e moradia, formam a fundamentação básica para se compreender o processo de recuperação de áreas degradadas, conhecido como revitalização, renovação, requalificação ou reabilitação urbana. Em que pesem as diferentes conceituações às terminologias apresentadas para as políticas de intervenção urbana, o termo revitalização - recuperação ambiental dos centros urbanos em estado de abandono ou degradação do meio físico, numa visão econômica, vem se tornando mais usual e associa aos outros conceitos de intervenção, trazendo em seu contexto a idéia de empreendimento sustentável, o que faz “pano de fundo” na discussão sobre o projeto. Por princípio, deve atender a quatro requisitos básicos: ser ecologicamente correto, economicamente viável, socialmente justo e culturalmente aceito. Seja pela requalificação, que propõe afirmativas a dinâmica socioeconômica, seja na reabilitação urbana, cujo objetivo é o de adequar o processo ao fim pretendido, os processos apresentam entraves. A falta de determinação do fim pretendido aliado a ausência de planejamento participativo, são fatores que determinam o insucesso de processos desta ordem. A busca da sustentabilidade pressupõe a transformação do cenário urbano a médio e longo prazo, que por sua vez pressupõe o sentimento de pertencimento da sociedade desde a sua concepção. O interstício temporal entre o planejar e o executar prevê, no mínimo, a implementação de ações que supram as demandas locais na busca da sustentabilidade da proposta em si. Projetos dessa envergadura, para obterem sucesso, devem estar apoiados pelos atores que decidem os usos da cidade e que possuem os instrumentos apropriados para a implementação dos planos A gestão participativa é uma forma de reorganizar estes espaços com controle e monitoramento das atividades. Neste contexto, alguns aspectos devem ser analisados e para tal propomos este trabalho dividido em 5 (cinco) temáticas que abordam a economia, legislação, exemplos de âmbito internacional, a reforma urbana propriamente dita e um estudo realizado com a população local.

 

1. A Cidade, o Porto e a Economia.

A cidade como principal elo entre o porto e a economia regional é objeto de pesquisas e análises e na busca da compreensão do processo faz-se necessário refletir sobre a proposta com foco nos eventuais impactos, positivos ou negativos, a serem gerados na região. A evolução da ocupação territorial de uma Metrópole que, além de apresentar peculiaridades históricas, possui uma forte vocação para as atividades portuárias e turísticas, reforça a tese de adequar os processos de ocupação com a preservação da sua identidade cultural. A cidade portuária pressupõe, na atualidade, estratégias de desenvolvimento local e regional convergentes com o aumento na demanda da importação e exportação. A mecanização e modernização das atividades portuárias e a sua funcionalidade adaptada às novas tecnologias, são fatores de forte apelo para se propor substituições no equipamento urbano e nos modais de transportes, alterações na paisagem e no modo de vida, criando um repensar sob a ótica da gestão pública, que necessita administrar as novas situações, avaliar necessidades e requalificar o território. Os porto modernos seguem a lógica da implementação de uma estrutura de escoamento e industrialização na área do retroporto. A logística que adota o porto-indústria, com a participação de grandes indústrias globalizadas, envolvendo importações e exportações, chega ao Brasil. Estão sendo implantados três portos dentro dessa lógica: dois no nordeste e um no sudeste. O complexo de Açu, no Rio de Janeiro, por exemplo, está avançando com duas siderúrgicas e outros empreendimentos em negociação, estruturado com ampla área de retaguarda será um novo modelo de "terminal privativo". Hori[1] (2010) afirma que “... os que não seguem esse modelo acabarão perdendo posições”. O projeto na capital do Rio de Janeiro não poderia ficar indiferente as automatizações de carga e desembarque de passageiros. A região dispõe dos principais modais de transporte e se configura num importante corredor no fluxo de circulação intra e interurbana municipal, interestadual e internacional. O projeto remete a uma “análise de oferta”, ou seja, uma avaliação das composições entre aptidões e usos do território para imbasar as negociações e acordos firmados.

 

2. Paris Revi Gauche, Puerto Madero e o Porto do Rio de Janeiro: similaridades.

O projeto “Paris Rive Gauche” passa por debate e reformulações desde os anos de 1990 e apresenta-se como modelo, apresenta-se polêmico por sua arquitetura e inteligente pela abordagem sustentável, une três bairros (quartiers) de Austerlitz, Tolbiac e Masséna e inclui edifícios como a Biblioteca Nacional, projeto de Dominique Perrault, e a Universidade de Paris 7. Segundo a engenheira Melhado[2] (2008) “a revitalização de sua área de 130 hectares (1,3 km²) surgiu com o objetivo de ligar o antigo bairro ao Rio Sena, ao superar a declividade do terreno e remanejar 26 hectares (260 mil m²) cobertos por linhas férreas, que ficavam entre o bairro e o rio. A idéia também inclui o desenvolvimento de um novo pólo econômico da cidade, tornando a região atrativa para indústrias e para a geração de emprego, e ainda promover a miscigenação urbana e social. Para isso, propõe reequilibrar, por exemplo, a quantidade de moradias sociais e estudantis e integrar a universidade à cidade.” No início do projeto a preocupação era mais social que ambiental, entretanto itens como a redução no consumo de energia, gestão da água, redução da poluição sonora e melhoria de moradias e construções foram incorporadas e passaram a nortear o projeto, ao lado da necessidade de novos empregos, transporte e lazer, com vistas à sustentabilidade. Os prédios construídos nos últimos quatro anos passaram a utilizar eletricidade gerada a partir da energia solar captada por painéis fotovoltaicos, além de sistemas de reuso de água. O projeto prevê que até 2025, o consumo energético da região deverá ser reduzido a ¼ do que era em 2000. As obras ainda devem durar cerca de dez anos. O programa prevê um modal de transporte menos poluentes, aluguel de bicicletas em pontos estratégicos do bairro (Programa Velib); investimento de 3 bilhões de euros entre 1991 e 2015, 26 hectares (260 mil m²) de linhas férreas cobertas, restringiu 20% da área para uso residencial (430 mil m²) com cinco mil unidades distribuídas entre unidades para estudantes, de interesse social e da iniciativa privada e distribui o restante da área nas seguintes proporções: 18% da área para serviços, como escolas (405 mil m²); 30% da área para bibliotecas e universidades (662 mil m² e 210 mil m², respectivamente); 32% da área para escritórios (700 mil m²), com capacidade para 60 mil funcionários; e 10 hectares (98 mil m²) de área verde, com duas mil árvores. Em relação aos transportes menos poluentes, Melhado (2008) acredita que "o conceito de sustentabilidade vai muito além das soluções técnicas de conforto acústico e energia; é preciso ter o transporte adequado. A engenheira Melhado (2008) acredita ser possível trazer a idéia para o Brasil, apontando como barreira a cultural, que envolveria uma mudança de comportamento associada à educação. Na contramão de todas as benesses proferidas encontramos o filósofo francês Henry Pierre Jeudy. Jeudy (2005) declara que no mundo inteiro, há uma tendência de conservação patrimonial que se exerce sobre a cidade por meio da reconstituição do centro histórico. É uma maneira de dar certa imagem estética internacional para o turismo, de guardar uma idéia de unidade e harmonia da cidade. O problema é que o processo de conservação patrimonial torna as cidades cada vez mais parecidas. No fundo, há sempre um centro histórico, onde tudo é refeito da mesma forma. Normalmente o início desse processo é uma busca de identidade da cidade que leva a cidades patrimonializadas, onde o centro é colocado como a vitrine de uma loja. Declara ainda que o processo de revitalização petrifica, promovendo o esvaziamento e a morte das regiões, que perdem sua evolução natural. Alega que os Centros patrimonializados podem acabar desestimulando o turismo tendo em vista que o turista viaja para lugares diferentes, porém, vê sempre a mesma coisa. Alerta também para o fato de que no momento em que o governo parar de estimular as “animações culturais” o Centro fica vazio e, sem vida própria, acaba morrendo.

Na cidade de Buenos Aires, Argentina, a região de Puerto Madero deu lugar a um bairro que concentra os edifícios mais caros da cidade e uma ampla oferta gastronômica. O porto construído no final do século XIX entrou em declínio com o passar dos anos, tornando-se um local quase abandonado na segunda metade do século XX. Sua modernização e reestruturação deram nova vida à região e o bairro se tornou um centro novo para a cidade, com residências, escritórios e restaurantes de qualidade internacional, com a instalação de grandes hotéis, se transformando no bairro mais luxuoso dos portenhos, o que tornou o local um tanto caro. Na sua concepção atual a região é um exemplo de como um bom planejamento urbano com esforço e trabalho deram origem a uma área importante da Província de Buenos Aires, tornando-se um dos principais pontos de encontro e uma das zonas turísticas mais bem sucedidas da cidade. Numa breve abordagem histórica, a trajetória que deu origem a revitalização surgiu da necessidade de se construir uma ligação entre a cidade e os navios que chegavam da Europa durante os últimos anos do século XIX, auge do agro modelo de exportação da Argentina. O engenheiro Eduardo Madero promoveu seu projeto pessoal, que propôs a construção de quatro barragens fechadas, ligadas por pontes e duas docas, norte e sul. O projeto aprovado pelo presidente Julio Argentino Roca em 1884, iniciou a construção (1900 até 1905), quando 16 docas foram construídas de tijolos, no estilo da arquitetura Sharp Inglês utilitária . Com aumento no tráfego de mercadorias e o intenso movimento de passageiros o Porto Madero foi superado, começando a apresentar falhas no ano de 1910. Tornava-se necessário modificar as obras e dar um novo passo na história e o resultado dessa construção começou por alargá-lo. Ao longo dos anos outro momento crucial se revela na história e Porto Madero passa por um processo de renovação no final da década de 80, graças à Lei da Reforma do Estado e a criação da Corporação Antiguo Puerto Madero, cujo principal objetivo foi realizar trabalhos de desenvolvimento em 170 hectares e de modernização na área central da cidade. Isto resultou no trabalho de construção de uma estreita faixa situada entre as barragens, bem como dois grandes parques e amplas avenidas e vias de pedestre. Foram recuperados numerosos detalhes para manter a história viva: Porto Madero foi o tema da reciclagem das antigas docas de mercadorias, mantendo as fachadas de tijolo e vigas de ferro fundido, onde os galpões foram reparados e incorporando-se vários elementos que contribuíram para a elegância, a identidade e o prestígio para a área que, atualmente, é usada por edifícios e lofts , bem como escritórios, bares, restaurantes, universidades e diversas obras de beleza arquitetônica incomparável.

O Projeto Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, foi apresentado à sociedade tendo como principal objetivo a requalificação da estrutura da região, através da construção e recuperação de habitações, promoção da cultura e entretenimento, aliados a preservação e a melhoria da qualificação ambiental. Prevê a formação do corredor verde com o plantio de árvores; a reforma do sistema de tratamento de água em tempo seco no canal do Mangue, Rio Comprido e Maracanã; a reurbanização de vias e construção de novas vias  (ilustração 16) rodoviárias, a complementação da ciclovia com trechos que ligarão o Leblon ao cais; uma garagem subterrânea, lixeiras, bicicletários, totens, painéis informativos, entre outras. O plano concebido em 1992 tratava a região como um espaço estratégico de desenvolvimento, tinha por meta atrair novos empreendimentos privados (serviços, comércio, lazer cultural, e habitação para classe média), rompendo o caráter de isolamento dos bairros portuários (melhorias nos sistemas de locomoção) e reintegrando a área à paisagem e ao uso da Baía de Guanabara (lazer, esporte e contemplação). Busca a valorização e preservação do patrimônio arquitetônico e urbano local, criando uma política para o reaproveitamento de imóveis de valor histórico para fins habitacionais, comerciais ou de serviços, instituindo, para este fim, um órgão gestor para o desenvolvimento da região. O objetivo central do atual Projeto é a requalificação completa da região, a ser financiada com recursos públicos e privados oriundos de uma Operação Urbana Consorciada , como a utilizada em São Paulo (Água Espraiada, Faria Lima, Ponte Estaiada-Large), compreendendo as seguintes demandas: habitação; cultura e entretenimento; comércio e indústria; recuperação completa da infraestrutura urbana, de transportes e do meio ambiente da região, de acordo com os novos usos do solo previstos; preservação e melhoria do meio ambiente, com arborização de calçadas (aprox. 40km c/ 11 mil árvores), novas praças e parques, e limpeza do canal do mangue criando, aproximadamente, 20 mil empregos diretos durante as fases 1 e 2, com investimentos previstos na ordem de R$ 3.000.000.000,00 (três bilhões de reais); melhoria das condições habitacionais da população existente e atração de novos moradores para a região projetando-se um crescimento de moradores na região de 20 mil para 100 mil (~30 mil casas); recuperação do casario através do programa novas alternativas; e instalação de unidade de polícia pacificadora (UPP) no Morro da Providência (março de 2010). Prevê a reurbanização do Bairro da Saúde e Morro da Conceição; o restauro da Igreja de São Francisco da Prainha; a recuperação e retrofit no edifício “A Noite”; uma garagem subterrânea; e a nova estação do Metrô – Cidade Nova (Lauro Muller). Em andamento se encontram os seguintes projetos: o Píer Mauá; o Museu do Amanhã (Guggenheim), a cargo do Arquiteto Santiago Calatrava e da Fundação Roberto Marinho; a Pinacoteca do Rio; o novo prédio da Polícia Federal; o AquaRio, maior aquário da America Latina, construído pela Kreimer Engenharia, com previsão de término para o inicio de 2011. Abrigará a nova sede do Banco Central e a Escola Técnica de Audiovisual e Restauro. O local funcionará como terminal de passageiros e terá varandas de observação denominadas “janelas para o mar”. Posteriormente, os 3.500 metros quadrados do espaço serão transformados em uma área de cultura e lazer, com restaurantes, cinemas, bares e lojas (Sérgio Cabral). Com falhas e erros se reflete no repensar à Cidade como espaço integrado onde as partes estão interligadas e são interdependentes.

 

3. O Direito à Cidade

A fundamentação jurídica compreende todas as fontes de direito disponíveis, respaldando  e refletindo o motivo e justifica à ação do poder público baseado na lei, nos princípios de ordem jurídica e no interesse público ao privado. O Plano Diretor da Cidade se apresenta num misto de participação de grupos da sociedade e de grupos de especialistas, tratando a metodologia de reunir por um lado as expertises dos grupos setoriais envolvidos com a técnica aliada aos campos do conhecimento pertinentes. É dever de o Estado intervir para promover a preservação e garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais. Para tanto, consagra o art.205 CF como direito de todos a Educação, estimulada pela sociedade com o objetivo de promover maior grau de cultura a população, pois quanto maior for seu grau de compreensão e conhecimento, maior será o valor atribuído ao seu patrimônio cultural. A interligação entre educação e cultura promovida pelo Estado deverá fomentar a proteção dos monumentos e edificações para barrar atos de vandalismo e depredação, e promover o acesso às fontes e manifestações culturais (art.215 CF), que se expressam em bens de natureza material e imaterial, assumidos individualmente ou em conjunto, perpetuando referências à identidade, ação ou memória dos grupos sociais, constituindo o patrimônio cultural brasileiro (art.216 CF). Entre estes bens encontram-se as edificações e os conjuntos urbanos, que representam um estilo e uma época e retratam o modo de vida da sociedade. A participação da sociedade na preservação do patrimônio cultural poderá ser verificada na apresentação de projetos de lei; na fiscalização de execução de obras e na proteção legal. Segundo Santos (2009), através da propositura de lei municipal, os cidadãos podem apresentar projetos de lei de interesse específico do município, desde que preencham os requisitos do art.29, XI da Constituição Federal. Poderão ainda, fiscalizar a execução de obras que podem causar impacto ao meio ambiente ou ao patrimônio cultural, acompanhando os estudos de impacto ambiental e seu relatório (EIA-RIMA), nos termos da legislação ambiental (Lei N.º 6.938/81), e proteger juridicamente o patrimônio cultural através da Ação Civil Pública prevista na Lei N.º 7.347/85, a qual rege as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. A iniciativa popular também será exercida pela representação à Câmara dos Deputados de projetos de lei, desde que preencha o número de eleitores previsto no art.61, §2º da Constituição Federal. A Ação Civil Pública pode ser proposta pela União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista, o Ministério Público e associações que estejam constituídas pelo menos há um ano e tenham entre suas atividades a proteção ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Através da Ação Popular (Lei N.º 4.717, 29.6.65) poderá o cidadão postular a anulação de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista de fundações etc., considerando-se como patrimônio público os bens de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico (art.1º, caput e §1º). Uma nação que não conhece, não preserva e não valoriza seu patrimônio cultural é uma nação sem "alma e sem sentido", que fatalmente estará fadada a se extinguir, afirma Santos (2009) .A intervenção do Estado na propriedade privada visa proteger o interesse social e se manifesta através de ato compulsório do Poder Público que retira ou restringe o direito à propriedade, sujeitando o uso dos bens particulares a uma destinação de interesse público, a saber: a preservação da identidade cultural, entre outros. Seus fundamentos se dividem em político, que tem por objetivo proteger os interesses da sociedade contra conduta anti-social praticada pelo particular; e jurídico, quando dispuser a Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional. Tem como modalidades o tombamento e a desapropriação.

 

3.1 Tombamento

O vocábulo advém do verbo tombar no sentido de inventariar, registrar ou inscrever bens. Segundo Oliveira (2008), no direito português o vocábulo referia-se a registrar nos arquivos do reino guardados na Torre do Tombo, portanto, tombamento significava inscrever em um dos quatro livros do Tombo: Belas Artes; Histórico; Arqueológico e Etnográfico; e Paisagístico. É a forma com que o Poder Público protege o patrimônio cultural com vistas à preservação da memória nacional, refletindo o aspecto histórico do país, fazendo parte da sua cultura e retratando inúmeros aspectos sociais, políticos, econômicos, artísticos, científicos, paisagísticos e turísticos. Nesta abrangência de fatores, esses bens, embora permaneçam na propriedade privada, passam a ser objeto de proteção estatal, impondo ao particular certas restrições quanto ao uso e obrigações quanto a conservação. Pode ser definido como o procedimento pelo qual o Poder Público impõe ao proprietário particular de um bem com valor comprovadamente de interesse cultural, restrições administrativas visando a sua preservação e proteção. Com o objetivo de fomentar a cultura a Emenda Constitucional n.º 48 acrescentou o § 3º no art. 215, onde prevê o estabelecimento do Plano Nacional de Cultura, com duração plurianual. Tem por fundamento a adequação do domínio particular às necessidades de interesse público resguardando o interesse coletivo e mantendo a função social da propriedade. Encontramos na arquitetura a forma de mais fácil exemplificação destes bens tombados, seja pelo seu aspecto histórico retratando a predominância de determinado estilo, ou por sua importância cultural quando retratam aspectos culturais antigos e que de alguma forma marcaram época. Atualmente, outras necessidades movem o Estado no sentido de tombar áreas urbanas para impedir que a especulação imobiliária exerça um forte impacto no meio ambiente pela incompatibilidade que será criada entre a demanda e a oferta de serviços públicos disponíveis, entretanto, o estado vem usando de forma ilegal esta prerrogativa que nenhuma relação verdadeira mantém com o real motivo do tombamento, podendo se valer de outros instrumentos para instituir limitações ao uso, bastando alterar critérios para a edificação mantendo determinado gabarito, por exemplo, ou impedindo determinada atividade. Carvalho (2009) aponta uma "conduta dissimulada do governo municipal, aplicando indevidamente o tombamento, que, como regra, não enseja indenização ao proprietário, em lugar de estabelecer limitações urbanísticas individuais." Observa-se uma conduta muito mais de origem política do que de interesse público, revestindo o fundamento do instituto. Diverge a doutrina sobre a natureza jurídica considerando-o ora como servidão administrativa, ora como limitação administrativa ou especificamente, se tratar de um bem de interesse público, não obstante que acima de tudo se constitui por ato administrativo devendo conter todos os pressupostos legais, decorrendo de procedimentos administrativos. Seu objeto recai sobre bens móveis e imóveis, segundo o art. 1º do Decreto N.º 25/37, lex specialis, entretanto, para este estudo, trataremos apenas dos bens imóveis que reflitam importância no contexto histórico nacional. Podemos analisar o instituto através de suas espécies reunidas considerando a manifestação de vontade (voluntário ou compulsório) ou eficácia do ato (provisório ou definitivo). A doutrina ainda admite o tombamento individual, quando atinge bem determinado e geral quando atinge uma área ou bairro. Como regra, o tombamento possui caráter individual, direcionado a determinado bem e proprietário e sendo o suposto tombamento geral, de caráter abstrato e genérico, incompatível com a natureza jurídica do instituto. Ensina Carvalho (2009) que "quando várias edificações de um bairro ou uma cidade são alvo de tombamento, tal ocorre porque foi considerada cada uma delas per se como suscetível de proteção histórica ou cultural." O processo administrativo que dá origem ao ato propriamente dito, geralmente, se reveste de conflitos entre o interesse do Estado e o particular, sendo passível de verificação quanto a sua forma, motivo e legalidade, dando amplo direito do contraditório e defesa, permitindo todos os meios de prova cabíveis para demonstrar a inexistência de relação entre o bem a ser tombado e a proteção ao patrimônio nacional. O Decreto Lei N.º 3.365/41, que trata de desapropriações quanto aos bens públicos, concede a União o poder de tombar bens estaduais, distritais e municipais e o Estado pode exercer tal direito sobre os Municípios. O seu desfazimento pode ser efetivado ex officio ou a pedido do proprietário sendo possível quando comprovada a ausência do fundamento que o decretou. Quanto aos efeitos oriundos do ato se observa a sua importância no que tange o uso e a alienação do bem, sendo vedada a sua demolição, destruição ou mutilação, devendo o proprietário conservá-lo de forma que mantenha as características culturais inerentes a proteção decretada, devendo solicitar prévia autorização para pintar, reparar ou restaurar. Inexistindo a possibilidade de dispor de recursos financeiros para a sua manutenção deverá comunicar ao órgão que a decretou que tratará da execução as suas expensas. Fica assegurado ao Estado à possibilidade de fazê-lo tomando para si a obrigação de providenciar as obras, em caso de urgência. O tombamento atinge a área vizinha ao prédio tombado, impondo restrições quanto a qualquer construção que impeça ou reduza a sua visibilidade, além de outras restrições de menor relevância. Ressalvamos que, sendo provado o prejuízo ao proprietário quanto ao valor do bem devido ao tombamento decretado, poderá este solicitar uma indenização ao Poder Público, no prazo de 5 (cinco) anos, contado do ato que instituiu o tombamento. Sendo omisso o Estado no seu papel de preservar o patrimônio cultural, poderá ser utilizado o direito de petição por via administrativa, com base no art. 5º, XXXIV da CF por qualquer pessoa para requerer ao Poder Público que providências sejam tomadas no sentido proteger determinado patrimônio. Através da via judicial caberá a Ação popular, prevista no art. 5º, LXXIII da CF, para anular atos lesivos ao patrimônio histórico e cultural, tendo legitimidade ativa o cidadão, regulamentada pela Lei. N.º 4.717/65. A Ação Civil Pública (Lei N.º 7.347/85), cujo objetivo principal é a proteção dos interesses coletivos, em seu art. 1º, III define o alcance de proteção do diploma legal, a saber: aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Conforme alerta Santos (2009), deve-se observar que a decisão administrativa de tombamento poderá ser objeto de discussão na esfera do Judiciário, pois não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito (art.5º,XXV, CF), o que propicia a discussão com a sociedade do processo de tombamento.

 

3.2 Desapropriação

Desapropriar é a forma mais contundente do Estado intervir na propriedade privada em caráter supressivo, retirando e desapossando seus então proprietários, ou seja, provocando a perda da propriedade. No seu papel de ente público, o Estado se apropria de determinado bem amparado por razões de utilidade pública ou interesse social, geralmente, através de indenização paga. Norteado por uma série de atos administrativos e judiciais, a desapropriação é um procedimento de direito público, embora o Código Civil em seu art. 1.228, § 4º tenha concebido o instituto de expropriação que se assemelha a desapropriação sendo que este promovida pelo particular. Nesta concepção, reside à expropriação social de caráter coletivo, e, neste prisma, será matéria a ser tratada pelo direito privado.

 

Art. 1.228 O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer injustamente a possua ou detenha

[...]

§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

 

A desapropriação, revestida pelos pressupostos do interesse social e utilidade pública, reside sob a égide do direito público e traz como objetivo a transferência do bem para o patrimônio do expropriante, sendo, normalmente, o particular indenizado pelo fato e o não pagamento desta indenização configura-se como uma exceção. Tratando-se de matéria de interesse público afetando diretamente o interesse privado, é comum advirem conflitos e, neste caso, o poder judiciário atuará para garantir o direito seja da desapropriação ou pela manutenção da propriedade. Neste contexto, cabe avaliar o que seria a utilidade pública e o interesse social que legitima o Estado a intervir na propriedade privada. O interesse social se configura pelo aspecto da função social da propriedade, assumindo o Poder Público a função de mitigar possíveis desigualdades coletivas. A utilidade pública abrange a necessidade pública de caráter emergencial onde tão somente a desapropriação solucionaria a situação. Ambos os pressupostos revelam conceitos subjetivos e indeterminados cabendo a lei defini-los.

O Decreto Lei n.º 3.365/41 enumera no art. 5º os casos de desapropriação por utilidade pública:

 

Art. 5º - Consideram-se casos de utilidade pública:

 

a) a segurança nacional;

b) a defesa do Estado;

c) o socorro público em caso de calamidade;

d) a salubridade pública;

e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência;

f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica;

g) a assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais;

h) a exploração e a conservação dos serviços públicos;

i) a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; loteamento de terrenos, edificados ou não, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais; (Redação determinada pela Lei 6602, de 7 de dezembro de 1978).

j) o funcionamento dos meios de transporte coletivo;

l) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza;

m) a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens móveis de valor histórico ou artístico;

n) a construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios;

o) a criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves;

p) a reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científico, artística ou literária;

q) os demais casos previstos por leis especiais.

§ 1º - A construção ou ampliação de distritos industriais, de que trata a alínea i do caput deste artigo, inclui o loteamento das áreas necessárias a instalação de indústrias e atividades correlatas, bem como a revenda ou locação dos respectivos lotes a empresas previamente qualificadas. (Acrescentado pela Lei 6602, de 7 de dezembro de 1978).

§ 2º - A efetivação da desapropriação para fins de criação ou ampliação de distritos industriais depende de aprovação, prévia e expressa, pelo Poder Público competente, do respectivo projeto de implantação. (Acrescentado pela Lei 6602, de 7 de dezembro de 1978).

 

Outros diplomas foram publicados com o objetivo de alterar ou criar normas para regular o sistema normativo vigente desde 1941 adequando-o as transformações sociais, a saber: Lei N.º 2.786/56, Decreto Lei N.º 856/69 que acresceu o § 3º ao art. 2º, o Decreto Lei N.º 1.075/70, que tratou da imissão liminar de posse em imóvel urbano, Lei N.º 6.071/74, que adaptou a lei básica ao Código de Processo Civil, a Lei N.º 6.602/78, que lhe acrescentou e exclui textos, a Lei N.º 9.785/99 que alterou a redação, a Medida Provisória N.º 2.183-56/01, que introduziu alteração no DL N.º 3.365/41 e, recentemente, pela Lei N.º 11.977/09 incluindo §§ ao artigo 32. A Lei N.º 4.132/62 define os casos de desapropriação por interesse social:

 

Art. 1º A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal.

 

Art. 2º Considera-se de interesse social:

 

I - o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;

II - a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola, (VETADO);

III - o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola:

IV - a manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habilitação, formando núcleos residenciais de mais de 10 (dez) famílias;

V - a construção de casa populares;

VI - as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte, eletrificação armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente aproveitadas;

VII - a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais.

VIII - a utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características, sejam apropriados ao desenvolvimento de atividades turísticas.

 

§ 1º O disposto no item I deste artigo só se aplicará nos casos de bens retirados de produção ou tratando-se de imóveis rurais cuja produção, por ineficientemente explorados, seja inferior à média da região, atendidas as condições naturais do seu solo e sua situação em relação aos mercados.

 

§ 2º As necessidades de habitação, trabalho e consumo serão apuradas anualmente segundo a conjuntura e condições econômicas locais, cabendo o seu estudo e verificação às autoridades encarregadas de velar pelo bem estar e pelo abastecimento das respectivas populações.

 

Limitamos este estudo a área urbana da cidade e, desta forma, tratará apenas da legislação que se refira à desapropriação urbanística abrangendo a área delimitada pela legislação municipal no Plano Diretor da Cidade, que traça as diretrizes para ocupação do solo, urbanização e ordenamento, possibilitando um crescimento de maneira eficaz e sustentável, tratando de maneira diferenciada as regiões de acordo com suas necessidades específicas. O atual Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, em vigor desde 1992 e com prazo de vigência de 10 anos, é objeto de discussões e um novo Plano tramita na Câmara Municipal. A Constituição Federal trata em seu art. 182, § 4º, III da modalidade de desapropriação denotando a mesma um caráter sancionatório quando determina a adequação do uso sob pena de, não o fazendo, ser desapropriado:

 

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

[...]

§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

[...]

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

 

 

Tal se consolidou na Lei n.° 10.257/01, denominada Estatuto da Cidade, em seu art. 8º, a saber:

 

Art. 8º Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública.

 

Trata, ainda, o ordenamento jurídico de uma modalidade de exceção que consiste em não haver indenização pela desapropriação denominando-se na doutrina de desapropriação confiscatória, definido na Constituição Federal, art. 243. que descrevemos abaixo. e regulamentado pela Lei N.° 8.257/91 que trata da expropriação em áreas de culturas ilegais de plantas psicotrópicas, o que não seria o caso deste estudo por se tratar de propriedade em área rural.

 

Art. 243 - As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

 

De modo sui generis a desapropriação é uma modalidade de aquisição da propriedade, devendo o Poder Público declarar o interesse social ou a utilidade pública que recai sobre o bem. A desapropriação urbana, de competência do Município, se fundamenta nos arts. 30, I e VIII e 182, caput e § 3º da Constituição Federal assim como o art. 5º, I do Decreto-lei n.º 3.365/41. Mesmo diante de todas as regras e normas estabelecidas no Direito brasileiro é comum ocorrerem desvios de finalidade na destinação dos bens e mesmo perda de interesse de determinado bem tombado, o que dá ao Estado o benefício da Reconversão, que torna o bem livre de restrições. A regra é que os bens desapropriados integrem o patrimônio do ente público, adquirindo o status de bem público, podendo, após a transferência, ser desfrutado ou até mesmo repassado a terceiros, no caso de reforma agrária por exemplo. Atendendo a demanda de modernização e revitalização da área portuária da Cidade do Rio de Janeiro, um grande número de imóveis foram desapropriados e outros tombados no sentido de se conservar e preservar a memória cultural da cidade e de garantir o desenvolvimento e utilização adequada da área central que se encontrava em processo de esvaziamento onde foram investidos recursos e infraestrutura dando um caráter de subutilização aos bens e serviços disponíveis na região. A Secretaria Municipal de Habitação concluiu o processo de desapropriação de 499 imóveis e em parceria com a Caixa Econômica Federal (CEF), esses prédios serão reformados e os apartamentos vendidos para famílias com renda mensal de 3 a 6 salários mínimos (de R$ 1.395 a R$ 2.790).

 

4. A reforma urbana: novos contextos.

A reforma urbana ou a adaptação urbanística às novas necessidades sociais não se configura somente ao acesso à moradia, mas também ao acesso à boa qualidade de vida, traduzida pela infraestrutura e equipamentos sociais aplicados a cidade, à segurança e ao meio ambiente harmonizado, como direito de todos os cidadãos. Ao lidar com interesses diversos, a matéria revela polêmicas e atinge a diferentes pessoas sejam físicas ou jurídicas, como exemplo, se verifica na certificação dada à comunidade Quilombola Pedra do Sal, residente no Morro da Conceição, no Bairro da Saúde, que busca o seu reconhecimento para obter em caráter definitivo o certificado de propriedade dos terrenos, feito pelo secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, à época, Darcy Ribeiro, no dia 20 de novembro de 1984:

 

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN realizou o tombamento de cinco bens, os quais são considerados parte da primeira fase da preservação do patrimônio no País, privilegiando a arquitetura colonial, sendo quatro localizados na Saúde e um na Gamboa, tombados em 1938, na época da fundação do IPHAN, sendo o contexto urbano desconsiderado.


Com a finalidade de orientar os planos de renovação em 1992 foi implantado o Plano de Estruturação Urbana da Zona Portuária pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente, com a proposta de ser decretado o tombamento de edifícios históricos, além da criação de áreas para preservação, e reabilitação, incluindo o incentivo ao uso habitacional, reestruturação do sistema viário e uso do solo, estabelecendo-se o potencial cultural, social e econômico da área.

O plano concebido em 1992 tratava a região como um espaço estratégico de desenvolvimento, tinha por meta atrair novos empreendimentos privados (serviços, comércio, lazer cultural, e habitação para classe média), rompendo o caráter de isolamento dos bairros portuários (melhorias nos sistemas de locomoção) e reintegrando a área à paisagem e ao uso da Baía de Guanabara (lazer, esporte e contemplação). Buscava a valorização e preservação do patrimônio arquitetônico e urbano local, criando uma política para o reaproveitamento de imóveis de valor histórico para fins habitacionais, comerciais ou de serviços, instituindo para este fim um órgão gestor para o desenvolvimento da região. Além da legislação constitucional e específica encontramos nas Constituições Estaduais a previsão do tombamento, sendo tanto este quanto a Desapropriação objeto de súmulas e julgados. A intervenção do Estado na propriedade privada visa estabelecer um equilíbrio advindo com a função social que ela deva atender. Atualmente, outras necessidades movem o Estado no sentido de tombar áreas urbanas para impedir que a especulação imobiliária exerça um forte impacto no meio ambiente pela incompatibilidade que será criada entre a demanda e a oferta de serviços públicos disponíveis. Mesmo diante das normas estabelecidas no Direito brasileiro, é comum ocorrerem desvios de finalidade na destinação dos bens e perda de interesse de determinado bem tombado, o que dá ao Estado o benefício da Reconversão, tornando o bem livre de restrições.

 

5. A Revitalização e a Sociedade local

A pesquisa intitulada “Revitaporto” cujo objetivo foi conhecer os interesses, aspirações, expectativas e práticas culturais, junto aos moradores, registra dados que refletem o grau de conhecimento, participação e comprometimento da população no processo de revitalização. A população adulta é a que concentra maior conhecimento sobre o projeto por alguma fonte de informação (gráfico 1).

 

Destaca-se a imprensa escrita como meio de divulgação (gráfico 2). Medidas de divulgação, com vistas a atingir o público jovem, devem ser intensificadas para desenvolver a percepção de pertencimento face ao projeto de revitalização.

 

A recuperação dos armazéns destaca-se como o ponto mais conhecido do projeto, seguido do Museu Guggenheim e a recuperação de prédios. Tal fato fortifica a hipótese de que a população tem percebido alterações em áreas já construídas, ou seja, naquelas onde está sendo realizada a refuncionalização dos espaços construídos (gráfico 3).

 

A idéia da destinação de espaços para arte, cultura e lazer é considerada essencial para o desenvolvimento local, entretanto, se mostraram apreensivos quanto ao aumento no valor dos aluguéis e impostos o que denota a preocupação com o orçamento familiar. Como símbolo da região portuária não houve um destaque o que nos leva a perceber que os moradores não caracterizam a região por uma imagem única, indicando que a população se identifica com o bairro onde vive, destacando-se o próprio Cais do Porto (15%). Como pontos positivos da região, dentre os apresentados, apontaram a “facilidade de transporte” e dentre os pontos citados na consolidação das respostas – Outro (14%) destacamos a “proximidade de tudo” com maior número de citações (gráfico 4).

 

Nos pontos negativos se destacam a ausência de opções de lazer e de atividades culturais (21%) e a violência (20%) e na incidência de resposta – Outro (11%) destaca-se o “comércio fraco” (gráfico 5).

 

Apesar de considerarem a região tranquila para moradia apontam a violência como uma fragilidade. Numa perspectiva para o desenvolvimento urbano sustentável, a médio e longo prazo, o que se percebe é a tentativa de integrar estruturas e interesses diversos. Entretanto, seria fundamental definir um Índice de Desenvolvimento Local Sustentável (IDLS), validado por atores locais e com informações sistematizadas, com vistas a sustentabilidade do projeto, na busca de um modelo ideal para a transformação do espaço construído.

 

Considerações Finais

Os portos são objeto da política ambiental brasileira e suas atividades geram divergências de interesse entre os agentes modeladores do espaço urbano. A participação da sociedade interagindo com o processo retrata uma simbiose onde emergem outros conflitos. Modelos de outras cidades que vêm sendo utilizados como parâmetro não refletem a realidade social e cultural local. Em visita ao Porto Madero se percebe que a suntuosidade das edificações, entre outros aspectos, “elitizou” a região. Quanto a Paris, os aspectos socioculturais e a implementação de soluções que buscam a sustentabilidade do projeto são fatores que não podemos deixar de avaliar, principalmente, no que tange as diferenças socioculturais. A Gestão Territorial como metodologia de trabalho se constitui por um conjunto de ações de planejamento, implantação, acompanhamento e monitoramento para projetos que buscam a requalificação de áreas subutilizadas e propõe soluções em tempo real para as mais diferentes demandas. Os impactos devem ser mensurados de acordo com as evidências e acontecimentos, dando suporte a uma política de monitoramento para que ajustes ocorram quando forem necessários, preservando o investimento efetuado na região e tornando-o atraente e funcional às gerações futuras, possibilitando alterações culturais e comportamentais em prol do bem estar social. A desvalorização imobiliária produziu as condições econômicas favoráveis para justificar o processo como forma de resposta ao mercado e a sociedade. A hipervalorização verificada em 2010 torna a região motivo de disputas, traduzida como “guerra pelo porto”, onde, segundo a imprensa, o valor dos imóveis quadruplicou. O mérito do poder Público residirá nos benefícios sociocultural, econômico e ambiental, que poderá trazer para a cidade integrando um espaço em desuso a um novo contexto socioeconômico e cultural. Embora com inicio marcado pela refuncionalização dos espaços mais do que pela mudança na sua forma propriamente dita, que se traduzem em aspectos fundamentais para a mudança da percepção dos habitantes da cidade, espera-se promover as alterações sociais desejadas. Com grande complexidade, o projeto ainda é objeto de reavaliações, tendo em vista a escolha da Cidade para sediar eventos internacionais (Jogos Mundiais Militares 2011, Conferência WWW 2013, principal evento de internet do mundo, Jogos Mundiais dos Trabalhadores 2013, Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016), o que traz conseqüências diretas ao planejamento inicial, ensejando dúvidas no que tange os verdadeiros interesses e quais necessidades estariam atendendo. Conservar as referências culturais, valorizar os conhecimentos adquiridos e afirmar suas ambições, no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida, são os corolários indispensáveis a qualquer projeto de desenvolvimento de cidades portuárias. Programas e planos dessa natureza só podem ter sucesso se forem apoiados pelos atores que decidem os usos da cidade e que possuem os instrumentos apropriados para a implementação dos planos. Transformar os conflitos em cooperação para construir as soluções socioambientais e econômicas para a complexa realidade dos portos é uma tarefa desafiadora, porém fundamental para os diversos segmentos produtivos que têm operações portuárias como atividade. Espera-se que a melhoria da infraestrutura existente e a requalificação dos espaços públicos aumentem os índices de qualidade de vida dos habitantes da Saúde, Gamboa e do Santo Cristo, permitindo a inserção de novos extratos sociais sem, contudo expulsar a população local. Os galpões tombados e reciclados acrescidos da grande extensão de áreas verdes projetadas ao longo do antigo cais transformarão a área pela implantação de atividades turísticas, alavancando o desenvolvimento econômico da cidade, e permitindo a visibilidade para o mar. A revitalização é polêmica e provoca debates entre a população no que tange aos verdadeiros interesses e quais necessidades estariam atendendo, tendo em vista que parte das propriedades desapropriadas retornarão ao uso residencial após recuperação e adequação através de alienação. O desafio do Poder Público ao priorizar o Projeto é transformar a Zona Portuária num pólo multifuncional com enfoque na cultura, lazer e turismo, com uso de alta tecnologia, criando novas habitações e integrando-o a dinâmica do núcleo central da cidade, estabelecendo propostas e direcionamentos para o desenvolvimento local dos habitantes estabelecidos e daqueles que têm a área como local de trabalho: empresas de navegação, sindicatos, associações, comércio local, escolas, igrejas, hospitais entre outros. O mérito residirá no benefício sociocultural, econômico e ambiental que poderá trazer para a cidade, integrando um espaço em estado de degradação e estagnação a um novo contexto social, dando novas utilidades aos prédios antigos e atendendo as necessidades básicas da região, ampliando as redes de saneamento e infraestruturas, dando suporte às novas construções que se deslumbram, justificando a intervenção direta naquele espaço.

 

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ANEXO


 

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