05/07/2023
Chão Urbano ANO XXIII Nº 1 JANEIRO/ FEVEREIRO DE 2023
Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
Bimestral
Comitê Editorial
Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) Maria
Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF Viviani de
Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ) Luciene
Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ) Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)
Editora Assistente Júnior
Gabriela Hafner e Celine Andrade
IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq
LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS
Coordenador
Mauro Kleiman
Equipe
Gabriela Hafner e Celine Santos de Andrade
Pesquisadores associados
André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Priscila Loretti Tavares.
Análise da problemática do acesso a água e esgoto nas favelas do Rio de Janeiro: o caso das áreas mais precárias das favelas do Jardim Gramacho – Duque de Caxias
Karoline Francisco Barbosa¹
¹Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social / Instituto de Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ
karolinebarbosa@ufrj.br
Mauro Kleiman²
² Prof. Titular / Instituto de Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ
kleiman@ippur.ufrj.br
Trabalho desenvolvido com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq-Brasil – Processo 303894/2021-0
Resumo
O artigo trata da problemática do acesso à água e esgoto nas áreas mais precárias das favelas do Rio de Janeiro, tomando como caso exemplar o conjunto de favelas do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias. Para o exame do caso se toma a infraestrutura por sua dimensão social como objeto sociotécnico e se caracteriza o que seja área mais precária no interior da precariedade já existente em favelas.O exame do caso desvela um quadro de ausência e/ou precariedade de acesso a água e esgoto, e uma quantidade e expansão de mais lugares favelados que o registrado oficialmente, assim como a continuidade de despejo de lixo em local tido como Aterro Sanitário desativado, incluso com a expansão das áreas sete despejo.Se conclui que os moradores das seis favelas desveladas no local estão em situação de marginalidade ao mundo urbano, não pertencendo à cidade legal/oficial vivendo nas áreas mais precárias do local examinado.
Palavras-chave: Áreas mais precárias, Acesso a água e esgoto, Favelas, Jardim Gramacho, Duque de Caxias, Rio de Janeiro
Abstract
The article deals with the problem of access to water and sewage in the most precarious areas of the favelas of Rio de Janeiro, taking as an exemplary case the set of favelas in Jardim Gramacho – Duque de Caxias. For the examination of the case, infrastructure is taken for its social dimension as a socio-technical object and what is the most precarious area within the precariousness that already exists in favelas is characterized. access to water and sewage, and a quantity and expansion of more slum areas than officially registered, as well as the continuity of garbage disposal in a place considered as a deactivated Sanitary Landfill, including the expansion of the seven eviction areas. of the six favelas unveiled at the site are marginalized in the urban world, not belonging to the legal/official city, living in the most precarious areas of the examined location.
Keywords: Most precarious areas, Access to water and sewage, Favelas, Jardim Gramacho, Duque de Caxias
1.Infraestrutura e áreas mais precárias nas favelas em acesso a água e esgoto
Para o exame da problemática do acesso a água e esgoto em favelas do Rio de Janeiro, tomamos primeiro a exposição do escopo conceitual de infraestrutura por sua dimensão social, para além de seu papel restrito à técnica, e em seguida abordamos o que caracteriza a denominação de áreas mais precárias das favelas.
A infraestrutura compreendida como restrita a de um objeto técnico e suas funções econômicas, tomados como elementos estanques, isolados uns dos outros, quando se incorpora variáveis espaciais-temporais-topológicas, cinéticas, e adaptativas; e socioculturais, possibilita transformar seu escopo transpassando sua natureza meramente técnica(obrigatória mas não suficiente), possibilitando a construção de uma outra natureza como objeto sociotécnico que demarca um rompimento de sua configuração compartimentada por uma ideia de nexos e interações entre infraestrutura e território. Seria assim, a infraestrutura objeto integrador da técnica com a dimensão social-cultural e suas implicações na configuração territorial como: 1) processos articulados em redes e interdependentes entre si; 2) propicia relações sociais com seus processos normativos, suas determinações comportamentais e sociabilidades diversas; 3) tem natureza de elemento estruturante como parte da cooperação urbana –base da economia capitalista; e 4) tem natureza multi e interescalar e intersetorial; possibilitando, então, a superação do enfoque restrito à técnica insertando a infraestrutura na sua relação com o território em suas várias escalas e escores socioculturais.
Elementos materiais incorporados ao solo nas redes de infraestrutura são um dos elementos de interfaces fundamentais para potenciar acumulação ao possibilitar e realizar a integração entre unidades produtivas e destas com o consumo, moradia, trabalho, permitindo processos de solidarização entre pessoas, serviços e aparatos urbanos. Configura-se, pois, como elemento estruturador dos vários fluxos do território, e como tal da sua própria produção, organização e redes territoriais: trata-se mais que um instrumento da ordem “técnica” ou isolado da formação socioespacial em que se dá, de um processo de produção do espaço socialmente construído através de sua articulação em redes, imersas e constituinte de relações sociais especificadas por sua distribuição espacial. Tem um papel, portanto mais que “técnico” na estruturação das cidades; é afinal um elemento estruturante para ordenação e desenvolvimento do território, um instrumento sociotécnico, com uma engenharia com função social, pondo em relação física e simbólica o território, solidarizando-o, podendo ser considerando como equipamento social de solidarização urbana. Existe assim sendo um nexo obrigatório com a função das infra estruturas de prestação de serviços, sem o que seriam apenas um fato da engenharia. Não basta, no entanto, ter o suporte físico, mas um fluxo, fluidos ou sinais internos de matéria e distribuir estes fluxos pelo território sob a forma de serviços. As redes de infraestrutura têm assim um princípio: é uma maneira de organização que relaciona possibilidades técnicas com o atendimento de um território compondo um conceito de “redes-serviços”, ou seja, o de uma estrutura com dois movimentos de igual valor e simultâneos: redes organizadas e prestação de serviços que são a materialização das relações das redes de maneira interdependente.
Assim, utilizamos a abordagem que entende o papel da infraestrutura na estruturação das cidades (Graham e Marvin, 2001) invoca sua pertinência como equipamento de solidarização urbana por meio de prestação de serviços (Dupuy, 1985; Amar, 1987), o que permite sua análise vis-a-vis as classes sociais, assinalando-se sua efetividade, com a reflexão sobre a relação entre redes de infraestrutura, território e organização social. (Piolli,1990-91).
A infraestrutura pensada como processos em redes propicia a criação de um território urbano, posto que produzindo a base material da cidade confere-lhe condições de uso e habilidade através do relacionamento da variável técnica (com suas diferentes possibilidades) e o atendimento social, por meio e prestação de serviços urbanos: de água, esgoto, gás, eletricidade...
Quando, contudo, procuramos fazer uma relação este escopo conceitual com o Rio de Janeiro, inicialmente não encontramos uma relação plena no que toca às colocados em ações de por meio de obras de maneira mais sistemática desde 1995(portanto, cem anos sua aparição como fenômeno urbano e lugar de moradia dos mais pobres) não se confirma que nos pontos onde verifica-se sua implantação tenhamos superado o quadro de ausência e/ou precariedade de acesso a serviços básicos. Persistem e se ampliam áreas mais precárias no acesso à água e esgoto nas favelas, numa espécie de maior precariedade no interior da precariedade pré-existente e permanente.
Assim sendo, devemos, então, caracterizar e apresentar um quadro da situação das áreas mais precárias. De modo geral se pode apontar, que são áreas, por comparação com as outras das favelas onde se visualiza sua diferenciação como apresentando posição inferior, em termos de infraestrutura básica; em aspectos sociais e econômicos, e nitidamente com tipologia de moradia e configuração do lugar diferenciados e mais precárias e problemáticas face às demais partes.
Além disto, são áreas com muito menos pontos e diversificação de comércio; em geral de risco ambiental; e apresentam flagrante risco de insegurança dado a presença ostensiva do domínio do tráfico de drogas e/ou milícias, e assim contam com atração ainda muito reduzida para produção imobiliária informal rentista, encontrada em outras partes das favelas. Com foco na infraestrutura básica de água e esgoto, podem ser apontadas como lugares à margem no interior de favelas. Isto conduziria a determinado padrão inferior de suas moradias, e uma tipologia própria de arranjos do espaço interno e nas rotinas de seus habitantes, não mais comuns nas favelas atuais, e sim se reportando àquelas existentes até o final dos anos 1970.
As áreas mais precárias ficam como que “encobertas”, tanto da visibilidade externa à elas, como internamente às próprias outras partes das favelas onde foi se constituindo ao longo do tempo, embora sem ser uma linearidade evolutiva, certas “lâminas” de urbanização com acessos alternativos, ou por meio de diferentes intervenções em diversos momentos de implantações de água e esgoto, e certas alterações na tipologia das moradias consolidando-se casa de alvenaria com certo acesso, não pleno, e irregular de abastecimento de água, e em muito menor escala relativa coleta de esgoto embora este seja lançado, em geral, mais à frente em corpos hídricos.Nas áreas mais precárias o que desvelamos e reconhecemos, e é percebido por seus moradores, ao contrário, se trata de persistente marca da ausência de acesso a água e esgoto e a continuidade das moradias improvisadas.
Então, quando não se tem, ou se tem precariamente, água e esgoto se tratou, por um lado, de reconhecer diferenças de acesso a serviços de infraestrutura básica, e socioespaciais internas(intra favela, e não apenas inter favelas), indicando como a manutenção da ausência e/ou precariedade de água e esgoto induz determinada tipologia de moradia muito frágil e com elementos que quase não mais se encontra nas demais áreas(como casas improvisadas com pedaços já usados de madeira, chapas de compensados, alumínio, entre outros; casas de taipa e outras) e os tipos de arranjos internos e objetos para higiene e alimentação seriam ainda praticamente um pequeno abrigo de cômodo único, ou se dividido por lençóis, móveis..., e as rotinas dos moradores face à esta situação ainda se mantém num entrar e sair de casa constante várias vezes ao dia para se prover de água e descartar esgoto.
Assim, nosso entendimento é que cada favela não é homogênea, nem entendido como um lugar “único”. Cada favela e área mais precária estudada entendemos que é um plural que engloba grandes disparidades, seja de qualidade de moradia, qualidade de vida e urbana, seja na forma diferenciada que as partes em si se conectam com a cidade e com os equipamentos urbanos.
Assim, colocadas as premissas sobre infraestrutura e áreas mais precárias em favelas do Rio de Janeiro passamos à análise de caso que bem exemplifica a problemática.
2.Estudo de caso das áreas mais precárias das favelas do Jardim Gramacho – Duque de Caxias (RJ), face ao acesso a água e esgoto
O cerne do estudo de caso é o problema de acesso a água e esgoto nas áreas mais precárias analisando as favelas localizadas no bairro Gramacho, ao entorno do antigo aterro sanitário de Jardim Gramacho em Duque de Caxias (RJ), desativado oficialmente , mas que continua como área de depósito de resíduos sólidos de forma irregular e clandestina.
O estudo do caso tratou sobre condições de moradia e rotinas de vida dos moradores face ao quadro de ausência e/ou precariedade de acesso a água e esgoto. Como metodologia para o estudo de caso, foi realizada pesquisa bibliográfica sobre a área escolhida, bem como trabalho de campo com observação técnica e entrevista a moradores. Se buscava examinar a existência, em qual grau, de um quadro de ausência dos serviços de saneamento, decorrendo em descarte de resíduos sólidos e esgoto nas áreas de mangue, e utilização e compartilhamento de formas alternativas para obtenção de água.
O local abrigou o maior aterro sanitário da América Latina, que funcionou até 2012 e era a principal fonte de sobrevivência dos moradores. Atualmente, 10 anos após o fechamento do aterro, a situação de miséria e insalubridade se mantém, e aterros ilegais recebem lixo todos os dias.
A área foi escolhida por sua localização em município localizado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, mas muito próximo ao núcleo da metrópole, sendo que a partir da implantação da via expressa Linha Vermelha pode ser alcançado mais rapidamente através do modal automotivo.
Não obstante, a sua localização próxima a via expressa, ser local de lançamento de resíduos sólidos, primeiro oficialmente, a área permanecia “invisível” ao conhecimento científico, ao estado e ao município, e seu quadro tanto de sua composição de seus lugares era tido como uma única favela. O estudo de caso, assim sendo, buscou desvelar o que estava encoberto, com os resultados que expomos abaixo.
O lugar ao ser examinado revelou-se composto de várias favelas ao invés de seu reconhecimento oficial como um local de única favela, e ao revés de uma homogeneidade urbanística, tipologia de moradias iguais e situação de acesso a água e esgoto apresenta diferentes aspectos.
Na realidade, as várias favelas do lugar Jardim Gramacho não recebem assistência do poder público para realização de obras de infraestrutura, não havendo esgoto, coleta de lixo e acesso a água. O estudo se dedicou então a trazer ao conhecimento a realidade encoberta e se dedicou a identificar as diferentes favelas existentes no local,seu quadro de acesso a água e esgoto, entender melhor a rotina e condições de vida de seus moradores dos moradores, utilizando imagens georreferenciadas para entender a não “percebida” quantidade e expansão das favelas e dos aterros sanitários ilegais do lugar.
Para tal, se procurou primeiro quantas favelas, de fato, existiam no local, identificar as áreas mais precárias em acesso a água e esgoto no interior das favelas no Jardim Gramacho; coletar dados acerca do acesso ao saneamento básico através da percepção dos moradores por meio de entrevistas; coletar dados sobre a condição das residências e a rotina dos moradores, considerando a proximidade com o aterro sanitário; e analisar se o quadro da situação de total ausência e/ou precariedade de serviços básicos permanece, e em qual grau nas várias favelas e seus limites de fato existentes no local e se espraiando nas favelas e crescimento.
A metodologia do estudo contou com dados quantitativos, utilizando fontes como IBGE, MPRJ e demais órgãos públicos e de pesquisa, a fim de realizar um levantamento bibliográfico sobre o local. Em seguida, teve corte qualitativo, a partir de trabalho de campo, onde foram realizadas visitas exploratórias, entrevistas com os moradores e observação do interior das moradias para entender as condições de saneamento e habitação, bem como observação e análise posterior do espaço a partir de imagens aéreas, utilizando a ferramenta Google Earth. Assim realizamos um conjunto de visitas ao local com o intuito de: a) verificar o desenho urbanístico (se há ruas claramente demarcadas ou se são becos e vielas, se há praças, campinhos de futebol, e alguma área ou edificação de encontro comunitário); b) aplicar um questionário inicial para as pessoas já contactadas sobre a infraestrutura, e dados como renda familiar e escolaridade.
Conforme o Censo Demográfico de 2010, elaborado pelo IBGE, em Duque de Caxias há 99 setores censitários em aglomerados subnormais, das quais 4 comunidades, sendo elas: Comunidade Rui Barbosa, Comunidade da Chatuba, Comunidade Remanso e Comunidade Maruim,estão localizadas no bairro Gramacho e estão no entorno do antigo aterro sanitário de Jardim Gramacho.
Figura 1 – Bairros e distritos de Duque de Caxias
Fontes: IBGE, 2010; SMPHU/DC, 2015.
Figura 2 – Comunidades no entorno do antigo aterro sanitário de Jardim Gramacho
Fonte: MPRJ, 2022.
De acordo com dados disponibilizados no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2018), o percentual de habitantes atendidos por rede de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro é 91,3%. Já em Duque de Caxias, 84,5% dos habitantes são atendidos por rede de água, enquanto no município do Rio de Janeiro, o percentual é de 97,4%. Cabe destacar que esses números são informados diretamente pelas concessionárias, e não são consideradas a qualidade da água nem a regularidade no abastecimento.
Ao analisar dados dispostos no sistema in Loco, do MPRJ, com base no Censo do IBGE (2010), pode-se constatar que:
Figura 3– Abastecimento de água (rede geral): Classificação dos setores censitários mediante percentual de moradores abastecidos por rede geral de água
Fonte: MPRJ, 2022.
Quanto ao tratamento de esgoto, segundo o INEA (2018), existem 437 estações de tratamento de esgoto na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, porém, 134 estão inoperantes. Ou seja, 1/3 dos equipamentos que deveriam tratar os dejetos produzidos pelos 22 municípios que compõem a Região Metropolitana estão desativados. Conforme noticiado em matéria do G1 (2020), especialistas afirmam que somente a Baía de Guanabara recebe o equivalente a mais de 23 mil caminhões de esgoto in natura por dia, e do total de caminhões gerados por dia (28.900), apenas 5 mil são tratados e são destinados corretamente para a baía.
Em série histórica disposta pela Fundação CEPERJ, que utiliza dados do INEA e IBGE, em 2018, apenas 1,1% dos habitantes de Duque de Caxias têm o esgoto tratado e coletado. No município do Rio de Janeiro, o percentual é de 63,5%. Dentre todos os municípios que cercam a baía de Guanabara, apenas Niterói tem mais de 90% de seu esgoto tratado (97,7%).
Além disso, acerca das comunidades localizadas no entorno do antigo aterro sanitário de Jardim Gramacho, novamente com o auxílio do sistema in Loco, do MPRJ, que dispõe dados com base no Censo do IBGE (2010), nota-se que:
Figura 4 – Acesso ao esgotamento sanitário: Classificação dos setores censitários mediante percentual de moradores com acesso a esgotamento sanitário
Fonte: MPRJ, 2022.
Ademais, a organização TETO, que atua em 19 países da América Latina e busca superar a pobreza em que vivem milhões de pessoas nas comunidades precárias, entre os meses de julho e setembro de 2013, realizou enquetes em um grupo específico das comunidades de Jardim Gramacho, conhecidas informalmente pela população local como: Chatuba, Quatro Rodas, Parque Planetário, Esqueleto, Remanso, Aquipapá, Juriti, Retão e Valão. Ao todo, foram feitas 204 enquetes, respondidas pelo chefe ou representante das famílias, e que abrangeu um total de 652 pessoas, com o intuito de fazer uma caracterização das comunidades, e entender as condições de habitação e moradia.
Dentre as 204 famílias, 74,8% não possuem acesso a água, 25,2% obtêm água encanada de forma irregular, e nenhuma família obtém água de forma regular.Apenas 5% das casas estão conectadas a uma rede de esgoto, e devido à ausência de saneamento básico, 21,5% dos moradores alegam entrar esgoto em suas casas nas épocas de chuva, quando ocorrem os alagamentos.
Entretanto, durante visita realizada nas comunidades do Jardim Gramacho em abril de 2022, a partir do relato dos moradores, 6 (seis) comunidades foram identificadas, sendo elas:
Ao conversar com uma moradora da comunidade Quatro Rodas, esta relatou que a maioria das pessoas na comunidade habitam em barracos de dois cômodos e sem banheiros. Em relação a alagamentos, ela disse que a ONG Teto ajudou construindo novos barracos para a população, acima do nível do chão, conforme demonstram as figuras a seguir, e por isso, quando chove, não entra mais água nas casas.
Figura 5 – Barracos na comunidade Quatro Rodas
Fonte: foto de Karoline Barbosa
Figura 6 – Estrutura de um dos barracos, garantindo que não haja contato com o solo
Fonte: foto de Karoline Barbosa
Além disso, foi indagado sobre o descarte resíduos sólidos, visto que não há esgotamento sanitário, muito menos coleta de lixo, e no geral, as necessidades fisiológicas são colocadas em sacolas e jogadas no mangue, assim como todo o lixo.
Figura 7 – Descarte irregular de lixo na comunidade Quatro Rodas
Fonte: foto de Karoline Barbosa
Sobre o acesso à água, na comunidade Quatro Rodas, algumas pessoas possuem bombas e conseguem obter água com encanações irregulares, e compartilham com os demais vizinhos. A água fica armazenada em grandes galões, e banhos e lavagem de roupas e louças são feitas nos mesmos locais. Foi identificado também um banheiro entre os barracos, de uso compartilhado.
Figura 8 – Cômodo improvisado para tomar banho e lavar louças e roupas.Fonte:foto de Karoline Barbosa
Em relação à rotina dos moradores, a maioria cata lixo, seja para consumo próprio (inclusive de alimentos), ou como ocupação, vendendo os materiais recicláveis encontrados, como papel, plásticos, metais e afins. Embora o aterro sanitário esteja desativado desde 2012, e atualmente é uma área controlada, diversos aterros irregulares existem e se expandem ao entorno do local.
Figura 9 – Vista aérea das áreas utilizadas ilegalmente para descarte de lixo
Fonte: Google Earth, 2020.
3. Conclusão
As comunidades no entorno do aterro sanitário desativado do Jardim Gramacho estão em um quadro de precariedade/ausência de acesso a saneamento, em que há carência de serviços públicos e de infraestrutura. Como relatado, o esgoto é despejado a céu aberto, nas proximidades do mangue, e não há abastecimento de água, muito menos coleta regular do lixo – ao revés, a área do Jardim Gramacho tem um lixão clandestino.
Percebe-se que a expansão dessas favelas é acompanhada por diversos problemas de saneamento, e não há políticas públicas para gerar soluções que de fato melhorem as condições de vida dos moradores, fato que reforça a invisibilidade dessa população, que não possui outra alternativa para habitação.
Esta observação conclusiva do estudo demonstra que a questão do acesso a água e esgoto nas cidades brasileiras tem sido estudada notoriamente através de um enfoque macroeconômico, e das macropolíticas de saneamento, mas se esta é uma consideração necessária, impõe-se sua conjugação à reflexão que fazemos com o lugar vivido, o micro-local, onde concretamente a existência ou não dos serviços básicos aparecem como condição que possibilita relação com o espaço citadino.
Tendo em vista que na área analisada encontram-se comunidades de renda baixa, com baixa escolaridade; alto nível de desemprego; violência; e ausência e/ou precariedade de articulação à rede/serviços de água e esgoto, a análise envolveu aportes de diferentes campos disciplinares que se aproximam e intercruzam-se dado a importância da infraestrutura para as condições de vida e sociabilidade. Ao incorporar a abordagem que entende o papel da infraestrutura na estruturação das cidades (Graham e Marvin, 2001), e invoca sua pertinência como equipamento de solidarização urbana por meio de prestação de serviços (Dupuy, 1985; Amar, 1987), e através o que permite sua análise vis-a-vis as classes sociais se pode apontar que no caso estudado, exemplar para a maioria das favelas do Rio de janeiro, se pode assinalar que a não existência de infraestrutura básica de abastecimento de água e coleta de esgoto a coloca como marginal à cidade oficial/legal. Tomamos, então um enfoque micro-localizado sobre as micro-situações e suas micro-rotinas (Juan, 1995; Remy, 1981; Maffesoli, 1993) resgatando-se a pesquisa de campo nos espaços vividos (sociologia de observação); visitando os lugares, travando contato com a comunidade, observando seus hábitos e resgatando sua percepção sobre suas condições (Bourdieu,1990; Becker,1993; De Certeau,1990); entrevistando (LeFebvre, 1972) como maneira essencial de conhecer e compreender as condições de habitabilidade e suas consequências na sua vida cotidiana.
Observamos que os dados oficiais não correspondem à realidade. Embora os dados apresentem grande percentual de domicílios com abastecimento regular de água, constatamos em mais de uma visita que as diferentes localidades do Jardim Gramacho apresentavam falta de água, em situações em que os próprios moradores tentavam solucionar o problema com ações alternativas. Já com relação ao esgotamento sanitário dos domicílios também não conferem com as situações encontradas in loco, pois encontramos situação diversa com a maior parte das áreas das favelas ainda com esgoto à céu aberto, seja junto à passagem de pedestres em frente as casas, o que dificultava o acesso dos moradores, seja volume de esgoto corrente sob construções foram erguidas em cima de valas,etc.
A observação da situação micro-escalar do caso do Jardim Gramacho desvelou um quadro de ausência ou má articulação com redes de serviços de água e esgoto. Este quadro está encoberto pelos dados macro-escalares. Para este lugar com suas áreas mais precárias encontramos uma situação dramática, com uma “não-implantação”, um “não-provimento” ou um atendimento precário que deixa seus moradores como uma legião de “sem-serviços” e/ou “mal-servidos”.
Os esforços da pesquisa ao se direcionar para conhecer e analisar as áreas mais precárias no acesso a água e esgoto nas favelas do Jardim Gramacho desvelam a existência e realidade desta áreas, encobertas pela “invisibilidade” construída sobre sua existência e quadro real de não acesso a água e esgoto.
Com sua revelação, identificação de seu lugar, seu território, suas moradias são mais propriamente um abrigo que um verdadeiro lar, pois ao não se articular com serviços básicos de água e esgoto são apenas um teto, que não se pode definir como articuladas a lugares urbanizados.
Os moradores das áreas mais precárias, como o caso estudado não se inserem na cidade oficial, pois não guardam relação à aderência, e em que grau, às normas, regulamentos, regras, tributação tarifária inerentes para acesso aos serviços, assumindo uma marginalização entre os já mal inseridos nas outras áreas das favelas.
Como levantamos e examinamos na pesquisa, não se percebe a possibilidade para os moradores das áreas mais precárias examinadas no estudo de sua articulação com redes e serviços básicos de água e esgoto, criando-se uma negação para seus moradores de inserção no mundo urbano.
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