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Chão Urbano

CHÃO URBANO ANO XXII N°06 DE NOVEMBRO/ DEZEMBRO DE 2022

17/04/2023

Integra:

CHÃO URBANO - ANO XXII - Nº 06 NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2022


Editor

Mauro Kleiman

Publicação On-line

Bimestral

Comitê Editorial

Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) Maria

Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF Viviani de

Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ) Luciene

Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ) Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editora Assistente Júnior

Gabriela Hafner e Celine Santos de Andrade

IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador

Mauro Kleiman

Equipe

Gabriela Hafner e Celine Santos de Andrade

Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Priscila Loretti Tavares.

 

 

 

Cidade, Infraestrutura e alterações no território

Mauro Kleiman ¹

¹Prof. Titular da UFRJ

RESUMO

O texto, em forma de ensaio, examina, através de dois casos, Paris e Rio de Janeiro, como a implantação e consolidação de infraestruturas de habitabilidade- água, esgoto, gás, iluminação elétrica, e as de circulação pelas modalidades do modal ferroviário e automotivo conduziram a importantes alterações no território destas cidades, “desmanchando” estruturas urbanísticas pré-existentes e construindo uma nova configuração, um novo lugar.

Palavras-chave: Alterações,Cidade, Infraestrutura, Território

Abstract

The paper, in the form of an essay, examines, through two cases, Paris and Rio de Janeiro, how the implantation and consolidation of habitability infrastructures - water, sewage, gas, electric lighting, and those of circulation by the modalities of the railway modal and automotive industry led to important changes in the territory of these cities, “dismantling” pre-existing urban structures and building a new configuration, a new place.

Keywords: Changes, City, Infrastructure, Territory

 

1- A cidade e as mudanças nos lugares

Pensando em como introduzir uma reflexão no interior de tema tão vasto e complexo sou levado a um recorte temporal que traga determinada intervenção na cidade que denote um marco de rompimento com algum momento anterior que defina uma era "moderna" onde as modificações através das infra estruturas e tipologias urbanísticas se colocaram.

Claro que desde que se começa a ter cidades no mundo artefatos artísticos podem ser compreendidos como elementos de arte. Assim, desde os primeiros aparatos urbanos na Mesopotâmia, passando pelas cidades greco-romanas, todos aqueles elementos edilícios e de infraestrutura(notadamente nas cidades romanas e em todas elas no vasto mundo do Império Romano se replicaram) podem ser pensados como intervenções modificadoras no espaço tornado urbano. E de fato tudo que conseguiu nos chegar até os dias de hoje ainda que parcialmente ou em ruínas se preserva, ou se tenta preservar como Patrimônio Cultural da Humanidade. O título aponta para sua importância como artefatos arquitetônicos que demarcam uma intervenção que denota a cidade como possuidora de elementos que poderíamos classificar como artísticos.

Mas na impossibilidade, e no que o intuito do artigo quer assinalar, ao invés de recuar tanto no tempo e recontar toda esta trajetória de arte na cidade sendo estes aparatos urbanos entendidos como a própria arte como cidade, nos situarmos, primeiro no momento da Reforma Haussmann em Paris, em meados do Século XIX, e em seguida trataremos do Rio de Janeiro.

No momento da reforma Haussmann em Paris ressaltam-se vários aspectos, dos quais destacamos os seguintes: a) a criação de redes de infraestrutura de coleta de esgoto e abastecimento de água são contidas em na calha das ruas e no subterrâneo delas, o que propicia em simultâneo sua acepção como serviço coletivo, assim como libera o espaço para a circulação e passeio dos indivíduos; b) a estrutura urbanística em “estrela”- de cada ponto determinado na cidade de Paris saem largas avenidas, criando uma cidade perspéctica; c) a pontuação da cidade por monumentos; d) a ideia e implantação de trazer a natureza para o urbano, mas aquela de forma organizada ladeando as largas avenidas por árvores- os bulevares, complementada de maneira essencial por parques públicos, um em cada ponta da cidade, o que resulta na criação da disciplina do paisagismo.

A criação de infraestruturas implica em trazer para a cidade elementos materiais incorporados ao solo as redes de infraestrutura são um dos elementos de interfaces  fundamentais para potenciar acumulação ao possibilitar e realizar a integração entre unidades produtivas e destas com o consumo, moradia, trabalho, permitindo processos de solidarização entre pessoas, serviços, aparatos urbanos.

Implicou , assim, sendo, no caso de Paris, que depois vai se replicar em todas as cidades do mundo , na transformação de hábitos e comportamentos sociais , e conduz a uma intimização da vida: ao propiciar água no interior das casas o antigo e consolidado habitus de sair de casa para buscar o líquido se desmancha e como isto a sociabilidade que propiciava ao que era comum de juntar vizinhos e amizades para sair da morada para buscar o líquido se desfaz.

Configura-se, pois, a infraestrutura como elemento estruturador dos vários fluxos do território, e como tal da sua própria produção, organização e redes territoriais: trata-se mais que um instrumento da ordem “técnica” ou isolado da formação sócio-espacial em que se dá, de um processo de produção do espaço socialmente construído através de sua articulação em redes, imersas e constituinte de relações sociais especificadas por sua distribuição espacial. Tem um papel, portanto mais que “técnico” na estruturação das cidades; é afinal um elemento estruturante para ordenação e desenvolvimento do território, um instrumento sócio-técnico, com uma engenharia com função social, pondo em relação física e simbólica o território, solidarizando-o, podendo ser considerando como equipamento social de solidarização urbana. Existe assim sendo um nexo obrigatório com a função das infra estruturas de prestação de serviços, sem o que se trataria apenas de um fato da engenharia. Não basta, no entanto, para a infraestrutura, ter o suporte físico mas um fluxo, fluidos ou sinais internos de matéria e distribuir estes fluxos pelo território sob a forma de serviços. As redes de infraestrutura tem assim um princípio: é uma maneira de organização que relaciona possibilidades técnicas com o atendimento de um território compondo um conceito de “redes-serviços”, ou seja, o de uma estrutura com dois movimentos de igual valor e simultâneos: redes organizadas e prestação de serviços que são a materialização das relações das redes de maneira interdependente.

Isto propiciou nas cidades, primeiro em Paris, a construção de um parque imobiliário com unidades residenciais com todos os confortos das infraestruturas: água encanada, coleta de esgoto, gás, iluminação elétrica residencial e pública( final do século XIX), o que configurou um formidável conjunto de prédios, sem separação entre eles, mas com pátios internos.

Mas a reforma urbana haussmaniana, cujo lema vale a pena relembrar-“Reformar a cidade para reformar a vida” o que significava que ao modificar completamente a tipologia urbanística desmontando a estrutura herdada do modo de produção feudal- eivada por ruas estreitas, sinuosas,becos, vielas, casa sobre as pontes que cruzavam o rio Sena...através de a partir de cada ponto estabelecido em várias partes da cidade abrir largas avenidas que desmancham a cidade feudal e inauguram um aparato urbano perspéctico, instala nos pontos de encontro das avenidas-urbanismo em “estrela”, monumentos “embelezadores” demarcadores de uma nova realidade de monumentalidade, que se estende por ornar as pontes de onde foram retiradas as casas( de pobres que então e desde o feudalismo) o que passa a ser o centro equipado com infraestruturas de serviços, higienizado, mas embelezado por obras de arte monumentais, marcos de um novo território.

O caminho de mudanças se completará com as modificações nas infraestruturas de circulação. A constituição das estradas de ferro com seus comboios de trens irão contribuir para o espraiamento da cidade para além de seus limites originais, e entregarão em forma de rede Paris com outras cidades da França e capitais europeias. No início do século XX se concebe o trem subterrâneo das cidades- o metrô, e o trem urbano a circular nos seus centros e na ligação com os bairros- o tramway. No final do século XIX, em contraponto a estas modalidades do modal ferroviário, se tem a concepção do veículo a motor a explosão- o automóvel, base para o modal automotivo.

Estes dois modais de circulação modificam em profundidade o território, transformando a paisagem até então baseada em pontos numa paisagem de linhas que articulam os diferentes pontos por diversas ramificações, em velocidades distintas, mas que só tem desde o momento quando se implantam até os dias de hoje se acelerado com a compressão da relação espaço-tempo. Pelo modal ferroviário e suas modalidades se deslocam grandes massas de indivíduos, e pelo automotivo se tem uma miríade de movimentos atomizados.

Paris como exemplo deste texto, mas todas as demais cidades do mundo serão transformadas em territórios reticulados, de movimentos cada vez mais intensos, justapostos, cruzados, articulando os diferentes elementos do território numa paisagem de interações.

2- Rio de Janeiro: território de modificações pelas infraestruturas

O Rio de Janeiro, com sua estrutura urbanística organizada como porto de saída do ouro e prata das Minas Gerais, suas ruas estreitas para canalizar o vento e sombrear os caminhos banhados por um clima muito quente, com suas extraordinárias obras de arquitetura religiosa nas suas igrejas barrocas, seu Paço Imperial e sua autêntica praça lateral, com o marcante Aqueduto da Lapa,conjunto contido entre os morros do Castelo, de São Bento, Santo Antônio e da Conceição, a partir do século XIX, terá pouco a pouco sua desmontagem posta em andamento na sua configuração como lugar e na sua estratificação sócio-espacial.

Centrando nos movimentos de implantação de infraestruturas por meio de concessões a empresas estrangeiras( inglesas, canadenses, francesas...)a cidade verá a coleta de esgoto e seu tratamento mecanizado instalado onde se tinha a certeza da demanda solvável( Centro, Glória, entre outros)ou seja onde existia camada de renda mais alta para pagar a tarifa do serviço. Contraditoriamente à natureza da concepção em redes articuladas, este primeiro serviço de infraestrutura se colocou em partes separadas entre si. Terceira cidade do mundo a ter coleta e tratamento de esgoto(1865), irá se seguir a instalação de abastecimento de água(1890) .

Restrita ao que hoje corresponde ao Centro e região Portuária, a partir da abertura, operação e ampliação do número de viagens da estrada de ferro D.Pedro II (1868)os trens abrirão o caminho para a extensão da cidade para sua periferia imediata- seus subúrbios, e periferias mais distantes com a ocupação de áreas da Baixada Fluminense,no caminho da direção para São Paulo pelo Vale do Paraíba  depois complementado pela Estrada de ferro Leopoldina que na direção de Minas Gerais atendia e ainda atende a outros subúrbios. Esta modalidade tem uma configuração de linhas, não formando uma rede stricto-sensu.

A modalidade trem será acompanhada da introdução do tramway( no Rio denominado “bonde”) que irá constituir esta sim uma verdadeira rede de deslocamentos com uma das maiores malhas no mundo deste tipo de modalidade ferroviária, promovendo ligações do Centro com áreas ao Sul, Norte e Oeste, com uma estação de transbordo( nó) no Largo da Carioca. Se podia ir da zona Sul para a Norte via transbordo na Carioca, e existiam ligações intermodalidades trem-bonde em várias estações de trens suburbanas (como, por exemplo da de Madureira se saía do trem e se pegava o bonde para bairros de Jacarepaguá).

Os caminhos em linhas do trem e a rede em malha do bonde configuram um território que ao mesmo tempo se expande e se consolida como paisagem reticulada em deslocamentos entre pontos por diversas ramificações.

Os bondes já no início do século XX serão eletrificados, enquanto os trens o serão a partir de 1934. Os bondes serão operados por concessão a Light and Power (que inicialmente também terá sob sua gestão a provisão de gás depois repassada a Société Anonyme du Gaz), assim como a iluminação pública e residencial.

Então aos já implantados serviços de coleta de esgoto( no sistema inglês de sua concessionária como “separador absoluto” com uma canalização para águas pluviais e outra para coleta de esgoto) e abastecimento de água, junto aos serviços de gás e iluminação pública das vias e residencial, combinado com as possibilidades de deslocamentos por modalidades do modal ferroviário, modifica completamente o território antes formatado para um lugar pantanal sem serviços, parte dos quais suprido pelo trabalho escravo, num território de movimentos e interações, ainda que no contexto das velocidades disponíveis então ao modal e modalidades ferroviárias.

Mas um outro tipo de possibilidade de deslocamento irá se colocar, induzindo a transformações ainda mais importantes no território do Rio de Janeiro: o automóvel.

O veículo, inovação da engenharia criada no final do século XIX na Europa, chega ao Brasil, através de importações nas primeiras décadas do século, e começa ser montado aqui na metade da década de 1920 com a instalação da Ford e General Motors em São Paulo com todas as partes vindas do exterior. Esta primeira leva de veículos nas ruas- automóveis e ônibus, embora seu pequeno número já traz modificações pois sendo a flexibilidade de rotas sua característica já os leva a percorrer novas ramificações no interior dos bairros e subúrbios onde não chega os veículos do modal ferroviário que se deslocam em vias fixas.

A partir de 1955 com a instalação de outras montadoras no país e a reconversão das já aqui instaladas à ideia de substituição de importações passando todas as peças necessárias à montagem dos veículos paulatinamente serem fabricadas aqui até atingirem a meta estabelecida de 100% dos veículos serem nacionais, se tem um vertiginoso crescimento da frota de carros e ônibus que exigirão não apenas a readequação das vias existentes, por onde circulavam os bondes, como mais ainda a criação de uma nova rede viária capaz de fazer circular sem obstáculos e com mais velocidade as modalidades do modal automotivo.

Isto conduziu a abertura da Av. Presidente Vargas, e em seguida a túneis urbanos extensos transversais à larga avenida citada que liga o centro à zona Norte- túneis Santa Bárbara e Rebouças que possibilitam a ligação das Zonas Sul e Norte às saídas do Rio sem passar pelo Centro histórico (antes caminho obrigatório). Também serão construídas vias elevadas- Elevado da Perimetral e da Paulo de Frontin- que serão partes, seções, da importante rede de articulação com área ao leste da cidade propiciada pela construção da Ponte Rio-Niterói. Assinale-se, igualmente a introdução no Rio da ideia de avenidas na forma de Park-Way, que dá origem a obra de arte paisagística excepcional de autoria de Burle Marx no Aterro do Flamengo, e em forma de calçadões formando extraordinárias composições geométricas quando da duplicação da av. Atlântica.

Esta nova rede viária, que extingue a rede de bondes para ser implantada ( de forma totalmente equivocada pois a malha de tramways do Rio cumpria plenamente a propriedade de articular os elementos do território) coloca no território do Rio de Janeiro uma configuração de uma paisagem de diferentes linhas com diversas e mais aceleradas velocidades para deslocamentos através de uma miríade de veículos automotores particulares e coletivos sob a forma de ônibus e lotações, e embora estas formas de movimentos dificultem a mobilidade das grandes massas transformam o território.

 

Referências bibliográficas

ABREU, Maurício de (1988). Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores-IPLANRIO

AMAR, George (1987). Concept de réseaux, Concept dês Systèmes. In: Métamorphoses de  La Ville. Paris: Economica.

DUPUY, Gabriel.(1985) Systèmes. Réseaux et territoires. Paris: Press d’Ecole Nationale des Pontes et Chaussées.

PRELORENZO, Claude( 0rg.) (2000). Infrastructures, Villes et Territoires. Paris: Harmattan.

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