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Chão Urbano

CHÃO URBANO ANO XXII Nº2 MARÇO/ABRIL DE 2022

20/06/2022

Integra:

  

Chão Urbano ANO XXII Nº 2 MARÇO/ABRIL DE 2022

 

 Editor

Mauro Kleiman

 Publicação On-line

 Bimestral

Comitê Editorial

 Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ) Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ) Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editora Assistente Júnior

Gabriela Hafner e Karoline Francisco

 IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

 Coordenador

Mauro Kleiman

Equipe

 Gabriela Hafner e Karoline Francisco

Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Priscila Loretti Tavares.

 

TEXTO

 

Ocupação Marielle Franco: Florianópolis-SC para quem?

 

Vera Lucia Nehls Dias[1]

Eduardo Schimdt Longo[2]

Rodrigo Sartori Bogo[3]

Caroline Bernardo Silva[4]

Eliézer Conceição[5]

 

Resumo

A partir de um breve levantamento de garantias jurídico-sociais, e do acompanhamento e observação de um movimento social em Florianópolis – SC, a presente pesquisa possui como finalidade demonstrar como a desigualdade socioespacial e o problema da moradia e habitação são resultados da ação e omissão política, pois, ainda que havendo garantias legais diversas e estando o objeto territorial de pesquisa-observada geolocalizado em local destinado à Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), o Estado incorreu em erro, deixando em desamparo os sujeitos ocupados naquelas terras. Nesta lógica, paira a busca de compreensão de como a cidade de Florianópolis se comporta a partir da perspectiva observada do movimento social “Ocupação Marielle Franco”, e a imagem de uma “capital boa para se morar”. Afinal, boa para quem?

 

Palavras-chave: Movimentos sociais; Ocupações urbanas; Cidade informal; Ocupação Marielle Franco; Florianópolis-SC.

 

Marielle Franco occupation: Florianópolis/SC for whom?

Abstract

From a brief survey of legal and social guarantees, monitoring and observation of a social novement in Florianópolis (state of Santa Catarina, Brazil), this research aims to demonstrate how spatial inequality and the problem of housing are results of political action and omission, therefore, even though there are several legal guarantees and the territorial object of the research observed being located in a place destined to a“Special Zone of Social Interest” (ZEIS), there is an evident error committed by the State, leaving the subjects occupied in those lands helpless. In this logic, we apply a discussion for understanding how the city of Florianópolis behaves from the social movement “Ocupação Marielle Franco” perspective, in contrast with the image of a “good capital to live in”. After all, good for whom?

 

Keywords: Social movements; Urban occupations; Informal city; Marielle Franco Occupation; Florianópolis-SC.

 

Introdução

 

            O problema da habitação e moradia nas cidades brasileiras é pauta contínua da realidade de muitas famílias que resistem e persistem em suas localidades, amparadas por direitos fundamentais, previstos em lei.

            Todavia, nota-se que não basta a letra fria da lei para assegurar tais garantias. Políticas públicas e planejamento realmente executados são imprescindíveis neste processo por uma tentativa de diminuir as desigualdades espaciais e territoriais (SOUZA, 2006). Trava-se ainda um conflito entre a realidade social e as epistemologias jurídico-políticas quanto ao paradigma de uma legislação positivo-dogmática, muito marcada pela tradição de uma proteção - e sobreposição (in)direta - do Direito e conservação à propriedade privada sobre o Direito à posse, colocando em evidência o caráter permissivo do próprio Estado quanto ao desrespeito à Função Social da Propriedade e a descaracterização (ou desresponsabilização do mesmo Estado) quanto aos Direitos Fundamentais humanos quando conflitantes com o Direito à Propriedade Privada de outros sujeitos (teor explicitamente lógico-formal e liberal-burguês). 

            Florianópolis, a “Ilha da magia” no estado de Santa Catarina, se destaca midiaticamente em um cenário nacional e até mesmo internacional como “um dos melhores lugares do país para se morar”. Todavia, quem pode nela morar? Quem tem direitos garantidos na prática? A quem interessa uma “seleção” de privilégios em relação aos cidadãos e a terra?

            Para a devida reflexão e elaboração desta pesquisa foram utilizadas referências jurídicas conhecidas por amparar o Direito à Moradia e Habitação, o uso de bibliografias da literatura científica e matérias jornalísticas que se debruçam sobre a temática destes direitos. Como recorte proposto se analisa o assentamento informal da Transcaieira, localizada na região do Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis - SC. Nesta localidade há a chamada Ocupação Marielle Franco, movimento social sem teto que homenageia a falecida ativista social carioca, assassinada no Rio de Janeiro, e que deixou como marca de vida a sua resiliência e coragem de lutar por equidade social.

            Movimentos sociais são coletivos que acabam por transportar representações simbólicas em sua trajetória, e conforme autores como Gohn (2010) e Touraine (2003), muitas dessas ações desenvolvem um caráter identitário, geralmente sendo muito evidente seu(s) opositor(es), além de articular ou se fundamentarem em projetos de vida e de sociedade (CANELLA, 2011). Ainda, um conjunto de planos organizacionais (ALVITO, 2003) se tornam objetos verificáveis nestes movimentos sociais, o que demonstra ao pesquisador a necessidade, a partir destas premissas, de identificar as especificidades que cada coletivo desenvolve, em decorrência do espaço urbano e em relação às suas  espacialidades.           

            Compreender as nuances dessa comunidade, que já “nasce” duplamente vitimada pelos interesses mercadológicos presentes na cidade, remete ao entendimento de que o espaço urbano é condição, meio e produto das relações sociais e seus atores – direta e indiretamente (LEFEBVRE, 2006; 2011). Quanto ao duplo efeito que o mercado (aqui remete-se ao imobiliário, em específico) gera à estes movimentos sem teto em Florianópolis, o primeiro é identificado por interesses da especulação imobiliária e dos ativos agentes como causadores do afastamento e das complicações desses cidadãos (sem rendimentos e privilégios financeiros) frente ao acesso à terras legítimas e minimamente oportunas, distanciando-os do mais básico dos direitos fundamentais. Como exemplo, há um distanciamento de possibilidade de morar/viver em locais de amenidades que tenham acesso à mercadinhos, farmácias, mercearias, e até mesmo postos de saúde, creches e escolas fundamentais, caracterizando uma ausência relativa do Estado (MARICATO, 2015). O segundo efeito é posterior ao primeiro, mas dentro de uma perspectiva retilínea ambos se complementam dialeticamente, quando após se assentar em um determinado recorte geográfico, compreendido como passível de moradia por se tratar de uma propriedade ausente de função social, os indivíduos que compõem o movimento se tornam alvos de diversos stakeholders (partes interessadas de um determinado negócio) do mercado-Estado que passam a ter interesse em negociar e tornar aquele lugar uma nova mercadoria.

            De forma intensa, movimentando e sendo movimentada pelos agentes de transformações do espaço urbano (CORRÊA, 1995), tornam-se as ocupações o lócus de luta daqueles que metaforicamente “não tem para onde correr”, aguardando que o Estado cumpra com os diversos instrumentos que garantiriam o direito à cidade (sob uma perspectiva jurídica) e à habitação que tanto os distanciam da sensação de humanidade.

            A figura 1 possibilita visualizar a localização geográfica da Ocupação e Movimento Social Marielle Franco, em uma área central de Florianópolis – SC, e muito próxima a lotes e terrenos de forte “mercadorização”.

 

Figura 1 -  Mapa de localização da Ocupação Marielle Franco, na chamada Transcaieira, em Florianópolis - SC.

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

            Ocorre que, além de ter que sentir por vezes a ausência de Estado no tocante à prática e segurança de suas garantias de moradia, há em determinadas conjunturas um momento contraditório de “ativismo” deste mesmo Estado, porém com ações anti-movimentos sociais, conforme o relato a seguir

 

Contra ela se movem o poder público, a polícia, a imprensa, o empresariado. Na sexta-feira passada (22), os moradores da Ocupação Marielle Franco, no Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis, experimentaram mais uma vez no corpo a brutalidade reservada aos que cansaram de ter a vida diariamente usurpada e organizam a luta. Moradias arduamente construídas foram destruídas em meio a jatos de gás de pimenta e balas de borracha. Mas a luta não foi ao chão. Na noite daquela sexta, mulheres e homens marcharam Transcaieira abaixo e pararam na frente da Prefeitura, conseguindo uma reunião na Superintendência de Habitação e Saneamento e agendando outra para a sexta-feira (29). (Portal Desacato, 2018)

 

            Para Gohn (2010) esses movimentos sociais são vistos como uma espécie de ações sociais coletivas, possuindo um caráter político e cultural que possibilita diversas formas da população de se auto-organizar, expressando suas demandas. Já segundo Pedon (2013), as mobilizações coletivas são ações amplas que vêm no intuito de agrupar pessoas para a organização de ações que respondam às demandas em comum. Essas mobilizações podem ter diversas características e, de acordo com suas peculiaridades, podem se caracterizar em movimentos sócio-espaciais, sócio-territoriais, popular, entre outros. Nessa esteira estariam muitos dos movimentos de sem tetos urbanos, compondo relações sócio-espaciais ou sócio-territoriais, onde a relação que aquele grupo tiver com o local criará a “identificação” como um movimento X ou Y - ainda que não defina ou generalize as especificidades de cada coletivo.

            Os movimentos sócio-espaciais, em geral, possuem demandas populares e se organizam a partir de um recorte espacial, entretanto não se faz imprescindível a existência de uma dimensão espacial específica ou fixa para a experiência política desta participação. Como exemplo, cita-se os próprios assentamentos informais urbanos (ocupações), movimentos que muitas das vezes podem ter que se deslocar espacialmente de um local para outro - por motivos diversos - mas por isso não perdem seu viés e característica de movimento sócio-espacial (GOHN, 2010).

            Diferentemente são os movimentos “fixos” e dependentes  de um lugar como lócus de sua luta. Estes são chamados de movimentos socioterritoriais (PEDON, 2013). Suas demandas possuem estreita relação com a conquista do território (ou soberania sobre a localidade), vide a defesa de povos indígenas e comunidades tradicionais, como exemplos mais usuais. Portanto, a busca pela identidade está diretamente ligada ao espaço em que se relacionam as demandas desses grupos, podendo tais espaços serem elementos constitutivos de identidade, assim como elementos de manutenção da sua luta, que em conjunto configuram suas específicas práticas espaciais (SOUZA, 2013).

            O Movimento Marielle Franco indica características de movimento socioterritorial, por suas atuais relações com aquele espaço, onde seus atores criaram determinado laço com o lugar, e fixados àquele buscam perante o poder público mostrar sua legitimidade de estarem de direito ali. Entretanto, como uma espécie de nota observatória, nada impede que o mesmo movimento se caracterize em determinado momento e contexto histórico como um movimento sócio-espacial, migrando-se para outro locus de luta, uma vez que numa espécie de prioridade, resta a manutenção ao seu direito à vida e integridade física frente aos excessos que por vezes outros agentes e opositores de interesse aplicam aos sujeitos menos privilegiados.

 

A crise habitacional em Florianópolis e as Políticas Públicas

 

            A sociedade florianopolitana, em sua formação político-econômica, acabou se constituindo como uma cidade turística, proporcionando a maximização da “mercadorização” de seu território por via de criação de estigmas da paisagem. Para isso, a cidade deveria ser “perfeita” aos olhos dos investidores ou clientes. Contudo, estas escolhas refletiram em uma política que até hoje atinge as classes mais baixas.

            Para as classes dominantes e oligarquias locais, construir uma cidade turística com demasiada ênfase nas paisagens conduziu o processo de transformação e valoração da terra em um dos principais capitais financeiros locais, o capital imobiliário. Tal escolha correspondeu a um projeto de classe, e este projeto turístico e classista, não diferente de outras cidades (mas com suas especificidades), possui como uma de suas contrapartidas a necessidade de tornar invisível a pobreza (CANELLA, 2011).

            No tocante as pessoas que vivem nestes assentamentos, e que passam por esse processo de invisibilização social, elas não conseguem ter acesso ao mercado imobiliário, baliza fundamental da cidade formal (MARICATO, 20), e precisam apenas se alojar para viver, consolidando uma expressiva população em ocupações. Florianópolis é uma cidade que não é exceção, famílias em áreas de riscos ou habitações precárias demonstram um dado relativamente expressivo quanto à camuflagem criada por via de um imaginário social de que a então “ilha da magia” não tivesse problemas urbanos normalmente associados às grandes cidades brasileiras.

            Quanto ao histórico de políticas públicas e habitação da capital catarinense, os próprios programas estatais como os impulsionados pelo Banco Nacional de Habitação e o Minha Casa Minha Vida seguiram com uma ideia mercantil do solo urbano (SUGAI, 2016). Denota-se que quanto maior a imagem representada de progresso da cidade, maior o distanciamento entre os direitos fundamentais de uma parcela da população mais carente e a realidade.

            Quanto ao acesso à habitação, por exemplo, a Secretaria Municipal de Infraestrutura do município de Florianópolis (PMF) possui o chamado Plano Local de Habitação de Interesse Social - PLHIS. De acordo com o site da própria PMF:

 

[...] é um Plano Participativo que deve agregar diversos agentes sociais relacionados ao setor habitacional: setores público e privado, técnicos, associativos e acadêmicos e demais associações e agentes sociais. O PLHIS deve estabelecer princípios, objetivos e metas a serem aplicadas a partir do diagnóstico da questão habitacional, prioritariamente de interesse social do município, complementado por diagnósticos setoriais e da análise da conjuntura (nacional e estadual), em consonância com as diretrizes estabelecidas no Plano Nacional de Habitação e nos planos diretores. (PMF, s/d, não paginado)

 

            O Plano é uma exigência da Lei Nº 11.124, de 16 de junho de 2005(Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS), que cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Conforme preconiza a lei, o plano deverá conter “diagnóstico do setor habitacional, diretrizes, objetivos, linhas programáticas, fontes de recursos, metas e indicadores” (BRASIL, 2005, não paginado), que expressem o entendimento dos governos locais e dos agentes sociais, a respeito do planejamento local do setor habitacional e definam um plano de ação para enfrentar seus principais problemas, especialmente no que se refere à habitação de interesse social.

            O PMHIS de Florianópolis se fundamenta a partir dos seguintes princípios: da função social da cidade e propriedade; da moradia digna e adequada às demandas específicas; da sustentabilidade; da defesa da dignidade da pessoa humana; da gestão democrática e participativa da política habitacional; da compatibilidade e integração com demais esferas de governo; da provisão habitacional (PMF, 2018).

            Ademais, o princípio da moradia digna é um direito universal e fator de inclusão social firmado no Tratado dos Direitos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas, ratificado pelo Brasil em 1992 e incluído na Constituição Federal (CF) em 2000. Portanto, compreende-se como habitação aquela que se localiza em terra urbanizada, com acesso a todos os serviços públicos essenciais por parte da população e que deve estar abrangida por programas de geração de emprego e renda, e pela garantia ao morador da segurança na posse, devendo ser protegida e efetivada por meio de políticas específicas.

            Contudo, apesar da existência de alguns instrumentos e políticas públicas regionais, além dos de escala internacional pactuadas pela federação, Florianópolis é fonte de imagens como as fornecidas pelo fotógrafo e geógrafo Leonardo Bandeira, obtidas em novembro de 2018 no maciço (ou complexo) do Morro da Cruz, mais precisamente na Ocupação Marielle Franco, na Transcaieira.

 

Figura 2 -  Ocupação Marielle Franco em Florianópolis - SC.

 

Fonte: Leonardo Martins Bandeira (2018).

 

O Movimento Social “Ocupação Marielle Franco” e o Plano Diretor de Florianópolis

 

            A lei complementar 482 de 2014, na alcunha de Plano Diretor Participativo (PDP) de Florianópolis, passou por anos de imbróglios jurídicos até que, momentaneamente, fosse estabelecido um parecer norteador que fixasse sua estabilidade para utilização do poder público.O controle de uso e ocupação do solo pode se tornar um instrumento importante no direcionamento do crescimento das cidades, porém, é salutar (para não dizer, imprescindível) que esteja intimamente ligado às políticas públicas de habitação, além de outros preceitos.

            Todavia, na realidade ocorre um controle destes usos segundo interesses de um grupo seleto de interessados, que influencia - por diversas maneiras - a forma de atender seus desejos. Infelizmente, há diversos destes agentes vinculados politicamente ao poder público, seja direta ou indiretamente, colocando seus interesses à frente inclusive da legitimidade de determinadas leis. Logo, concordando com a conceituação estabelecida por Corrêa (1995), a estruturação e apropriação do espaço urbano está associada à articulação entre agentes produtores desse espaço, aqui no caso, representados por proprietários fundiários, empreendedores, construtores, agentes imobiliários, grupos sociais excluídos e o Estado. 

            A cidade então se expande atrelada aos interesses que a permeiam e à configuração que se estabelece, sendo que essa dinâmica e suas consequentes relações e espacializações fazem parte da lógica de produção e reprodução do espaço, de acordo com os interesses do sistema produtivo. Logo, o espaço é um instrumento de produção e reprodução do sistema capitalista, que favorece a segmentação sócio-espacial no interior da cidade, propiciando consequentemente sua fragmentação, além de criar e recriar áreas melhor servidas com infraestrutura em contraposição às áreas precárias, que acabam por implicar na qualidade de vida da população (PEREIRA, 2011).

            Pedon (2013) se baliza pelo conceito de movimento social como um tipo de mobilização coletiva de caráter resistente, organizando-se e projetando ações amplamente críticas aos fundamentos (ou omissão destes) na sociedade a qual está inserida. Ou seja, em geral as raízes encontradas no que fundamenta o surgimento de movimentos está inserida nos questionamentos em relação aos processos de acumulação da riqueza e concentração do poder (interpretados como injustiças sociais), e manifestados na forma do seu território - muito em razão dos benefícios e privilégios que uns possuem por via da relação íntima com o poder público.       

            Para uma parte dos geógrafos brasileiros, o método do materialismo histórico-dialético colaborou na fundamentação da historicidade do espaço, demonstrando ser impossível pensar o espaço sem pensar no sujeito dessa historicidade - o espaço, assim como sua carga histórica, é produto do sujeito (PEDON, 2013). Assim, as relações de poder e dominação entre classes sociais resultam na produção de territórios e, por conta da lógica capitalista, a maior parte da população acaba excluída da riqueza produzida, entrando também nesta conta a distribuição e o acesso às terras (teto) como efeito excludente. Portanto, cenários de exclusão social como estes fomentam o desenvolvimento orgânico de novas práticas e alternativas sociais, em busca de uma melhor distribuição de riqueza e igualdade social.

            É a partir destas lutas urbanas e políticas que surgiu, em determinado momento da história e resistência dos movimentos, a demanda pela criação e depois pela efetivação de instrumentos como os Zoneamentos de Interesse Social (ZEIS), juntamente dos Planos Diretores Participativos, sendo estes determinados pela lei 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001).

            Como discutido por Souza (2006), ainda que esta lei possa ser considerada uma derrota estratégica para o Fórum Nacional da Reforma Urbana em comparação com o que foi apresentado originalmente para o congresso - tendo sido desidratada pelo bloco que compõe o famoso “centrão”, de acordo com o autor - as ZEIS foram vistas como um de seus principais potenciais para avanço. De acordo com Rolnik (2006), a finalidade desse instrumento é, principalmente, incluir no zoneamento municipal uma categoria que permita, mediante um plano específico de urbanização, constituir padrões urbanísticos mais flexíveis para a possibilidade de assentar determinados grupos sociais.

            Logo, estes zoneamentos especiais podem – e deveriam - ser praticados dentro de zonas urbanas diversas, sabendo-se que podem ser aplicadas tanto em áreas públicas como em particulares, desde que ocupadas por população de baixa renda ou passíveis de urbanização (respeitadas especificidades legais), onde deverá haver o interesse do poder público. Dentro desta lógica de possibilidade, o Plano Diretor de Florianópolis (Lei Complementar N. 482, de 17 de janeiro de 2014) estabelece em sua seção (I) “Das Zonas Especiais de Interesse Social”, que as ZEIS são as parcelas urbanas, delimitadas por zoneamento, destinadas para moradia da população de interesse social e sujeitas às regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do solo, nas quais predominem as seguintes condições

 

I - famílias com renda igual ou inferior a três salários mínimos;

II - uso residencial;    

III - existência de habitações rústicas e/ou improvisadas, com baixa qualidade dos materiais;       

IV - existência de moradias com adensamento habitacional excessivo e pela coabitação não voluntária;   

V - ocupações irregulares caracterizadas por loteamentos clandestinos e áreas de invasões; e

VI – inexistência ou precariedade de infraestrutura urbana e comunitária. (PMF, 2014, não paginado, negrito nosso).

 

            Ainda, de acordo com o art. 214 deste mesmo documento, as ZEIS serão classificadas da seguinte forma:

 

I - ZEIS 1 - os assentamentos consolidáveis ocupados espontaneamente por população de baixa renda em áreas públicas ou privadas onde não há restrição legal ou técnica à ocupação, destinadas, prioritariamente a ações de regularização fundiária;

II - ZEIS 2 - os assentamentos consolidáveis ocupados espontaneamente por população de baixa renda em áreas públicas ou privadas onde há restrição legal ou técnica à ocupação, podendo ser destinadas a ações de regularização fundiária; e  

III - ZEIS 3 - os empreendimentos habitacionais de interesse social construídos de forma regular.

Parágrafo único. As ocupações localizadas na ZEIS 2 estarão sujeitas a remanejamento ou reassentamento, dependendo do caso e a critério do órgão responsável pela política habitacional de interesse social do Município. (PMF, 2014, não paginado, negrito nosso).

 

            A partir desta explanação, observa-se o fato de que a Ocupação Marielle Franco está situada sobre uma área classificada em três tipos de zoneamento do PDP 482/14, onde uma delas é definitivamente uma ZEIS, conforme o mapa a seguir (Figura 3).

 

Figura 3 -  Polígono de localização da Ocupação Marielle Franco, desenvolvido a partir do reconhecimento da área sobre o zoneamento do PDP 482/14.

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

            Portanto,  o assentamento informal delimitado possui famílias ocupando três tipos de zoneamento: a) ZEIS 2 (conforme já mencionado); b) Área de Preservação com Uso Limitado de Encosta (APL-E) - áreas onde predominam as declividades entre 30% e 46,6%, bem como as áreas situadas acima da cota de 100 metros que já não estejam abrangidas pelas Áreas de Preservação Permanente (APP); e c) Área Comunitária Institucional (ACI) - são aquelas destinadas a todos os equipamentos comunitários ou aos usos institucionais, necessários à garantia do funcionamento satisfatório dos demais usos urbanos e ao bem-estar da população.

            Não menos importante de se mencionar é o fato de que, historicamente, imputa-se que a região do Maciço do Morro da Cruz, onde se localiza a ocupação (além de diversas outras localidades, inclusive surgidas de movimentos sociais) tendia por maior proteção e probabilidade de desenvolvimento por via da Lei Complementar Nº 207, de 20 de dezembro de 2005, conforme observado nos seguintes trechos:

 

Art. 1º Ficam incluídas nas Áreas Especiais previstas nos arts. 25 da Lei nº 2.193 de 1985 e 25 da Lei Complementar nº 001 de 1997 as Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS).    

§ 1º As ZEIS são áreas ocupadas por assentamentos habitacionais populares onde se aplicam normas específicas para regularização fundiária, urbanização e edificação, as quais se superpõem às normas gerais do Plano Diretor.

 [...] art. 3º Nas ZEIS do Morro da Cruz, o Poder Executivo fica autorizado a promover projetos de regularização fundiária e urbanística e de edificações, nos termos da legislação específica de cada ZEIS. (PMF, 2005, não paginado)

 

            Estas diretrizes eram legitimadas pelo antigo plano diretor, e foram postas em insegurança jurídico-política quanto a sua aplicabilidade após o surgimento (e imbróglios) do atual PDP. Ou seja, há décadas que o Maciço do Morro da Cruz tornou-se um ambiente de repercussões, entre o cuidado daqueles que sentem e compreendem a fragilidade da temática e os descasos dos interessados em outros fins à(s) área(s).        

            Em tese, as zonas atualmente demarcadas como ZEIS-2 possuem maior grau de subjetividade quanto sua real utilização frente à política de regularização fundiária pró assentados (se comparadas com as outras modalidades de ZEIS), todavia são definitivamente definidas como áreas reservadas à aplicação de interesse social. Já as ACI’s possuem maior restrição, uma vez que se destinam aos equipamentos urbanos e dificilmente estas áreas se transformam em zonas de habitação coletiva, por várias especificidades geográficas e contextuais.        

            As APL-Es, por sua vez, são uma espécie de áreas mais restritivas, com finalidade de proteção ao meio ambiente, e que ainda que possuam determinada flexibilidade edificante, acabam na prática se tornando complexas do ponto de vista jurídico quanto à regularização fundiária nos moldes de um coletivo como o dos movimentos sociais - com caráter urbano de maior probabilidade de expansão da mancha urbana no futuro, e por isso carecendo de maior cuidado também quanto à possibilidade de política social e definição do local de incentivo e garantia dos direitos.

            Logo, as ZEIS-2 seriam, dentro do cenário proposto no atual PDP, a melhor alternativa como proposição política-administrativa ao poder público de realização de um programa de habitação e regularização fundiária que garantiria os direitos fundamentais básicos às famílias da ocupação Marielle Franco na Transcaieira.

            No ano de 2018 a ocupação tornou-se exemplo de resistência para outros movimentos sociais de sem tetos da Grande Florianópolis que passam por situações idênticas, mas também acabam vítimas do acaso, da desinformação, e de uma repercussão negativa na mídia local que pouco informa sobre as adversidades e complexidades de um tema tão sensível. Na contramão da desinformação ou falta de relatos quanto à luta real desse(s) movimento(s),há movimentos de mídias alternativas que garantem um mínimo de representação fidedigna quanto ao(s) caso(s) e impulsionam os episódios de cada momento da história da ocupação. Exemplo disso é novamente um relato do Portal Desacato, cobrindo fatos marginalizados por grande parte da mídia local:

 

No domingo passado (24), a Ocupação Marielle Franco foi o ponto de encontro de mais de 100 pessoas. Entre elas, moradores do Assentamento Comuna Amarildo de Souza, em Águas Mornas, e de outras três ocupações. Eram elas a Fabiano de Cristo, no bairro Monte Cristo, a Contestado, em São José, e a Nova Esperança, no Brejaru, em Palhoça. Neste 2º Encontro das Ocupações e Grupos de Apoio, estavam também professores universitários, pesquisadores, sindicalistas e parlamentares. Ao longo de três horas, os moradores trocaram experiências e falaram da luta de cada ocupação para ter o direito à moradia. [...] Como dizem as faixas nas ocupações, enquanto morar for privilégio, ocupar será direito. (PORTAL DESACATO, 2018).

 

Outros Instrumentos Fundamentais e Norteadores Jurídicos

 

            O artigo 6º da CF/1988 trata dos direitos sociais, balizando que todos os brasileiros possuem também o direito à moradia, ou seja, em teoria, a partir da entrada em vigor desta emenda à carta-magna o Estado brasileiro estaria obrigado a “(...) traçar, conceber, implementar e executar políticas públicas que tornem a moradia um direito mínimo de cada brasileiro” (INÁCIO, 2002, p. 41), dado que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988, Artº 6).

            Ademais, de acordo com o artigo 182 da CF/1988, combinado com o Estatuto da Cidade e pela Lei Federal 11.124/05, o princípio da função social da cidade e propriedade deve ser compreendido como um direito à terra urbanizada digna, ou seja, acesso à uma moradia com saneamento ambiental, infraestrutura e serviços públicos diversos, boa mobilidade urbana e acessibilidade, entre outros.

            A função social da cidade (e da propriedade) se cumpre quando há justiça quanto à distribuição das riquezas pelo Estado, sempre buscando dirimir as desigualdades socioeconômicas e ambientais, assegurando habitação digna aos cidadãos (independente de classe social) e a recuperação e proteção dos ecossistemas ameaçados, garantido a todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mas o que se questiona é: para quem funcionam estes preceitos legais em Florianópolis?      

            Em seu histórico, a capital catarinense foi objeto de uma ação governamental colocada em prática durante a ditadura civil-militar onde grupos e indivíduos privilegiados por suas posições e relação com o governo viviam de rapina das terras públicas catarinenses. Em pesquisa e livro com anexo de documentos oficiais à época, Schinke (2017) arremata uma das raízes oligárquicas que refletem até hoje na má distribuição de terras em Florianópolis, ao chamar a atenção para

 

[...] o número gigantesco e desproporcional de concessões de terras (77% das concessões), ocorridas entre 1966 e 1975, em regiões próximas do litoral do estado, principalmente na Ilha de Santa Catarina. [...] o litoral catarinense e particularmente a Ilha de Santa Catarina, sofreram um grande processo de “acumulação primitiva” tendo a terra se convertido em capital e passado das mãos de agricultores e pescadores, para especuladores e “empreendedores” imobiliários (SCHINKE, 2017, p. 12).

 

            Portanto, a partir do conhecimento da formação sócio-espacial brasileira, e dos diversos modos de expropriação das terras em razão de grupos políticos e econômicos privilegiados, mecanismos jurídicos como zoneamentos de interesse social e a política de regularização fundiária se fazem imprescindíveis para tentar equalizar progressivamente o mínimo de garantias às minorias sociais, e reorganizar de forma justa o espaço urbano frente ao histórico de grilagens e corrupções fundiárias “baronescas”.

            A regularização fundiária é um processo de intervenção pública – podendo servir também como reparação histórica, em determinados contextos - ampliada por fundamentos jurídicos, de aspectos físicos e sociais, e que objetiva legalizar e legitimar a fixação de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária (ALFONSIN, 1997).

            O direito à moradia e o direito à cidade – tanto em sentido estrito, legal, como latu, seguindo as considerações de Lefebvre (2011) - são os fundamentos que legitimam a busca por uma política pública urbana que dê prioridade à urbanização e legalização dos assentamentos informais, legalizando finalmente as populações moradoras daquelas áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei. Estas, passam a integrar o espaço urbano de forma legal-legítima, resgatando a cidadania (MARICATO, 2015).

            Logo, são reais os instrumentos de políticas públicas que podem trazer alternativas aos problemas habitacionais do processo de urbanização. Dentre eles, destacam-se ainda a usucapião especial urbana. A usucapião se define como uma “forma originária e declaratória de aquisição da propriedade e de outros direitos reais por meio da posse ininterrupta e sem oposição, com animus domini (intenção de possuir a coisa como se dono fosse), durante determinado lapso temporal fixado - de forma expressa – em lei, observado ainda outros requisitos legais” (BRASIL, 2001, não paginado).

            Ademais, de acordo com o artigo 10 do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) a usucapião coletiva possui como requisito a ocupação por 5 (cinco) anos, ininterruptos e sem oposição, de áreas urbanas com mais de 250² por população de baixa renda com o fim de constituir moradia (com a ressalva de que os possuidores não sejam proprietários de qualquer outro imóvel) como nos outros casos de usucapião. Ainda, a Lei n° 12.424/2011 acrescentou o art. 1240-A ao Código Civil, abrindo e legitimando mais a margem de utilização do instrumento.         

            De forma harmoniosa quanto ao entendimento dessas prospecções, logo se percebe a necessidade de que haja uma efetiva comunicação entre as diversas políticas e campos de atuação, contemplando cada vez mais e de forma eficiente uma sociedade mais justa, e consciente de que determinadas políticas públicas não se concebem de maneira isolada. A regularização fundiária, logo, deve atrelar dois conceitos básicos: a legalização, para garantir a segurança jurídica da posse, assegurando a função social da propriedade, e a urbanização, a partir de uma reforma urbana estrutural que garanta o direito fundamental a uma moradia digna (BACELETE, 2009, p. 82) - principalmente por intermédio das ZEIS, conforme discutido na pesquisa.

 

Considerações finais

 

            Quando o ser humano se encontra em situação de desigualdade social e econômica, em geral essa é uma realidade construída sobre o acaso de uma relação de acontecimentos e fatos temporais, uma realidade histórico-espacial marcada por grandes “extravios da sorte alheia”, mas principalmente, graças a dominações e expropriações dos mais poderosos ao menos favorecidos de poder. As carências sociais não são, genericamente e de forma simplista, fruto da falta de trabalho/esforço daqueles desprovidos de bens e propriedades, mas sim, resultados históricos da concentração progressiva de propriedades nas mãos de cada vez mais uma parcela reduzida de homens privilegiados (e/ou famílias, partindo do pressuposto de um capitalismo cada vez mais hereditário). Essas relações de dominação e poder se manifestam no espaço-tempo e compõem, por consequência, os territórios, então vetores da ocorrência do fenômeno da territorialidade (SOUZA, 2013).

            Segundo Reclus (1905, apud ANDRADE, 1985) a natureza se manifesta de forma (in)consciente através dos diversos códigos diários vividos e complexamente existenciais, sobre metáforas, a partir da própria linguagem humana, diante da arte ou da ciência. Ainda, para o geógrafo anarquista, “o homem é a natureza tomando consciência de si mesma” (ANDRADE, 1985, p. 38  [Reclus, Le homme et la Terre, 1905]). Portanto, quando o ser humano se vislumbra em um caos social onde não há possibilidade de viver (habitar) o espaço urbano à ele fadado, num modelo já concebido e com valores supra-determinados dentro de uma lógica sócio-espacial e econômica imposta, resta à ele buscar refúgio onde lhe convém ser mais “natural”. Entretanto, o fator determinante que construirá o juízo de valor deste morador informal do que se torna “natural” é variado, desde posições/escolhas por sentimentos humanos como medo ou conformidade social, quanto ao vácuo/repuxo por movimentos sociais de empoderamento dos direitos. Neste momento, é possível verificar de maneira reflexiva um possível retorno do ser humano à sua natureza primeira, recorrendo ao abrigo em áreas à margem da urbanização de concreto e aço - exclusivo em geral aos que possuem maior poder aquisitivo - e passando a viver em meio a Mata Atlântica, ou colocando-se aos riscos da natureza, subindo os morros e abraçando o verde sereno da terra. 

            Quanto ao material, do ponto de vista social-geográfico (se assim podemos conceber), não se traduz como lógico que num país como o Brasil existam tantas pessoas sem onde se abrigar, e isto serve também como reflexão à capital do estado que mais privilegia o status quo de seus abastados, e se autorreconhece como “lugar bom para morar”, em uma paradoxal incongruência quanto à propriedade privada e a função social da terra (e propriedade).

            Esta perspectiva não é fechada apenas aos geógrafos e sociólogos urbanos, mas também aos operadores do Direito que buscam um olhar social a partir de um pluralismo jurídico. Há para tantos um entendimento de que seria paradoxal (e inconcebível) que em um dos países de maior extensão territorial do mundo possua como um de seus principais problemas os conflitos coletivos de natureza fundiária, causadores de choques violentos entre a minoria latifundiária, proprietária de grandes parcelas em desuso no território nacional, e uma grande massa constituída por milhões de despossuídos, necessitados e pobres não-proprietários (WOLKMER, 2001).

            Por isto tudo observado, compreende-se que soluções habitacionais demandam terra urbanizada para sua concretização. Todavia e infelizmente, reservar terra para produção de habitação de interesse social não é uma tarefa simples onde há um mercado imobiliário excludente, e políticas públicas urbanísticas que intensificam este caráter. Portanto, definir a quantidade e a localização de terra urbanizada necessária para a produção habitacional é um aspecto estratégico para o equacionamento das necessidades habitacionais locais (CIDADES, 2009, p.137).

            A segregação urbana é então uma manifestação espacial das desigualdades sociais existentes em nosso mundo, onde quanto maior esta desigualdade social, maior será a intensidade da segregação socioespacial, respectivamente. Esta, por ser de natureza estrutural, não será extinta das cidades que se alimentam de um sistema capitalista, pois resultam de um processo histórico de disputas socioespaciais (SUGAI, 2016).

            Desta forma, a Ocupação Marielle Franco se mostra como um produto dessa relação social e espacialmente desigual na cidade de Florianópolis, que expõe, principalmente, sua vocação como terra historicamente mal distribuída socialmente. E, também, orquestrada dentro de uma lógica onde quanto mais amenidades para uma determinada elite da sociedade, menores as chances desta cidade possibilitar a fixação de camadas menos favorecidas economicamente.

            Assim, de acordo com o título midiático de que seria a capital dos catarinenses boa para se morar, fica a dedução final de que para alguns sujeitos sociais então o “bom para se morar” significaria um lugar onde “poucos podem morar”?

 

Referências

 

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[1] Doutora em Geografia Social pela Université du Maine. Professora titular de Geografia na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Área de estudos: Geografia Humana; Planejamento Urbano; Políticas Públicas; Ensino e Educação.

[2] Doutorando em Planejamento territorial (PPGPLAN/UDESC). Área de estudos: Planejamento Territorial; Tecnologias da Informação e Comunicação; Geografia Urbana.

[3] Doutorando em Geografia (PPGEO/UNESP-FCT). Área de estudos: Planejamento e gestão urbanos; Geografia urbana; Políticas públicas; Ensino de geografia.

[4] Doutoranda em Engenharia e Gestão do Conhecimento (PPGEGC/UFSC). Área de estudos: Engenharia do Conhecimento; Gestão Territorial.

[5] Mestre em Gestão Territorial (PPGTG/UFSC). Área de estudos: Cadastro multifinalitário; Geoprocessamento; Análise espacial.

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