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Chão Urbano

Chão Urbano ANO XXI Nº 3 MAIO/JUNHO DE 2021

28/05/2021

Integra:

Chão Urbano ANO XXI Nº 3 MAIO/JUNHO DE 2021


Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
 Bimestral
Comitê Editorial
Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)


Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ) Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ) Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editora Assistente Júnior

      Julia Paresque e Gabriela Hafner 
 IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador
Mauro Kleiman
Equipe
Julia Paresque e Gabriela Hafner 
Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares.


ÍNDICE


 

   NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO E A PROBLEMÁTICA DO ACESSO A INFRAESTRUTURA DE ÁGUA E ESGOTO FACE A POLÍTICAS DE URBANIZAÇÃO COM CONSTRANGIMENTOS À EQUIDADE SOCIAL

 

 

 

 

TEXTO 


   NOVAS REFLEXÕES SOBRE AS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO E A PROBLEMÁTICA DO ACESSO A INFRAESTRUTURA DE ÁGUA E ESGOTO FACE A POLÍTICAS DE URBANIZAÇÃO COM CONSTRANGIMENTOS À EQUIDADE SOCIAL

    Mauro Kleiman*

*Professor Titular da UFRJ/ Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-Brasil ao Projeto de Pesquisa nº 301979/2017-0

Resumo

   Obras de infraestrutura tem sido realizadas em Favelas, instigando a reflexão crítica sobre sua efetividade e impactos na questão da equidade social. A comunicação apresenta resultados da pesquisa “Análise da efetividade social da implantação de redes de água e esgoto em Favelas”, tomando casos do Rio de Janeiro. As Favelas do Rio de Janeiro vem sofrendo fortes alterações nestas duas décadas já percorridas no Século XXI: se multiplicam pela cidade no seu âmbito urbano e metropolitano e nas suas frajas periféricas mais recentes; se expandem tanto horizontalmente como verticalmente nos seus novos lugares , como naquele já consolidados no núcleo da metrópole; apresentam graves problemas de insegurança e violência por ações de grupos criminosos de várias categorias. O texto coloca em discussão as intervenções para implantação de rede de água para áreas com tipologias de moradia e urbanísticas diversas da cidade formal, onde seus resultados implicam em limites e problemas de equidade social tanto no âmbito intrafavela, como em comparação com áreas de maior renda. As intervenções feitas sem participação da população; atendem com acesso a água apenas parcela das moradias, e com problemas de regularidade, pressão, volume,  criando “ilhas” de semi-urbanização com uma desigualdade entre os pobres, num conjunto onde permanece a precariedade do serviço e mesmo a persistência do não-acesso, o que não permite atingir uma equidade social.

Palavras-chave: Água/Esgoto, Equidade social, Favelas, Infraestrutura, Rio de Janeiro

Apresentação

   Ainda como estudante de arquitetura e urbanismo em 1975 iniciei uma trajetória de desvelamentos, descobertas flexões, estudos e pesquisas sobre as favelas no Rio de Janeiro, que se mantiveram desde sempre até hoje e buscamos continuidade no seu exame. São sucessivos desdobramentos e olhares sobre um objeto de estudo, cujas complexas e variáveis dinâmicas e processos de mudanças, das moradias, estrutura urbanística, expansão demográfica e geográfica pelo espaço da metrópole do Rio de Janeiro, adensamentos, verticalizações , entre outras, nos tem permitido        artigo se estrutura em x partes. Na primeira trazemos um necessário recorte conceitual que da base a nossos estudos, na medida para a compreensão inovadora da infraestrutura por sua dimensão social e as implicações a seu acesso nas dimensões público e privadas nas favelas. 

1-      Infraestrura e território-espaço público e privado

   Durante largo período (e até hoje) a infraestrutura tem tido sua compreensão restrita a de um objeto técnico e suas funções econômicas. Esta compreensão parte de um enfoque das transformações e desenvolvimentos tecnológicos das técnicas de engenharia que permitem o funcionamento das infraestruturas e da compartimentação advinda da especialização funcional do território, fragmentado em áreas de especificidades de usos e atividades. Este enfoque tem conduzido ao entendimento das infraestruturas como objetos estanques, isolados uns dos outros, e assim  justapostas uma sobre as outras e canalizadas para cumprir funções exclusivas em relação a áreas com funções e usos pré-determinados.  

   Contudo, a incorporação de variáveis espaciais-temporais-topológicas, cinéticas, e adaptativas; e socio-culturais, tem transformado o conceito traspassando sua natureza meramente técnica(obrigatória mas não suficiente), possibilitando a construção de uma outra natureza como objeto sócio-técnico que demarca um rompimento de sua configuração compartimentada por uma ideia de nexos e interações entre infraestrutura e território. Seria assim, a infraestrutura objeto integrador da técnica com a dimensão social-cultural e suas implicações na configuração territorial  como: 1) processos articulados em redes e interdependentes entre si; 2) propicia relações sociais com seus processos normativos, suas determinações comportamentais e sociabilidades diversas; 3) tem natureza de elemento estruturante  como parte da cooperação urbana –base da economia capitalista; e 4) tem natureza multi e interescalar e intersetorial; possibilitando, então, a superação do enfoque restrito à técnica insertando a infraestrutura na sua relação com o território em suas várias escalas e escopos socio-culturais.

   Elementos materiais incorporados ao solo as redes de infraestrutura são um dos elementos de interfaces  fundamentais para potenciar acumulação ao possibilitar e realizar a integração entre unidades produtivas e destas com o consumo, moradia, trabalho, permitindo processos de solidarização entre pessoas, serviços, aparatos urbanos. Configura-se, pois, como elemento estruturador dos vários fluxos do território, e como tal da sua própria produção, organização e redes territoriais: trata-se mais que um instrumento da ordem “técnica” ou isolado da formação socio-espacial em que se dá, de um processo de produção do espaço socialmente construído através de sua articulação em redes, imersas e constituinte de relações sociais especificadas por sua distribuição espacial. Tem um papel, portanto mais que “técnico” na estruturação das cidades; é afinal um elemento estruturante para ordenação e desenvolvimento do território, um instrumento sócio-técnico, com uma engenharia com função social, pondo em relação física e simbólica o território, solidarizando-o, podendo ser considerando como equipamento social de solidarização urbana. Existe assim sendo um nexo obrigatório com a função das infraestruturas de prestação de serviços, sem o que seriam apenas um fato da engenharia. Não basta, no entanto ter o suporte físico mas um fluxo, fluidos ou sinais internos de matéria e distribuir estes fluxos pelo território sob a forma de serviços. As redes de infraestrutura tem assim um princípio: é uma maneira de organização que relaciona possibilidades técnicas com o atendimento de um território compondo um conceito de “redes-serviços”, ou seja, o de uma estrutura com dois movimentos de igual valor e simultâneos: redes organizadas e prestação de serviços que são a materialização das relações das redes de maneira interdependente.

    Assim, utilizamos a abordagem que entende o papel da infraestrutura na estruturação das cidades (Graham e Marvin, 2001) invoca sua pertinência como equipamento de solidarização urbana por meio de prestação de serviços (Dupuy, 1985; Amar, 1987), o que permite sua análise vis-a-vis as classes sociais, assinalando-se sua efetividade, com a reflexão sobre a relação entre redes de infraestrutura, território e organização social.(Piolle,1990-91) . A importância das políticas públicas de infraestrutura urbana deriva do seu papel de produtor de base material da cidade. A urbanização é um processo no qual se investe capital e trabalho, para conferir condições de uso ao espaço urbano, que se expressam através dos serviços públicos e infraestruturas urbanas. O ambiente construído, nesse sentido, deve ser tratado não como uma estrutura física suporte de processos sociais, mas com elemento integrante desses processos. A infraestrutura urbana trata-se, assim sendo, de um elemento importante de produção da cidade, apresentando a nosso ver, um caráter duplo e simultâneo: é parte básica dos processos de reestruturação do capital produtivo, ou seja, de criação ou manutenção continuada das condições reais de acumulação capitalista, e nesse sentido, atende primordialmente às necessidades de potenciar acumulação em parte mínima conferindo condições gerais para a reprodução da Força de Trabalho, na medida das necessidades do capital; e por outro lado, potência os interesses voltados para a acumulação urbana, sendo suporte da quantidade de edificações e expansão da cidade, que permitam-lhe diferenciar o espaço, aliado aos complementos básicos de habitação sem os quais a mesma não cumpre a sua função de moradia.

   As redes de infraestrutura articulam os elementos urbanos impondo-lhes certa hierarquia, determinando assim diferenciações no espaço urbano. Isso significa que em sua contribuição para a transformação e (re)produção do espaço, as redes não apenas estabelecem ligações mas diferenciam, (re)organizam, (re)estruturam e (re)hierarquizam o espaço urbano, sendo, portanto as redes são tanto relacionais como organizacionais na medida que são hierarquizantes. As características relacionadas e organizacionais são a capacidade de criar território urbanizado – pela existência ou ausência de infraestrutura – e de diferenciar o espaço, função também da existência de infraestrutura e ainda de suas condições e dos serviços que tornam estas disponíveis.

   As redes propiciam a criação de um território urbano, posto que produzindo a base material da cidade confere-lhe condições de uso e habilidade através do relacionamento da variável técnica (com suas diferentes possibilidades) e o atendimento social, por meio e prestação de serviços urbanos: de água, esgoto, gás, eletricidade... A palavra-chave das redes trata-se de conexidade pois ela coloca em relação os diferentes elementos do espaço urbano: moradia, comércio, fábricas... mas, não apenas como mero meio técnico de ligação física para acesso e uso dos serviços, mas como relação organizada, de elementos socioculturais e artificiais, sendo que quanto maior forem o número e qualidade de seus “nós”( propriedade de modalidade) maiores as possibilidades de articulações, interações, conexões. Essa ligação dos elementos, não se dá, contudo, de maneira estanque, um a um, e sim de forma ubíqua, numa relação múltipla, simultânea, independentemente de sua localização, forma ou grandeza; e de fronteiras administrativas, políticas e urbanísticas, traspassando-as. Opera de forma instantânea, sem intervalo de tempo, necessitando, que fluxos se deem por trânsitos rápidos e sem ruptura de maneira homogênea. As redes devem ter também conectividade para quando hajam estas rupturas ou bloqueios possibilitem-se caminhos alternativos; assim como devem ter adaptabilidade, seja no tempo, enquanto regulada com diferentes escalas temporais, seja no espaço, por extensão e/ou diversificação.

   Tratados de forma estanque, tanto internamente como intersetorialmente desde sua concepção como projeto até sua implantação, operação, manutenção e gestão pelos diferentes níveis de governo que são os responsáveis setorialmente por cada qual, as políticas públicas de infraestrutura são conduzidas ao espaço urbano-metropolitano sem perceber/compreender as relações que estabelecem, suas interações, e seu papel na redefinição do território. Não percebem que as redes incluem em sua dinâmica interconexões no tempo e no espaço, pois supõem transições entre redes mais simples e aquelas mais complexas; entre aquelas cristalizadas(estáveis) e as necessidades e ações para sua transformação e readequação ao seu papel de atendimento de um território: quando este se transforma carrega a necessidade de mudanças nas redes já estabelecidas ou formação de novas, devendo assim ser moldáveis, móveis, maleáveis, deformáveis e adaptáveis  a diferentes e novas ou outras situações, estarem sempre tidas como “inacabadas” para esposar as variações do espaço e mudanças que se seguem no tempo. E, também, não supõem que interagem, apresentam porosidades entre si pois as fronteiras entre exterior e interior, entre público e privado se reduzem e se imbricam. E interagem , principalmente, na medida que as redes de infraestrutura trabalha com pontos e linhas. Uma pluralidade de pontos-lugar fixo construído não abstrato mas eivado de espessura socio-cultural-econômica, como a moradia para a qual água/esgoto é essencial para ser mais que um “teto” um “lar”, e o rompimento deste ponto inercial tecendo ligações/relações entre os lugares por junções entre os pontos através de linhas por uma pluralidade de ramificações e caminhos base para que as infraestruturas possibilitem as ligações/relações.   

   Quando, contudo, procuramos fazer uma relação entre o escopo conceitual e as propriedades da infraestrutura como exposto acima, com o Rio de Janeiro, inicialmente não encontramos uma relação plena, e no que toca às favelas não se pode confirmar que nos pontos onde verifica-se sua implantação tenhamos superado o quadro de ausência e/ou precariedade de acesso a serviços básicos. Mas temos uma forma de intervenção pública de infraestrutura com o provimento de serviços em partes das favelas que obtém resultado ainda que parcial e minoritário na redefinição das relações entre domínio privando-a casa, e domínio público, gerando algumas alterações na moradia e rotinas de seus habitantes.

  A favela enquanto espaço da invenção e informalidade na produção da sua estrutura urbanística e da moradia, da busca do provimento de serviços básicos, por vezes também como lugar  da casa e trabalho juntos, como redes de solidariedade e presença de famílias extensas e ampliadas, contribui para definir os perímetros e permeabilidades entre esfera pública e privada diferenciada do restante da cidade.

  Este trabalho busca fazer uma reflexão sobre como a implantação de infraestruturas básicas de redes-serviços de água e esgoto na favela trazem elementos para a redefinição das fronteiras entre esfera pública e privada no seu interior, observando, igualmente, as implicações desta redefinição com a da cidade formal/urbanizada. , e tem como base a pesquisa em andamento denominada “Análise da efetividade social das obras de infraestrutura de água e esgoto nas favelas do Rio de Janeiro do Laboratório Redes Urbanas do IPPUR-UFRJ, com apoio do CNPq.

   Ao se pensar a favela as fronteiras entre esfera pública e privada perdem a nitidez, na medida que não existe nela nem uma privatização estrito senso do território, nem a presença do Estado que pudesse lhes inscrever no domínio da esfera pública. Mas a ausência e/ou precariedade de acesso-articulação a redes oficiais de infraestrutura- água, esgoto, luz...fez com que os moradores procurassem, de forma cotidiana e várias vezes ao dia um percurso, uma passagem permanente, ainda que intermitente entre a esfera privada e a pública para se prover de serviços urbanos, enquanto que o Estado praticou uma “não –política” isentando-se da implantação de serviços básicos, ou, por vezes,   se fez presente em ações pontuais e parciais( como , por exemplo na “política da bica d’água”), fazendo uma espécie de “ponte” improvisada para uma inserção também intermitente na esfera pública. Por outo lado, a partir principalmente dos anos 80 as favelas passaram a ter um “dono”, ligado ao tráfico de drogas que promove uma espécie de privatização velada do lugar,  pois tudo que se relaciona com a vida cotidiana, incluso o acesso a infraestrutura deve ter seu aval , apoio, ações e articulações, sendo que cumpre assinalar  que antes deste personagem os presidentes de associações de moradores e as conhecidas comissões de luz já faziam este papel de intermediação e ação para o provimento de infraestrutura.

   Esfera pública e privada, apesar de apontarem de imediato para uma delimitação e dicotomia nítida, não possuem um caráter espacial estático e estanque e de permanência ao longo do tempo, devendo ser referenciados aos contextos históricos de cada momento para serem observadas, mormente na trajetória da constituição e desenvolvimento das cidades. Na cidade grega a esfera pública é aquela da ação de quem é cidadão, referindo-se a uma coletividade e essência do poder dos “iguais”, e se expressa espacialmente na Àgora, e a esfera privada relaciona-se aqueles denominados “desiguais”. No momento medieval essa separação nítida na cidade grega dissolve-se pois não existiria esfera pública em sentido estrito como domínio próprio e distinto da esfera privada. Assim as cidades medievais- os burgos- não possuíam uma nitidez clara das fronteiras entre público e privado, que só iria se constituir ao longo de largo processo que envolveu vários elementos. Entre estes se pode destacar  o comércio onde o que regula a relação entre seus partícipes é um contrato com anuência das partes (em princípio podendo serem atores desiguais pois que a regulação contratual pode tornar iguais, pelo menos neste ato e momento) , o que vai delimitar relações numa esfera privada(Bobbio, 1992). Interessante notar como esta relação contratual irá se expressar, entre outros, no espaço do burgo na Praça do Mercado, um local de troca e encontros de domínio público. Benevolo(1984) mostra um outro momento, já no capitalismo. que será na cidade que tem como modelo a Reforma Urbana de Paris, que vai aparecer uma linha divisória mais precisa entre público e privado onde a configuração da nova estrutura urbanística com seus elementos formadores-ruas, grandes avenidas, praças, parques, equipamentos coletivos como hospitais, escolas... estariam demarcados como sendo da esfera pública, e tudo que estivesse da linha do muro do lote para seu interior estaria na esfera privada. A definição da paisagem urbana moderna, não se restringiria, contudo, apenas a seu desenho do que seja o público como espaços urbanísticos, mas como lugar da ação política, da representação e expressão coletiva, espaço simbólico da sociedade, espaço da solidariedade e do conflito, da revolução, onde a urbanização faz possível a separação e demarcação entre público e privado.

1- Manutenção da política e modelos de urbanização racional-funcionalista nas favelas

  Este artigo tem como foco a problemática do acesso a infraestruturas básicas de água e esgoto nas Favelas do Rio de Janeiro, no período mais recente da segunda década do século XXI. Embora estejam sendo alvo de obras de infraestrutura de água e esgoto anotamos desde logo a não participação dos moradores das favelas, nem no projeto, muito menos na gestão dos processos de manejo, operação e manutenção dos serviços. Igualmente apontamos para a falta de uma política de conscientização e educação necessárias para absorver os novos usos quotidianos dos equipamentos e objetos correlatos a introdução de água/esgoto nos espaços públicos e privados. Persiste, assim,a ausência e/ou precariedade de acesso/articulação a água e esgoto, fundamentais para uma vida urbana, assim como a não universalização de seu acesso, mantendo-se um quadro de inequidade e injustiça social.

  A implantação de infraestruturas de água e esgoto em favelas implica em mudanças culturais, espaciais, e nas relações e fronteiras entre as esferas pública e privada, alterando praticas cotidianas.  Será somente a partir de 1995 que passa a formular-se e aplicar-se uma política que pretende implantar, de forma abrangente e sistemática, redes de água e esgoto nas comunidades populares. A política induzida e financiada por organismos multilaterais (BID, OCDE) com contrapartida dos governos estaduais, locais, e mais recentemente da União, através do Programa de Aceleração do Crescimento(PAC) propõe implantar conjuntamente redes de água e esgoto, contendo todos os elementos que, articulados, podem possibilitar a existência de serviços urbanos básicos, pretendendo-se incluir as comunidades populares na cidade oficial/legal. Esta política, no entanto, faz-se ainda através de um modelo racional-funcionalista, conforme sus cânones de formulação restrita a técnicos formulado e implantado sem a participação dos moradores com um desenho contendo padrão em comum: separa no projeto, operação e manutenção água e esgoto, tem porte hiper dimensionado e sofisticação técnica, sendo de natureza macroestrutural O modelo padrão das redes caracterizado por seu grande porte, hiper dimensionado e contando com sofisticação técnica, tem sido aplicado igualmente, de forma estandardizada para todas as partes das cidades brasileiras, sem nelas distinguir suas diferenças socioeconômicas.

  Constituiu-se assim uma uniformização de tipologia de rede e também de sua normatização (regras técnicas de engenharia, desde as peças componentes à implementação, operação e manutenção, e de tarifação). Configurou-se neste sentido um quadro coerente com a estruturação socioespacial das cidades com base no modelo racional-funcionalista. As redes de infraestrutura em geral, inclusive as de água e esgoto objeto de nosso estudo, contextualizam–se como contribuintes na configuração de cidades marcadas pela falta de equidade social e de participação dos moradores, principalmente os das favelas, nos processos de formulação, planejamento e gestão de água/esgoto.

  Como no Brasil o modelo controla e equipa apenas a parte da cidade dita formal em nexo com as camadas de maior renda e interesses imobiliários, de acordo com a separação de usos e funções diferenciados por classes, o modelo padrão da rede de água e esgoto foi concebido para atender apenas esta parte. Em primeiro lugar, porque seu porte e sofisticação técnica exige sua alocação onde exista demanda solvável que minimamente reponha o custo de implantação, operação e manutenção, o que exclui as camadas populares, que não têm renda para pagar a tarifação do acesso. Em segundo lugar, seu projeto de engenharia prevê uma correspondência com a ortogonalidade das cidades, não encontrada na estrutura urbanística das áreas pobres onde as “ruas” são aquilo que sobra da superposição das casas, de modo que o modelo da rede não “consegue” nelas penetrar. As soluções encontradas para este tipo de situação são as ações para um redesenho urbanístico, naqueles lugares onde seja possível alterar a morfologia típica da favela que se configura como não-ortogonal. No Rio de Janeiro, mesmo em favelas situadas em locais com grande aclive, em morros, onde tem sido possível, tem sido alterado o desenho morfológico tradicional do lugar, em parte com abertura de ruas carroçáveis ou alargando as já existentes tornando-as carroçáveis, ou seja com um mínimo de três metros de caixa de via, e em becos e escadarias busca-se adapta-los a este padrão, pavimentando-os e se possível alargando-os. Com esta intervenção nas vias implanta-se rede em formato de “árvore”, ou seja de um único ponto da nova rede oficial implantada sai um ramal que se divide em tantas partes quantos forem os domicílios a serem ligados. Isto só é possível nos lugares onde se consegue colocar redes convencionais, onde não é possível esta forma a ligação das moradias se faz por ligações individualizadas da rede convencional até cada domicílio com ponto final em cada casa.

   As redes assim implantadas não podem ser entendidas como rede completa mas parciais, pois a primeira tem como característica a conexão de todos elementos do lugar de maneira equivalente. Nas ligações individualizadas observamos problemas de volume insuficiente para as atividades e necessidades do dia-a-dia, pressão intermitente, e não regularidade de atendimento no abastecimento de água, assim como para sua manutenção dado estarem localizadas as casas em posição de “final” de rede sem articulação plena com a rede convencional alocada em ruas ortogonais. Verificamos, igualmente, que estes domicílios apresentam problemas para a devida coleta de esgoto e seu transporte até a rede convencional dado o frequente entupimento destes ramais individuais, seja por dimensionamento da tubulação não ser o suficiente para atender o volume coletado, seja pelo posicionamento e caimento da tubulação impedir correto escoamento. Assim sendo, podemos apontar que o modelo estandartizado de rede revela capacidade de responder a especificidade da demanda das áreas de camadas de maior renda, colocando problemas para uma resposta as de menor renda. A uniformização das redes portanto não conduz à universalização dos serviços; sendo uma aplicação caso a caso(não se trata de programa geral de saneamento de favelas  respondendo a determinada situação dada emergencialmente), englobando nova organização urbanística e, por vezes, nova tipologia de moradia, e exigem , principalmente, medidas administrativas, normas, regulamentos, regras compartilhadas e taxação dos serviços, tudo antes inexistente nas favelas, o que conduz a ideia que nas pequenas parcelas onde são introduzidas nas favelas as redes são trazidas mas não traduzidas para os moradores. Introduzir nas favelas toda uma gama de novos objetos acompanhados por regras e normas oficiais que colocam a necessidade de redefinir rotinas, gestos ,ações, condutas próprias do mundo urbanizado, com alterações nas relações entre domínios público e privados e nos percursos dos moradores entre estes. Á falta de uma educação para lidar com o papel da infraestrutura em suas vidas lhes induz a permanecer num quotidiano de percursos entre o domínio privado-suas casas, e o espaço público para buscar água e descartar esgoto.  

  Já no transcorrer da terceira década do século XXI temos um contexto complexo nas favelas do Rio de Janeiro. Seu crescimento e expansão horizontal e vertical é nítido nas favelas já consolidadas no núcleo de bairros da cidade e nas periferias da metrópole ; ao mesmo tempo que surgem novas favelas em áreas de mais recente crescimento. Além disto embora a política de intervenção para urbanização de favelas tenha se reatualizado através do PAC- Programa de Aceleração do Crescimento, em concomitância com a permanência de outros programas de diferentes níveis de governo(articulados ou isolados), e se tenha colocado um quadro de favelas “pacificadas” por uma política de segurança pública de proximidade-Unidades de Polícia Pacificadora – as UPPs,  e favelas “não pacificadas”, este quadro sofre bruscas alterações, mais recentemente com a crise econômico-política, com forte ajuste fiscal, onde o ritmo das obras foi atingido, ou mesmo as interrompeu, e foram impactadas com os problemas na política de segurança aplicada, e já ano momento atual com o “desmonte” da ideia e prática das UPPs, sua falência e retorno de favelas ao domínio do tráfico de drogas, impedindo ações públicas de implantação, operação e manutenção de infraestruturas básicas. Como metodologia de pesquisa o estudo envolveu a articulação do conhecimento do campo teórico da infraestrutura como objeto sócio-técnico; os modelos de intervenção para urbanização sem vinculação com a cidadania e sua relação com as práticas sociais cotidianas , com um método de pesquisa de campo por meio de técnica de observação direta e foco na perspectiva dos moradores através de entrevistas semi-estruturadas. Para a pesquisa escolhemos casos de Favelas, em diferentes situações geográfico-sociais; de morfologia urbanística e tipologias habitacionais; e contextos de segurança pública trabalhando com um recorte micro escalar, examinado o Complexo de Favelas do Alemão; da Maré; da Cidade de Deus; Manguinhos; Cantagalo; e Acari. Obras de infraestrutura tem sido realizadas em Favelas, instigando a reflexão crítica sobre sua efetividade e impactos na questão da equidade social.

  A metodologia da pesquisa que dá origem à comunicação foi de corte analítico qualitativo, com pesquisa de  campo numa abordagem combinada de observação técnica com o relato dos moradores-através de entrevistas semiestruturadas- onde se obtém um histórico de sua relação e rotinas de vida em consequência de não ter acesso, ou ter de forma precária a abastecimento de água, ou ter acesso e em que grau e efetividade social pós-obras, onde assim foram feitas, para sua implantação, visando a reflexão crítica do quadro encontrado antes e depois das intervenções.

   A favela enquanto espaço da invenção e informalidade na produção da sua estrutura urbanística e da moradia e da busca do provimento de serviços básicos, por vezes também como lugar  da casa e trabalho juntos, contribui para retomarmos o pensamento das permeabilidades entre espaço público e privado como diferenciado do restante da cidade. 

  Ao se pensar a favela as fronteiras entre espaço público e privado perdem a nitidez, na medida que não existe nela nem um espaço privado pleno, nem a presença de elementos de urbanização e seus serviços que pudessem lhes inscrever no espaço público. Mas a ausência e/ou precariedade de acesso-articulação a redes oficiais de infraestrutura-água,esgoto,luz...fez com que os moradores procurassem, de forma cotidiana e várias vezes ao dia um percurso, uma passagem permanente, ainda que intermitente, entre a espaço privado e público para se prover de serviços urbanos, enquanto que o Estado praticou uma “não –política” isentando-se da implantação de serviços básicos, ou, por vezes,   se fez presente em ações pontuais e parciais( como , por exemplo na “política da bica d’água”), fazendo uma espécie de “ponte” improvisada para uma inserção, também intermitente, no espaço público. Ao introduzir-se redes de abastecimento de água os moradores passam a não necessitar obrigatoriamente de sair de casa para buscar o líquido propiciando a possibilidade de certa autonomia e isolamento com valorização da vida privada. Ao implantar rede oficial de água se traz com elas as regras de compartilhamento de um serviço coletivo, sua tributação através de taxa de acesso, suas normas e a necessidade do aprendizado de seu uso, o que ensejou mudanças culturais , incluso nos hábitos de higiene corporais e de organização e limpeza das casas e da cidade.  Ao mesmo tempo que valoriza o privado estar articulado a redes oficiais de água possibilitaria o pertencimento à cidadania espaço público enquanto lugar mais pleno da ação política e do encontro das solidariedades, podendo o morador assumir uma equidade social com os demais habitantes da cidade.

2-     Percepções da vida urbana pelos moradores das favelas

  Para romper o modelo racional-funcionalista que não ouve os moradores fomos registrar nas suas falas o papel da água/esgoto em suas vidas. As conversas aqui registradas, foram realizadas, como já assinalado, na forma de entrevistas semi-estruturadas, O questionário desenvolvido atentava para as mudanças de infraestrutura que ocorreram em cada caso de área de cada favela examinada, e os efeitos físicos e simbólicos que decorreram dessas mudanças. Ao longo do questionário procuramos construir a trajetória habitacional daquela pessoa, tentando desvendar os motivos que fizeram a família optar pelo lugar, de onde vieram, como construíram ou compraram sua moradia ou se alugam, e como a casa está organizada face à articulação ou não com a infraestrutura, ou se articulada precariamente.  A partir da relação que possuem com a sua casa procuramos perceber como se relacionavam com a questão da infraestrutura e serviços urbanos e com a favela como um todo, e com o restante da cidade, na tentativa de registrar se com obras de implantação de redes existiram mudanças, e se não existiram obras como fazem no dia-a-dia. Perguntas do tipo “como é a sua relação com a sua rua e vizinhos se tens água em casa ou não, se tens banheiro e coleta de esgoto...? ” e “Como você vê a relação da sub-area onde vives com a favela como um todo e com a cidade?” ou “você utiliza alguma infraestrutura resultante de obras, ou equipamento coletivo? Ou “você e sua família quando não tinham água em casa faziam como para busca-la?” ou “a casa se organiza como no seu interior se tem ou não água e coleta de esgoto?” ou “quais equipamentos ligados a infraestrutura tem em casa-chuveiro,vaso,pia?” e “tendo a possibilidade de ter estes equipamentos a organização da casa modificou-se?” orientavam nessa tentativa de desvendar a apreciação e percepção que fazem do território e suas novas infraestruturas e equipamentos. Perguntas acerca dos serviços públicos ofertados no bairro, como coleta de lixo, água encanada e coleta de esgoto foram as mais importantes para compreender o nível de formalidade que determinada região possui, o que influencia também na apreciação e pertencimento em relação ao lugar onde vivem.

  Então começamos a entrevistar dentro das subáreas que destacamos como as com mais problemas face a infraestrutura em cada favela analisada por apresentar ausência e/ou precariedade de serviços urbanos básicos, altíssima densidade construtiva, sem demarcação prévia de lotes, com construções estreitas e muito próximas, comprometendo ventilação e insolação e apresentando dificuldade de acesso e circulação de pessoas e veículos. Durante os percursos pudemos anotar o quadro de infraestrutura do lugar. As favelas cariocas, onde residem as classes populares, estão marcadas principalmente pelas ausências, mormente de serviços urbanos básicos regulares. Observamos partes com  obras em andamento, outras concluídas, mas a maior parte não sendo objeto de introdução de melhorias urbanas. Anotamos em entrevistas pessoas apontando que após as obras a água que antes chegava regularmente na casa agora pós-obras entra sem horário estabelecido. Como nos disse um morador: “Tivemos que juntar as pessoas de três casas, comprar uma pequena bomba elétrica, que ligamos na tomada de um bar próximo, furamos o encanamento oficial e assim temos água para encher as caixas..(morador de casa perto da estação Itararé no alto de Nova Brasília no Alemão). Também observamos uma canalização de coleta de esgoto por rede passando ao lado de casas e uma canaleta de drenagem de água de chuva ao lado, tudo fruto das obras, e na canaleta de águas pluviais descia uma verdadeira cascata de esgoto. Ou seja, ou a rede de esgoto não foi dimensionada corretamente, ou existiriam ligações diretas com a canaleta de água de chuva. Perguntamos então aos moradores do lugar e este disseram que jogavam esgoto a céu aberto na canaleta de água de chuva por falta de ligação da rede feita com as casas(moradores do Quebra-Braço, no Cantagalo). 

  Ao entrar em contato com a família de uma das entrevistadas- Mariana, conversar com seus pais e irmãos, fica claro um exemplo que a casa da família está para além da dimensão material. Não significa apenas a expressão física de capacidade de adaptação de uma família num cenário de privação, mas principalmente da construção de relações de afeto e proximidade com o território, uma espécie de enraizamento, mesmo que os primeiros que ali ergueram o primeiro tijolo não tenham nascido nem na cidade nem no estado do Rio de Janeiro. A construção da casa, o aproveitamento dos espaços, subir mais uma laje, são acontecimentos que se mesclam com a própria construção da vida familiar. Rosangêla, mãe de Mariana, em uma conversa sobre a vida da família no Alemão conta sua história narrando como foi modificando sua casa, a construção de mais um quarto quando a segunda filha nasceu, mudança na entrada, abertura de uma janela, a chegada da água. “As pessoas contam acontecimentos da vida pontuando as transformações feitas na casa e falam sobre os planos sempre tendo as casas e as lojas como referência e a possibilidade de transformá-las, vende-las ou aluga-las. As construções marcam os tempos da vida( Motta,2014).

  A própria história de ocupação das favelas se mescla às construções realizadas por essas famílias. A apreciação que demonstram pela cidade do Rio de Janeiro em geral e pelos lugares de moradia em particular, passa também pelo apreço que possuem por suas casas, pelo pertencimento que sentem ao lugar que construíram, incluso o possível de infraestrutura.

  Como alguns dos trechos mais emblemáticos das falas dos moradores podemos destacar:

“Ainda tem que melhorar muito, mas nunca chega até aqui nos becos e vielas mais internas tanto água como esgoto. Onde fizeram algo fica bonita só a frente, mas no miolo não fazem nada. O que adianta só um reclamar? ” Graciela (moradora da Rocinha 2, Cidade de Deus)

“O PAC já veio consertar meu encanamento 3 vezes. Em nenhum deles deu certo. Agora está consertado porque meu avô consertou” (Letycia, moradora do Quebra-Braço, Cantagalo)

“Dá vergonha de levar visitas até em casa. Não por causa da minha casa, mas chegar até ela. As obras não chegam onde realmente precisam, aqui no interior da favela mesmo não ocorrem obras” (Morador sem identificação em conversa descontraída em um dos becos da Nova Holanda,Maré)

“Eu moro aqui desde que nasci. Hoje em dia trabalho aqui, quase não vou na cidade (formal). Não sei como seria morar fora daqui, mas água, esgoto e coleta de lixo sempre não existiram .Ou foram as pessoas mesmo que fizeram ou tem que sair atrás buscando água.... ”(Vanessa, moradora da Parmalat, Acari)

“As casas são muito pequenas(se referindo as moradias de 4x4m= 16m²), tem água que o pessoal fez “gato” e trouxe pra dentro das casas igual a luz. Temos vaso, que fica dentro de um quarto mas o esgoto desce pelo cano e sai numa das ruas da antiga fábrica(Rosa, moradora de uma das casas construídas dentro de um dos três galpões industriais da antiga Parmalat transformado em cortiço, Acari)

Mas aqui não é bairro não, é favela mesmo! ” (Angela, moradora do Quebra-Braço, Cantagalo)

“Eu digo que o Loteamento é a ‘Zona Sul” de Nova Brasília. Lá é tudo canalizado, nada tem esgoto pra fora. Mas lá é muito frio, ninguém se conhece, aqui (em Nova Brasília) é muito mais solidariedade. ”(Rosangêla – mãe de Mariana moradora de Nova Brasília, Alemão) .

Imagina você ter que na sua sala ter um cano de esgoto passando nela? As crianças brincam aí assim mesmo e nas vezes que o cano estoura sai fezes pra tudo que é lado... (Angélica, moradora de uma das casas construídas dentro de um dos três galpões industriais da antiga Parmalat transformado em cortiço, Acari)

   Diferentemente de algumas sub-áreas que tem estrutura urbanística informal, analisamos algumas(loteamento no Alemão, Rocinha 2 na Cidade de Deus, o entorno da Parmalat em Acari-não sua forma de ocupação em cortiço mas no seu interior)que possuem uma estrutura urbana com aparência mais formal, houve a prévia delimitação de lotes e vias as construções podem ter maiores dimensões (evidente pela testada dos lotes) e recuos laterais e frontais o que possibilita maior qualidade de iluminação e ventilação interna. Interessante notar que em todas as entrevistas feitas nessas áreas os moradores responderam satisfação quanto ao serviço de coleta de lixo, somente um entrevistado respondeu que não havia o serviço de coleta na porta de casa (gari). Pela própria dimensão das vias e o seu traçado o serviço público de coleta de lixo se faz muito mais presente nessas áreas do que em comparação com as informais onde todos os moradores entrevistados responderam que precisavam descartar o lixo em algum outro ponto do complexo, o que gera uma insatisfação com o serviço e o acúmulo de lixo nas vias. O mesmo acontece em relação ao fornecimento e à qualidade da água. Enquanto nas formais somente alguns moradores relataram abastecimento irregular, nas de traçado informal os relatos foram bem diferentes com a maioria dos entrevistados apontando além da frequência irregular do abastecimento e má qualidade da água com cor amarelada ou barrenta , e esgoto lançado a céu aberto ou direto em rios ou canais(nove entre dez entrevistas).

   Essa configuração urbana distinta que possibilita um acesso diferente a serviços públicos confere a estes moradores uma distinção em relação aos outros moradores das outras partes das favelas, o que pode ser percebido nos discursos ouvidos. Fica evidente um certo afastamento, um distanciamento que se evidencia na falta de conhecimento dos problemas em comum e um num certo desinteresse em se envolver ou frequentar equipamentos do local. Entre falas, destacamos:

“Aqui não passou por obras do PAC porque disseram que aqui não precisava. Não tinha noção do tamanho do Complexo do Alemão até ver na televisão, tem lugares que precisa muito mais” (Elizete – moradora de Nova Brasília, Alemão).

“A Cidade de Deus começou como um conjunto habitacional com as casinhas todas iguais, mas agora não é um bairro, ainda falta muito pra ser. Não tem água todo dia, o esgoto vai direto para o rio, que com chuvas transborda tudo para dentro das casas. Virou favela ”(Margareth – moradora de Rocinha 2. Cidade de Deus)

   As falas de pessoas de lugares com conformação urbanística diversa e com algum grau de infraestrutura diferenças de identidade e pertencimento entre sub-áreas– “Eu quase não vou lá não, pessoal de lá é muito favelado, sabe como é.”Zilma, Loteamento, Alemão -  referindo-se à Praça do Conhecimento que fica no meio de Nova Brasília, deixa claro o afastamento que mantém deliberadamente com o restante do Complexo não se identificando com o grupo chamado de ‘favelados’. Zilma, neste caso, por morar no Loteamento, percebe-se como integrante de uma outra coletividade, que não aquela. Uma coletividade que goza de maior formalidade urbanística e social, e que por sua localização (na parte baixa, próximo à Av. Itaóca com farto transporte público por ônibus) possui pouca relação com os demais lugares do Alemão. Nesta posição, que pode ser vista como uma posição privilegiada dentro do Alemão, Zilma não se sente à vontade ao frequentar os mesmos equipamentos que a população de Nova Brasília, identificada por ela como pertencentes a outro grupo social. Por suas expressões e por outras falas dos moradores dessa área identificamos aqui uma relação de estabelecidos e outsiders, sendo os moradores do Loteamento os estabelecidos e os moradores de Nova Brasília os outsiders:

  “Costumeiramente, os membros dos grupos outsiders são tidos como não observantes dessas normas e restrições. Esta é a imagem preponderante desses grupos entre os membros dos grupos estabelecidos. Os outsiders (...) são vistos – coletiva e individualmente – como anômicos. O contato mais íntimo com eles, portanto, é sentido como desagradável.” (Elias, 2000).

   A estigmatização dos moradores de determinada área das favelas é assim realizada. Essa separação social existente entre os membros dos dois grupos é ainda confirmada pela fala de Zilma - “Para quem é morador ele (o Complexo do Alemão) tá incluído na cidade, para a cidade ele não tá” -  reforçando a representação da favela, forjada no início do século XX, como a ‘não-cidade’.

  O que aparentemente, pode nos parecer como um todo construído, genericamente conhecido como uma único lugar favelado, é na verdade uma imbrincada rede de sociabilidades e articulações ou não com equipamentos e serviços urbanos, marcada por identidades muitas vezes conflitantes. Entende-se que a implantação de novas redes de infraestrutura urbana no local, como as redes de abastecimento de água e coleta de esgoto, pode acentuar essas diferenciações internas principalmente na forma fragmentária e parcial como as obras são conduzidas hoje pelo poder público.

  Compreende-se também que a forma ou a morfologia urbana (tamanho das construções, a existências ou não de recuos permitindo ou não a maior iluminação e ventilação, o desenho viário, a presença de equipamentos e serviços públicos, etc) influencia diretamente as representações linguísticas aqui apresentadas, interferindo concretamente no sentimento de pertencimento dos moradores ouvidos neste estudo, o que extravasa para sua compreensão e apreciação da cidade como um todo. Outro aspecto importante na composição desses cenários é a violência urbana que acomete as favelas e a consequente militarização do espaço com as UPP. Atualmente o que se sente é que o espraiamento de grupos de traficantes devido à incursão da polícia militar gera uma certa homogeneização de eventos violentos, mas mesmo assim, aqueles que se encontram mais próximos às bases policiais ou ao circuito de movimentação de drogas continua sendo motivo de distanciamento.

  Vimos que o uso e a vivência de alguns espaços recentemente construídos com novas infraestruturas atinge um número limitado de moradores devido a morfologia do terreno (morros ou áreas planas) e a morfologia da ocupação, o que gera diferentes representatividades do território com grupos de indivíduos de identidades distintas. O registro da falas e vocabulários aqui apresentados teve como objetivo apreender as subjetividades que compõem a construção imagética da cidade do Rio de Janeiro e das favelas. Acredita-se que a paisagem urbana das favelas é, como aqui apresentado, suscetível de várias leituras. O todo que compõe cada uma das favelas é dissolvido em re talhos de configurações urbanísticas e tipologias de casas diferenciads, linguagem, expressões, cada qual apropriado à sua maneira, à uma comunidade interpretativa distinta que revela um desejo identitário.

  Escolhermos tipologias habitacionais diferenciadas, para entender de forma mais aprofunda o processo de cada uma delas e dos moradores dali. A partir disso, apontamos como exemplo o caso da moradia de Zenadia, onde fomos continuamente por algumas semanas e entrevistamos o máximo possível de pessoas que lá estiverem (como a avó da moradora, a própria moradora mais jovem, seu tio, pais e irmãos) no horário da pesquisa.

   Optou-se por iniciar-se com um questionário semi- estruturado, mas com o intuito de conseguirmos uma autobiografia habitacional aprofundada, com o máximo do ponto de vista do morador, decidimos por uma conversa mais fluida, onde interviríamos com ganchos tirados do questionário para o necessário. Alguns pontos deveriam aparecer nessa conversa, como uma trajetória linear com as mudanças da vida do morador, onde ve ríamos em que ponto começam a surgir o abastecimento de água e esgoto e como isso foi se alterando com o tempo e o que alterou nas moradias em que ele estava.

   Para isso, realizamos a primeira visita dessa etapa na casa de Zenadia onde já havíamos visitado para realizar o questionário. Na área de Nova Brasília realizamos nossa entrevista na sala, localizada no primeiro andar, onde mora sozinha, e, com o gravador, começamos uma conversa mais solta, informal, perguntando desde a sua infância até o momento atual. Dona Zenadia, atualmente com mais de 80 anos, era do interior, e mudou-se para o Complexo do Alemão aos seus vinte e poucos anos. Ela pode testemunhar as mudanças no Complexo, as entradas de água no local e a diferença da vida com estes dispositivos em uma cidade rural e a cidade grande. A visita e a conversa durou uma tarde inteira, onde além da gravação fizemos diversas anotações do que estava sendo dito. A importância da gravação porém é de extrema relevância, pois somente a partir dela poderemos passar o real ponto de vista dela, já que as anotações começam a ser um discurso indireto do que está sendo dito a partir de nosso ponto de vista. 

   Na nossa segunda visita, entrevistamos o filho de Zenadia, José Roberto , sua esposa Rosane , seus dois filhos João Pedro e José Roberto e sua filha Alana. O filho e sua esposa moram no segundo andar da casa, o qual dona Zenadia cedeu ainda como um terraço para que ele pudesse construir uma casa para morar com a filha recém nascida e sua esposa. Eles já moravam no Complexo do Alemão porém na área do Loteamento, em uma casa extremamente úmida que estava adoecendo a filha que havia acabado de nascer. Com o crescimento da família a casa foi se expandindo para dar espaço aos novos moradores, sendo construída por eles mesmos.

  Cada etapa da construção acompanhou uma fase da família, que estão muito vivas nas lembranças e nas fotos antigas que analisamos enquanto conversávamos com eles. O esforço conduziu-os a uma noção de pertencimento e simbolismo a aquele local que ultrapassam as dificuldades vividas por eles por causa da violência que aumentou durante os anos. Os encanamentos, a estrutura e as instalações elétricas foram todos feitos pelo José Roberto que trabalha como eletricista. O banheiro, porém, demorou muito para ser enfim terminado. Por anos, e com uma família de 4 pessoas, utilizaram um banheiro de 1m2, onde não havia vaso sanitário ­ utilizavam a boca do encanamento para as necessidades fisiológicas ­ a pia localizava-se fora no banheiro, o chuveiro caía quase que diretamente na “boca” do encanamento ­ que até então era o vaso sanitário ­ e a porta era somente um pano. Por muito tempo, segundo a Rosane da Silva, as visitas utilizavam o banheiro da casa de sua sogra Zenadia, no primeiro andar. Com o tempo, adquiriu-se um vaso sanitário, aumentou-se o banheiro (diminuindo a cozinha), que pôde então ter um chuveiro e uma pia. O banheiro acompanhou diversas mudanças na moradia interna, que conta com grande flexibilidade, e ganho de espaço por doação do vizinho, que sempre foi amigo da família. Desde o primeiro andar, do terreno, foi construída uma pequena casa, com um terraço onde havia criação de porcos, posteriormente o terraço virou uma sala e foi construída uma escada de acesso a um grande terraço no segundo andar. O terraço foi cedido ao filho, que estava constituindo uma família, que a partir daí foi construindo uma sala, um quarto, uma cozinha e um pequeno banheiro; com o tempo, o banheiro foi melhorando e aumentou, com isso a cozinha diminuiu, o quarto trocou de lugar com a sala; mais um quarto foi construído, fez-se uma área de serviço perto da porta de entrada, uma pequena área de ventilação foi cedida pelo vizinho amigo e enfim uma segunda escada independente foi construída e o terceiro andar cedido ao segundo filho de Zenadia, que construiu sua casa. A fala rápida foi para através do texto ter­se noção da grande “maleabilidade” do espaço, ambientes que crescem e diminuem, paredes que são construídas e quebradas, áreas que se ganham e se perdem, novas casas e novas famílias em um mesmo lote. 

  O PAC, mesmo com a iniciativa de realizar grandes obras de infraestrutura no local, não necessariamente atingiu as demandas da população ou foram eficientes. Em muitos aspectos as obras ficaram inacabadas ou as obras foram realizadas com má qualidade, por exemplo, a questão da drenagem, onde muitas ruas ficaram alagadas. Muitos locais que precisam urgentemente de infraestrutura também não foram atingidos, como mostra o relato de algumas moradoras:

  O que entendemos é que as obras de implantação de infraestruturas básicas não absorveram de fato a real gravidade da demanda por infraestrutura nas favelas estudadas, como um todo. Ainda superficial, as obras ainda ficam na transição da “cidade formal” onde são visíveis, como a “ponta de um iceberg”, não atinge o “miolo”, que é onde percebemos uma situação mais precária nos becos e nas moradias. Além disso, o processo das obras não teve metodologia participativa, faltou dar voz a aqueles que iam sofrer massivamente com as decisões projetuais, o que afetou diretamente o resultado das obras e a satisfação dos moradores.

  Na perspectiva das tipologias habitacionais e modificações internas, as favelas analisadas apresentam grande variedade de tipos habitacionais que vai desde barracos, casas, vilas, pequenos edifícios à conjuntos habitacionais. Percebemos que as mudanças no interior das residências ocorreram devido as obras do PAC ou não. Muitos moradores aproveitando o momento de valorização do local, resolveram realizar melhorias em seus imóveis, já outros tiveram a necessidade de reformar devido a alguns problemas mal resolvidos pelas obras do PAC. Com relação as residências, vale ressaltar que no local existe uma cultura de “doação de lajes”, que faz com que o gabarito seja sempre aumentado, transformando casas em pequenos edifícios.

   Percebemos também, e reafirmamos que as favelas possuem estruturas urbanas muito diferenciadas, e muito próximas umas as outras também. Vimos como essa diferenciação de estrutura influencia na qualidade de serviços, a identidade dos moradores com o local, a noção de espaço público/privado, o uso das ruas/becos, os tipos de moradias, as alterações habitacionais e a qualidade de vida, afetando os moradores em suas rotinas, modos de ver a cidade, como se apropriam do espaço, suas  moradias e até a cultura do local. 

   Quando composta de becos e ruelas, as sub-áreas analisadas em cada favela foram locais de mais fácil de aproximação com os moradores; como o uso desses becos é recorrente para a socialização, como um quintal de casa, a nossa chegada até eles era mais informal, íamos encontrando os enquanto percorríamos a área. Percebemos então uma porosidade no espaço público/privado, havendo uma aproximação clara destes e sem distinção predefinida. Já onde as ruas são mais largas, com casas mais bem estruturadas, com quintais na entrada, muitos portões e muros, a rua não é tão utilizada para sociabilidade (a não ser por crianças): há então, uma maior noção do domínio privado. Tivemos que fazer a experimentação de ir batendo de porta em porta e conversarmos com o morador muitas vezes sem entrar em sua residência.

  As identidades e culturas do local também eram bem complexas. Saindo dos estereótipos, pudemos perceber que a percepção do morador com o lugar onde moram vai muita além de nossa observação como pesquisadores somente. Foi essencial ouvir suas respostas para entendermos um pouco melhor o que é ser morador de favela. Nas áreas mais formais dele, há um claro distanciamento do morador com a “favela”, com os, como eles chamam “favelados”, não se reconhecem como e fogem do rótulo de morador de favela, isto estando articulado , em parcela importante a ter acesso a água, esgoto e coleta de lixo.

3- Implantação de elementos  de infraestrutura de redes de água: limites e problemas para uma equidade social

  A implantação de infraestrutura de água (e esgoto) em favelas tem implicado em mudanças culturais, espaciais, e nas relações e fronteiras entre espaço público e privado, alterando rotinas cotidianas constituídas na sua ausência e/ou precariedade.  Será somente a partir de 1995 que passa a formular-se e aplicar-se uma política que pretende implantar, de forma abrangente e sistemática, redes de água e esgoto nas comunidades populares. A  proposta possibilitaria a existência de serviços urbanos básicos, propiciando a oportunidade de uma equidade social incluindo os habitantes das favelas na cidade oficial/legal.

  Esta política tem um desenho de um padrão em comum: tem porte hiper dimensionado e sofisticação técnica, sendo de natureza macro-estrutural; uma aplicação caso a caso(não se trata de programa geral de saneamento de favelas) mas responde a determinada situação dada emergencialmente, englobando nova organização urbanística e, por vezes, nova tipologia de moradia, e exigem , principalmente, medidas administrativas, normas, regulamentos, regras compartilhadas e taxação dos serviços, tudo antes inexistente nas favelas. Neste sentido, poderíamos pensar nas redes e serviços de água como objeto que coloca a necessidade da população de redefinir rotinas, gestos ,ações, condutas que sejam próprias do mundo urbanizado. Nas favelas examinadas se apresentam componentes que possibilitariam de fato a configuração de verdadeiras redes de água.

  Mas a primeira questão que se coloca é que dados os atrasos, inconclusões, instalações apenas de engenharia civil, e falta de partes do que seriam a rede, o cumprimento da efetividade social dos serviços ainda não se fez sentir, ou apenas se fez pontual e parcialmente. Nas áreas onde a rotina era pegar água de poço, bombeá-la na rua ou fazer a ligação clandestina, e criou-se a expectativa de ter abastecimento canalizado com água tratada, a decepção é muito intensa de ver obras de engenharia prontas , mas onde, por exemplo, a água não chega às moradias por conta da inexistência de rede de distribuição para as casas. Em áreas onde conseguiu-se concluir as obras, a vida diária mudou: alteram-se as temporalidades, os ritmos, rompem-se as repetições da obrigatória saída da esfera privada para inserção na pública em busca do líquido. Como não existe completude registram os moradores problemas de frequência – a água não entra diariamente – insuficiência de volume para as necessidades familiares diárias, e muitos problemas de variação de pressão. Apareceram também indicações de problemas na qualidade biológica da água. Constatam os moradores( e por observação técnica de campo) um “descasamento” entre as obras de água e esgoto: em algumas favelas foram feitas (ainda que algumas obras apenas parcialmente) obras de esgoto e não as de água, em outros as de água e não as de esgoto.

  Outro ponto assinalado é que, onde foram feitas as obras, existem problemas de manutenção e operação das redes: vazamentos na rede água, rompimentos e entupimentos que demoram muito a serem consertados ou não o são. Apesar de implantação de redes oficiais ocorre que, no mais das vezes, os bairros no entorno das favelas têm ausência ou precariedade de funcionamento das redes (notadamente a de esgoto), e por outro lado, o efetivo funcionamento das redes construídas mostram problemas de operação, pois a Cia. Estadual não quer assumir rede feita pela prefeitura, ou se faz a ligação não faz a manutenção, o que impede a efetividade plena dos serviços. Persistem, assim, alguns problemas de pressão, com variação ao longo do dia, não atingindo homogeneamente todas as casas. Ainda verificam-se manobras para levar água e uma parte a outra, e aponta-se, também para abastecimento irregular( por exemplo é comum a água entrar duas vezes por semana ao invés de diariamente, ou faltar água uma vez ao mês por uma semana). Os moradores, observando sua não resolução procuram resolvê-lo retornando às maneiras alternativas de acesso que tinham configurado antes das obras.

   A implantação de infraestrutura de água  nas favelas e o quadro encontrado a partir dessa ação permite uma reflexão sobre seus impactos na vida e práticas cotidianas e implicam na redefinição das fronteiras entre público e privado, mas apontam para um “descasamento” entre a cultura e hábitos das comunidades e técnicas implantadas, normatizadas e regularizadas.

  De fato introduzem um elemento de novidade no processo de urbanização brasileira, mas a  primeira questão que se coloca, contudo, é que a introdução de serviços básicos se faz por meio de um padrão idêntico ao utilizado nas áreas de maior renda: um desenho hiper dimensionado, com obras de grande porte e com sofisticação técnica, com alto custo, e a segunda questão é que não toma em conta  a tipologia habitacional e a estrutura urbana das favelas, e não observa que se desenvolveu e consolidou-se de um conjunto de práticas cotidianas que configurou-se na ausência de política de infraestrutura básica para estes assentamentos.

  Ao seguir nas favelas o padrão de infraestrutura das áreas de maior renda poderia se pensar que o Estado procura uma integração plena destes assentamentos na cidade os formalizando. Esta opção coloca que a escolha evidencia a busca de fazer prevalecer as mesmas normas e regras e seus consequentes comportamentos e condutas existentes na cidade formal nas favelas. Isso significaria, se de fato a implantação obtivesse resultados plenos, que: (a)os moradores teriam que(de maneira rápida) apreender um conjunto de códigos, normas, regras para seu uso ; (b) poderia conduzir a uma valorização do privado, a uma “intimação” da vida cotidiana, rompendo a temporalidade da repetição de ações individualizadas para se prover de água , (ações que tem ritmos próprios e desiguais por seu caráter individual), possibilitando uma dissociação entre público e privado. Por outro lado esta intenção de estender as mesmas normas e regras da cidade formal para as favelas será eivada por uma contradição , pois no que se pode acompanhar, observar com olhar técnico, e se confirma nas entrevistas com moradores, a utilização do mesmo padrão de redes da cidade formal não tem conseguido estabelecer na plenitude, prover redes com todos seus componentes e faze-las funcionar com todas suas propriedades de forma a prestar serviços continuados e suficientes para a vida diária, o que não permite a intenção primeira de valorizar o privado separando-o do público, ao não tomar em conta  a cultura e práticas cotidianas  configuradas na ausência e/ou precariedade de serviços básicos, e querer altera-la de chofre, não obtém êxito pleno e continuado na passagem entre o âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado para o âmbito urbanizado, de modo que os elementos de infraestrutura introduzidos não conseguem ser compreendidos e  usados.

   A pretensão de uma integração com a cidade formal, inclusão e equidade social envolve completar um percurso que estaria em curso na direção de um âmbito urbanizado, mas que parece carecer de um entendimento que este processo, que se trata na verdade de uma semi-urbanização em algumas favelas ou em parte de algumas favelas, e de persistência da não-urbanização em outras, este processo não é igual a similares na cidade formal, pois  nas favelas sua concepção esta eivada de desvios de uso, de invenções e táticas e práticas para provimentos alternativos próprios das respostas possíveis às condições de vida dos moradores. Não seria possível, assim, fazer a apropriação das tipologias de moradia existentes e de parte da estrutura urbanística, como tem sido tentado pelas intervenções públicas, ainda assim parcialmente, sem procurar entender e aceitar,  ou pelo menos dialogar, com as práticas cotidianas e a cultura que se configurou na vida dos moradores expressados na estrutura urbanística e tipologia de moradia das favelas. 

  Trata-se de uma mudança de modelo cultural que ao introduzir novos elementos de infraestrutura  traz consigo outras regras a serem compartilhadas e seguidas como condutas obrigatórias, e uma inscrição tributária na taxação de acesso e consumo de infraestrutura e seus serviços que conduzem a novas práticas cotidianas, mas que são processos necessariamente lentos e que envolvem a compreensão do que se passa e obter a aderência dos moradores a este processo e a este âmbito, sem que tenha existido efetiva consulta e fóruns de participação democráticos para tal.

   A introdução  de infraestrutura compondo redes e serviços de água (e esgoto) trata-se de uma cultura que está sendo trazida mas não traduzida para a população de baixa renda, que inclusive sequer recebe instruções de como fazer uso de algo que nunca usaram, ou usaram na invenção do improviso . Os moradores, por vezes, reagem reativando suas redes alternativas, não aceitando o elo com a rede oficial por esta não estar de acordo com suas práticas cotidianas cristalizadas, e não atendê-la de acordo   com suas necessidades.

  Se observa, assim sendo, a construção de uma indefinição entre público e privado, a configuração de rimos desiguais e difusos de ações ora para valorizar o privado quando a infraestrutura implantada se efetiva para as atividades da moradia, ou quando funcionam com regularidade, ora para inserir os moradores no público para continuar as se prover de água e esgoto se ainda não contemplados pela intervenção pública, ou quando existem falhas na operação e manutenção das redes instaladas.

  No caso da favelas o Estado acredita que ao implantar estes dispositivos os moradores poderiam ser “automaticamente” inseridos num âmbito urbanizado valorizando-se a dimensão sociocultural do domínio privado, e que os indivíduos absorvam o código de normas e procedimentos da cidade oficial, ao reconhecer no seu lugar as mesmas condições de vida (pelo menos no que toca a água e esgoto) que nas outras partes da cidade. Assim o modelo dos programas, idêntico ao do desenho das redes do restante da cidade, “apagaria” a inserção intermitente na esfera pública para se prover de serviços, se de fato modificasse as condições de vida.

  A dificuldade é que como se trata de programas que tem atingido apenas algumas favelas, e não todas, e muitas vezes até somente parcelas no interior destas, será nas partes onde tem êxito que pode-se observar que cessam os caminhos percorridos para buscar água, levando à uma “ intimização” da vida, com um tempo de vivência mais contínuo mantendo-se aos não atendidos a passagem cotidiana e intermitente para estes entre público e privado.

  As indagações que se colocam com as intenções e intervenções urbanizadoras do    Estado em favelas envolvem a questão sobre se as condições anteriores foram alteradas de forma a compor um novo tipo de espaço em contraste com o âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado e sobre as mudanças culturais pretendidas. As respostas a estas  indagações se o “antes” se transforma no “novo” é que não se apagou plenamente o “antes” nem se estabeleceu tampouco o”novo” por completo. Em âmbitos não-urbanizados ou semi-urbanizados improvisadamente como encontrados nas favelas, a valorização do espaço público se fez em movimentos difusos e em ritmos repetitivos mas desregrados por conta de ações individuais, embora , em determinados momentos, tenha se constituído o público como lugar da ação quando a prioridade da solidariedade comunitária configurou redes clandestinas para se prover serviços de infraestrutura básica alternativa. Estar num âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado possibilitou passagens entre o público e o privado, porosidades entre favela e cidade formal. Mas efeitos da incompletude das intervenções do Estado, que poderia ser pensada também como um processo mas que não é colocada claramente assim por este, são a não dissociação plena entre esfera pública e esfera privada própria de âmbitos urbanizados, mas um conjunto difuso de passagens, porosidades e percursos entre uma e outra no interior das favelas, criando espaços intermediários semi-públicos e semi-privados. Pode se imaginar que manter essas passagens e uma não definição clara entre o que seja público e privado possa incidir numa vida diária mais interessante e intensa já que os moradores transitariam com ritmos e frequências entre a moradia e o espaço público, mas a sinalização que se evidencia é que não se completou a valorização do privado, ou seja a moradia ainda não contém, ou não esta articulada  a todos os elementos básicos para a vida cotidiana não permitindo um trânsito para a equidade social de forma plena e efetiva.

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