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Chão Urbano ANO XXI Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO DE 2021

13/12/2020

Integra:

Chão Urbano ANO XXI Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO DE 2021

Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
 Bimestral

Comitê Editorial
Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ) Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ) Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editora Assistente Júnior
Julia Paresque e Gabriela Hafner 
 IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS Coordenador
Mauro Kleiman
Equipe
Julia Paresque e Gabriela Hafner 
Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares.

Índice

NA PRAÇA, À DERIVA: CARTOGRAFANDO O COMUM NA PRAÇA DA LIBERDADE - BELO HORIZONTE/MG. ADRIFT AT THE SQUARE: MAPPING THE COMMON AT THE PRAÇA DA LIBERDADE – BELO HORIZONTE/MG.
 

EN LA PLAZA, A LA DERIVA: CARTOGRAFANO EL COMÚN EN LA PRAÇA DA LIBERDADE – BELHO HORIZONTE/MG.

 

 

 

NA PRAÇA, À DERIVA: CARTOGRAFANDO O COMUM NA PRAÇA DA LIBERDADE - BELO HORIZONTE/MG. / ADRIFT AT THE SQUARE: MAPPING THE COMMON AT THE PRAÇA DA LIBERDADE – BELO HORIZONTE/MG. / EN LA PLAZA, A LA DERIVA: CARTOGRAFANO EL COMÚN EN LA PRAÇA DA LIBERDADE – BELHO HORIZONTE/MG. 

DAMAS, Leando C.[1], MAGALHÃES, Cláudio M. [2]

1 Arquiteto, professor universitário, mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local.Lattles: http://lattes.cnpq.br/9568177341820207. E-mail: lelecanabrava@gmail.com

2 Jornalista, professor universitário, pesquisador do Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário Una. Mestre em Comunicação Social, Doutor em Educação. Lattles: http://lattes.cnpq.br/0369806207587012. E-mail: claudiomagalhaes@uol.com.br

 


RESUMO – O presente trabalho objetiva propor procedimentos metodológicos alternativos para a pesquisa de campo em espaços públicos com o uso de novas tecnologias com base nas proposições de teóricos situacionistas e suas experiências das derivas. Estabelece para tal intento um estudo de caso “piloto”, empírico e experiencial. Estes procedimentos foram então construídos, testados e analisados a partir de sua aplicação na pesquisa de campo que tem como objeto de estudo o espaço público conformado pela Praça da Liberdade (e seu entorno imediato), localizada na região Centro-Sul da cidade de Belo Horizonte/MG.

 

PALAVRAS-CHAVE:Etnografia. Espaço público. Situacionismo. Praças. Pesquisa de campo.

 

ABSTRACT –The present work aims, starting from an empirical case study of experiential character with established from theoretical reflections on the experiences of the drift proposed by the Situationists still in the 1960s and from his ethnographic look to propose the application of methodological procedures in the field research in public spaces from the use of new technologies and collaborative digital mapping. These procedures were tested and analyzed based on their application in the field research that has as object of study the public space conformed by Praça da Liberdade (and nearly surroundings), located in the Center-South region of the city of Belo Horizonte / MG.

 

 

KEYWORDS:  Ethnography. Public place.Situationism.Squares. Field research. 

INTRODUÇÃO

   O presente trabalho objetiva apresentar uma proposta de observação do espaço público urbano a partir de um estudo de caso de caráter empírico e experiencial que teve como o espaço público conformado pela Praça da Liberdade na cidade de Belo Horizonte/MG e seu entorno imediato como objeto. Este espaço é tido por diversos pesquisadores com um espaço público notório na capital mineira, propor diretrizes e procedimentos metodológicos com vistas a subsidiar pesquisas de campo análogas, lançando mão de procedimentos metodológicos específicos e do auxílio de novas tecnologias para cartografar o espaço urbano “dinâmico” sob um olhar etnográfico.

  O estudo de caso realizado valeu-se então de uma perspectiva alternativa para a coleta de dados dinâmicos, ressaltando-se que a pesquisa de campo aqui é vista como uma das etapas das metodologias de investigação científica, sendo um dos vários procedimentos possíveis para coleta de dados e por meio da qual os procedimentos aqui propostos puderam ser colocados em prática e à prova.

  A partir da literatura que trata do tema de estudos de casos experienciais alicerçados na cartografia errante (deriva situacionista) utilizou-se de múltiplos aparatos tecnológicos para a coleta de dados simultâneos e dinâmicos, visando maior “liberdade” o observador-pesquisador durante sua observação em campo, de modo a amplificá-la.

 Como resultado do presente estudo de caso, objetivou-se:analisar a pertinência e praticidade dos procedimentos experimentados na coleta de dados em campo e nas etapas de análise, tratamento e compartilhamento dos dados coletados; elaborar de diretrizes (em forma de roteiro) que possam ser utilizadas por docentes de cursos de arquitetura e urbanismo na proposição de “derivas cartográficas” como opção para pesquisas de campo. Tais procedimentos foram “testados” no estudo de caso como forma de experimentá-los como meio de coleta e armazenamento de dados oriundos da observação direta simples, cuja diferenciação em relação aos processos tradicionais de cartografia se dá em razão da combinação de estratégias escolhidas.

 

 

A deriva como gênese da pesquisa de campo experiencial

 

  A deriva pode ser descrita mais como uma estratégia de abordagem do espaço urbano do que como uma técnica, abordagem esta proposta inicialmente pelos situacionistas já em meados da década de 1950, com origens na crítica ao surrealismo e ao funcionalismo modernista. Em seu artigo, Breve Histórico da Internacional Situacionista – IS, Jacques (2003) destaca Guy-Ernest Debord (escritor cuja obra apontava nítida influência marxista) como um dos principais nomes desse grupo, o fundador da IS, juntamente com Jacques Fillon, os quais comentam a técnica da deriva:

 

As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. [...] O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. (DEBORD; FILLON, 1954 apud JACQUES, 2003, s.p.).

 

Em entrevista concedida para Kristen Ross, Lefebvre (1983), que não só era contemporâneo dos situacionistas, como com eles dialogava e possuía ideias bastante convergentes, comenta sobre a experiência da deriva:

 

[...] A experiência consistia em interpretar aspectos diferentes ou fragmentos da cidade simultaneamente, fragmentos que só podem ser vistos sucessivamente, da mesma forma que existem pessoas que nunca viram certas partes da cidade (LEFEBVRE, 1983, s.p.).

 

Silva et al. (2008), pesquisadores da área da Comunicação Social da UFMG, relatam em seu artigo a experiência da utilização da técnica da deriva cartográfica, cujas bases apoiam-se na deriva situacionista, que foi utilizada no Hipercentro de Belo Horizonte. Sobre os instrumentos utilizados para a coleta de informações, eles citam as gravações em áudio e vídeo durante a deriva, complementados por pesquisa em arquivos e na Internet. Muito embora esses autores tenham feito alertas acerca das limitações e “traduções” impostas por esses aparelhos técnicos - ainda que operados pelo pesquisador - a equipe de pesquisa justifica sua utilização pela eficiência prática:

 

O resultado é uma maior variedade de materiais sonoros e visuais, mais condizentes com a diversidade de usos e apropriações de um espaço como o Hipercentro. Tais procedimentos também parecem mostrar, de forma mais adequada e simples, o caráter fragmentário e relativo dos registros técnicos (SILVA et al., 2008, p. 6, grifo nosso).

 

Apesar de denominarem a técnica utilizada de deriva cartográfica, Silva et al. (2008) propõem-se a um registro de cunho mais narrativo que descritivo no que denominaram “mapas narrativos” na busca da experimentação de ambiências urbanas, as quais remeteriam à ideia situacionista:

 

As ambiências abrigam as situações que são interações entre sujeitos, nas quais a comunicação acontece. As interações podem se dar em copresença ou com marcas deixadas pelos sujeitos nos diferentes momentos. Cabe aqui uma aproximação com a ideia situacionista, não no sentido de revolucionar o cotidiano, mas na perspectiva de explorar possibilidades dos lugares (SILVA et al., 2008, p. 11).

 

Outro aspecto que merece destaque no trabalho dessa equipe foi o fato de que a metodologia de campo utilizada coloca o observador como sujeito e objeto da própria observação, o que parece ser muito mais uma vantagem que uma negação à figura do pesquisador observador:

 

Em vez de observar os fenômenos sociais por si, busca-se perceber de que forma estes constroem significados para os habitantes – passantes e ficantes– da cidade. O pesquisador não se exclui do conjunto, participando também desses processos. Essa postura possibilitou uma imersão na experiência de uma cidade viva. As relações entre as pessoas no espaço urbano, bem como a ocupação da cidade e os usos e apropriações das ruas, quarteirões, etc. são interessantes como os meios pelos quais os habitantes de uma cidade vivenciam-na, atribuindo sentidos múltiplos a essa vivência (SILVA et al., 2008, p. 3, grifo nosso).

 

Pretendeu-se, portanto, considerar a abordagem da deriva situacionista sob uma perspectiva etnográfica, na qual o observador busca, mais do que as identidades dos sujeitos urbanos, ser afetado por eles. Na etnografia, a teoria e a prática mostram-se inseparáveis: mais que uma metodologia per si, entende-se aqui a etnografia como uma prática que, em campo, será perpassada de forma recorrente pela teoria - a “teoria vivida” - ideia esta defendida por Peirano (2008, p. 3), quando destaca que “[...] no fazer etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas e nos nossos dados”.

  Partiu-se então do pressuposto de que a deriva não deveria ser tratada de forma isolada das demais técnicas que serão utilizadas, pelo contrário, é apenas uma forma de olhar mais de perto – e de dentro - o outro, num mergulho mais prolongado e profundo para um “acercamento” como propõe Magnani (2002, p.17), para quem “o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos”.
  Ao se adotar a técnica do urbanismo errante, pretendeu-se “escutar” o urbano e registrá-lo por meio de diversos métodos de coleta de dados, dentre as quais: anotações, croquis, fotografias sequências, áudio e vídeo. Sua aplicação define-se por uma observação em movimento “de baixo e de dentro”, a partir da observação in loco, buscando apreender e compreender o outro (transeunte) a partir da espontaneidade de suas ações no espaço urbano estudado.

 

 

METODOLOGIA

 

    Para fins de observação do espaço conformado pela Praça da Liberdade e seu entorno imediato, parte-se da premissa de que as praças são espaços livres, de uso público, distintos de outros espaços, como parques e jardins públicos. Interessa observar esse espaço como lugar propício (ou não) à socialização, contemplação e outros usos diversos, tais quais: descanso, passagem, atividades esportivas – apenas para citar alguns – a fim de verificar as práticas socioespaciais neles estabelecidas.

 

   Durante as observações em campo, foi feita a utilização de instrumentos de registros audiovisuais (áudio, vídeos e fotografias) em conjunto com as bases cartográficas (plantas) da praça. A título de se buscar facilitar as anotações para o registro das atividades observadas na praça, foi elaborada uma “tabela de atividades” com legendas pré-estabelecidas que facilitassem as anotações. Os instrumentos de registro, por sua vez, foram aplicados por razões e com finalidades ora distintas, ora complementares, conforme descrito a seguir:

 

- Registro no “diário” (planta baixa): o observador, parado em um local de onde poderia observar as práticas com certa tranquilidade e com facilidade de fazer anotações no mapa (planta), as quais normalmente eram complementadas por fotos no momento seguinte ou por alternância entre as anotações e fotos.

 

- Registro fotográfico: realizado através do caminhar pela praça e em alguns deslocamentos no entorno destas, alternando-se deslocamentos e paradas para registro de imagens que retratassem usos e apropriações dos (e nos) espaços.

 

- Registro em vídeo: o observador em movimento, ora segurando a câmera do celular, ora utilizando-se de uma câmera GoPro® fixa ao corpo para que pudesse também observar os arredores.

 

- Registro em áudio: complementar aos demais, em ocasiões nas quais as anotações tivessem alguma restrição, sendo útil para abreviar o tempo despendido em anotações, ou mesmo em situações de insegurança.

  A maioria das observações foi realizada com o observador parado ou em movimento a pé. Todavia, em algumas situações - sobretudo em razão de segurança -, foram realizadas incursões e observações de dentro de um automóvel, percorrendo a região da praça. Esse procedimento tornou viável a observação dos espaços em horários noturnos, ainda que por períodos mais curtos de tempo.
  As observações dessas práticas socioespaciais consolidaram-se através de diversas incursões ao espaço físico da Praça da Liberdade e em seu entorno imediato, em dias e horários também diversos para que se possibilitasse uma leitura mais ampla do cotidiano, assim como se fez presente o autor em eventos específicos para verificar as interações socioespaciais nessas ocasiões.

  Em suma, o presente estudo de caso objetivou coletar dados através da observação direta simples, imersiva, sendo utilizados diversos instrumentos de registro (coleta de dados);utilizar como unidades de análise: as espacialidades conformadas na (e a partir da) Praça da Liberdade, assim como as práticas socioespaciais nela estabelecidas;analisar as informações coletadas através da descrição do caso, de forma reflexiva, tratando os dados obtidos na pesquisa de campo conjuntamente às informações oriundas do estudo de campo exploratório, a fim de verificar a aplicabilidade e pertinência da metodologia proposta; forneceu subsídios para a elaboração de diretrizes (em forma de roteiro) que possam ser utilizadas por docentes de cursos de arquitetura e urbanismo na proposição de “derivas cartográficas” como opção para pesquisas de campo.

 

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

Estudo de Caso Experimental: a Praça da Liberdade

 

   A seguir serão apresentados os espaços conformados pela Praça da Liberdade de forma a fazer uma aproximação gradual “do alto e de fora”, procurando descrever sua inserção na cidade, sua organização físico-espacial até chegar “de perto e de dentro”, para apresentação dos dados colhidos a partir da pesquisa de campo.

 

Morfologia, localização e articulação com o entorno

 

   Morfologicamente, a Praça da Liberdade poderia ser considerada uma praça-rotatória, uma vez que possui circulação de veículos em toda a sua volta. De acordo com Oliveira (2015, p. 161), uma praça-rotatória “é primordialmente um rotor que soluciona a confluência de uma ou mais vias”. Todavia, m razão das suas atribuições e grandes dimensões, poderia também ser classificada como “praça-quarteirão”.  Oliveira (2015, p.177) explica ainda que as praças-quarteirão, como o próprio nome sugere, “têm uma morfologia configurada como um quarteirão; ou seja, com a forma, a princípio, retangular e com limites bem estabelecidos pelas vias que a circulam”não considerando a autora, entretanto, como excludentes entre si as duas classificações supracitadas.

  Outra característica marcante das praças-quarteirão, segundo a mesma autora, é a forma dos caminhos e disposição dos canteiros nesse tipo de praça. Esta praça caracteriza-se por ter, nos caminhos e canteiros, a articulação entre espaços de passagem e espaços de permanência, criando micro espacialidades que podem ser convenientes para determinados usos e ainda colaboram para a coesão de determinados elementos construtivos e marcos visuais que, eventualmente, existam. Auxiliam ainda na consolidação dessas micro espacialidades o arranjo do mobiliário, a paginação do piso e a disposição de jardins, canteiros e árvores. Assim sendo, as características da Praça da Liberdade indicam que ela é marcada, sobretudo, por características mais afins às praças-quarteirão:

 

A Praça da Liberdade poderia ser considerada uma praça-rotatória, mas não o é porque possui dimensões maiores do que as que se encontra comumente em rotores, e ainda carrega grande complexidade no que diz respeito ao número de micro espacialidades, desvencilhando-se da força que o ponto central do rotor estabelece no desenho das praças-rotatórias. O quarteirão que conforma a praça se insere no tecido urbano de maneira a se confundir com o espaço livre da rua sendo quase compreendida como uma continuidade dos passeios. Na medida em que serve de conexão e abriga edifícios históricos significativos, a praça acaba por permitir diversos percursos internos, servindo, inclusive, como atalho para se cruzar, a pé, entre ruas paralelas (OLIVEIRA, 2015, p. 183).

 

   A Praça da Liberdade localiza-se na Região Centro-Sul da cidade de Belo Horizonte/MG tendo ocupação do solo e usos diversificados em seu entorno: comércios variados, edifícios residências, serviços, instituições de ensino, entre outros. A praça é delimitada pelas Avenidas Brasil, Bias Fortes, Cristóvão Colombo e João Pinheiro, além da Rua Gonçalves Dias, sendo estas as principais vias de acesso, conforme apresenta a imagem (figura 1) abaixo:

 

Figura 1: Praça da Liberdade: inserção urbana e vias de acesso

 

 

Fonte: GOOGLE MAPS (2018, editada pelo autor).

 

   A principal vista da praça, comumente encontrada em cartões postais e fotos de divulgação, é a que representa a chegada pela Avenida João Pinheiro, onde o reforço da perspectiva é dado pelas palmeiras imperiais que ladeiam a alameda central da praça, enquadrando o Palácio da Liberdade. Essa alameda, apesar de ser um elemento que separa fortemente a praça em duas metades quando vista do alto, no nível do observador, ela não parece um elemento de ruptura. Merece destacar que essa alameda hoje é de uso exclusivo de pedestre, mas já fora da via de tráfego de veículos.

 

 

Os edifícios e a praça

 

   Em relação às edificações do entorno imediato à praça, o estilo predominante é o eclético, representado pelo Palácio da Liberdade e as antigas secretarias de estado, além dos icônicos representantes do estilo moderno (Edifício Niemeyer) e pós-moderno (Rainha da Sucata). Mais recentemente, algumas das edificações ecléticas sofreram intervenções arquitetônicas (figura 2), a fim de abrigar o Circuito Cultural Liberdade, conforme descrito a seguir:

 

[...] a arquitetura pós-moderna de Éolo Maia e Sylvio de Podestá; e intervenções contemporâneas, convertendo as edificações em espaços culturais formando o Circuito Cultural Praça da Liberdade, entre elas o Espaço do Conhecimento TIM UFMG, projetado por Jô Vasconcellos, e o Museu das Minas e do Metal, projetado por Paulo Mendes da Rocha e Pedro Mendes da Rocha. (ARQUITETOS ASSOCIADOS, 2018, s. p.).

 

Figura 2: Praça a Liberdade, intervenções contemporâneas (ao centro)

 

Fonte: o autor (2018).

 

Essa variedade de estilos arquitetônicos transforma o espaço em uma espécie de “museu a céu aberto”, um verdadeiro “cenário”, onde as obras são as próprias edificações que proporcionam uma “aula” sobre os estilos arquitetônicos mais representativos da cidade de Belo Horizonte, simbolismo este ainda mais enfatizado com a recente criação do Circuito Cultural Praça da Liberdade.

  A relação entre os edifícios e a praça, a despeito de haver vias de circulação de veículos em toda a sua volta, faz-se de forma acolhedora, quer seja pela proximidade destes com as vias, ou ainda pelo fato das suas imponentes escadarias - no caso das edificações ecléticas - abrirem-se às calçadas à frente de grandes portas que dão acesso às edificações.

  Observou-se que, durante o período em que as edificações estão abertas ao público, o uso dessas escadarias restringia-se basicamente ao acesso às edificações, não sendo observadas pessoas assentadas ou deitadas nesses espaços - apenas, vez por outra, há pessoas ali aparentemente esperando por alguém. Já nas visitas realizadas no período noturno, outro uso mostrou-se presente em algumas escadarias, especialmente quando as edificações estão fechadas: jovens reúnem-se regularmente nesses espaços e ali conformam seu próprio território de sociabilidade, quer seja para conversar com os amigos, beber ou tocar músicas.

 

 

O cotidiano da praça

 

   A Praça da Liberdade apresenta usos bastante variados, sobretudo pelas suas dimensões e desenho dos jardins e fontes que favorecem a formação de micro espacialidades e apropriações as mais diversas. Também, em eventos e ocasiões, como no período de Natal, a praça transforma-se, conforme será apresentado mais adiante. Destaca-se que, no período diurno, a maior parte dos registros na Praça da Liberdade fora feita por descrição em áudio e anotações no mapa (diário de campo).

  Durante os dias de semana, observou-se que as atividades mais recorrentes são: a corrida, a caminhada, a contemplação, o descanso e o namoro, além das pessoas que apenas transitam pela praça a caminho de outro destino. A preponderância de um uso em relação ao outro, porém, varia ao longo do dia, assim como a quantidade de pessoas que frequenta a praça. Observou-se ainda que a quantidade de pessoas que frequenta a praça também se altera ao longo do dia e, sobretudo, nos finais de semana e eventos especiais.

  Nas incursões realizadas durante a semana, também se percebeu que a caminhada e a corrida, por exemplo, são atividades que reúnem mais pessoas no início da manhã e ao final da tarde, sendo ainda observado que no início da manhã a caminhada é preponderante e os usuários aparentam mais idade, situação esta se invertendo no final de tarde e com a chegada da noite.Pôde-se perceber outra atividade relativamente comum na praça especialmente no início da manhã, final da tarde e aos finais de semana que é o passeio com cães.

   Observou-se durante o dia que a praça é utilizada frequentemente para transpor um percurso. Esse dado é interessante pelo fato de que as pessoas observadas que fizeram esse tipo de trajetória geralmente percorriam as extremidades da praça. Também foram observadas, vez por outra, pessoas que percorriam a praça, num percurso não retilíneo, mas não permanecia no local, seguindo seu trajeto, o que indica a possibilidade de que essas pessoas observadas tenham agido assim pelo simples gosto de caminhar em um ambiente agradável em meio ao caos urbano.

  Junto às edificações, era comum a presença de comerciantes ambulantes próximos às entradas dos museus - especialmente do CCBB - e pontos de ônibus. Também foi observada, em mais de uma ocasião, a presença de um pipoqueiro na esquina com a Rua Gonçalves Dias, junto à antiga Secretaria da Viação e Obras.

 

   Durante o período diurno, notou-se, em algumas ocasiões, a permanência de pessoas sozinhas, lendo, descansando e até mesmo ouvindo música. Em menor número, foram encontradas pessoas em grupos, à exceção de pessoas idosas com seus cuidadores, assim como também foram percebidas babás com crianças pequenas ou bebês. Destaca-se ainda um ligeiro aumento na quantidade de pessoas que permanecem na praça no horário de almoço, especialmente lendo ou descansando, sendo encontradas mesmo pessoas deitadas nos bancos ou na grama.

 

 Entre o final da tarde e o período noturno, a atmosfera da praça modifica-se. Em geral, há mais movimento nos museus e a praça torna-se “mais ativa”. Nesse horário, é comum observar dezenas de pessoas caminhando e correndo, sendo alguns outros usos reduzidos, como a leitura e o passeio de idosos. Todavia coexistem nesse horário, além da caminhada e da corrida, diversas outras atividades em ação, dentre as quais: o passeio de bicicleta, o passeio com o cão, a música, o namoro, apenas para citar algumas.

  É interessante notar que algumas atividades desenvolvem-se em locais mais ou menos específicos: o casal com os cães procuraram um lugar que lhes garantisse a maior visibilidade de seus pets; o casal de hippies vendia seu artesanato próximo ao acesso do coreto, buscando maior visibilidade de seus produtos; adolescentes passavam de bicicleta no perímetro externo da praça que é mais retilíneo; casais de namorados procuravam um lugar mais recluso para ficarem mais à vontade.

 

 

Natal na Praça da Liberdade

 

   Em incursões realizadas, no período de dezembro de 2017, terça e quinta-feira no períodos do anoitecer, observou-se que o as principais atividades realizadas na praça eram: a caminhada; o passeio, a corrida e a contemplação das luzes e instalações de natal. Merece destacar que a corrida e a caminhada são atividades recorrentes e marcantes nessa praça - que em seus primórdios era mais dada ao footing - especialmente no início da manhã e ao cair da tarde. Todavia, nesse dia, enquanto a luz do Sol desaparecia, outros usos despontavam e as duas atividades mais presenciadas na praça reduziam-se quase que por completo.

   Na ocasião da visita de terça, faltavam apenas duas semanas para a chegada do natal e a iluminação da praça já estava inaugurada.  Nesse período, a Praça da Liberdade apresenta um fluxo atípico de visitantes, assim como a apropriação dos espaços e atividades ali realizadas também são distintas das que são observadas no cotidiano, uma vez que muitas pessoas vão até o local especialmente no intuito de ver a iluminação cênica.  Nos bancos, também se viam amigos reunidos em uma conversa, casais de namorados e ainda um grupo de amigos preparando-se para uma roda de música.

   Observou-se, nesse dia – conforme esperado -, que esse grande fluxo de pessoas atrai consigo outros usos, especialmente no que diz respeito à variedade – e quantidade - de ambulantes presentes: pipoqueiros, vendedores de algodão doce, de balões, de pequenos brinquedos e artesanato - e o Papai Noel, é claro, não ficou de fora da lista de observados. Nas proximidades da praça, era ainda possível perceber a presença de foodtrucks, aproveitando o percurso dos visitantes.

  No Coreto - um dos elementos de destaque da praça - também havia uso: como de costume, especialmente ao fim das tardes e finais de semana, jovens ocupam a escadaria conversando e observando o movimento. A presença de policiais e guardas municipais é também reforçada nesta época, mas não parece ser na mesma proporção do aumento do público visitante. Todavia, o posicionamento estratégico de uma viatura e policiais na alameda central, além de alguns circulando pela praça, atendem às duas funções: o caráter inibidor contra eventuais tentativas de ilícitos e o aumento da sensação de segurança devido à visibilidade do local escolhido. De qualquer forma, a presença de pessoas com atitude despreocupada com seus pertences e a presença de crianças pequenas denota uma sensação de segurança.

  Dois dias depois, na quinta-feira, o cenário por volta das 17 horas na alameda central: estátuas humanas (o que não é comum de se ver na praça), a presença de uma quantidade considerável de pessoas circulando, apreciando as luzes de natal ganhando destaque ao anoitecer e mesmo uma grande quantidade de famílias com crianças pequenas próximas ao Coreto, onde jovens permaneciam a papear.

  À medida que a noite ia chegando, a quantidade de pessoas presentes na praça foi aumentando, possivelmente em razão do interesse em ver as luzes de natal. Aos poucos, praticamente todos os espaços, especialmente a alameda central, estavam tomados. A iluminação não se restringia a esse local, mas devido à perspectiva que essa conforma na praça, que guia o olhar ao Palácio da Liberdade (também iluminado), este é sempre escolhido para destaque. Na alameda central, não há nenhum tipo de mobiliário urbano e os bancos da praça são em número muito inferior ao público presente e, por esse motivo, as pessoas utilizam-se do desnível entre a alameda central e o piso das duas metades da praça para assentar-se.

 

 

Eventos

 

   Nos últimos anos, a Praça da Liberdade recebeu inúmeros eventos de diversas temáticas: ciência, cultura, gastronomia – apenas para citar alguns - dentre os quais: Inova Minas, Exposição Jardins Móveis, Festival da Gentileza, Virada Cultural, Projeto Arte no Prato Gourmet. Em um dos eventos observados, o evento Inova Minas 2017, ocorrido em um sábado, percebeu-se a presença de pessoas de variadas idades, desde crianças, famílias, jovens e pessoas mais idosas. Na ocasião, ao contrário do que usualmente verificou-se em outras visitas durante a semana, as escadarias das edificações ecléticas foram bastante utilizadas.

 

  Os comerciantes ambulantes, regulares ou não, viam-se presentes em vários locais do evento, vendendo pipoca, bebidas (figura 3-37), guloseimas e, até mesmo, artesanato. Durante o tempo de observação do evento, aparentemente não havia nenhum constrangimento ou represália à presença desses vendedores. Interessante que as pessoas pareciam se sentir à vontade, utilizando inclusive a calçada para uma refeição junto às edificações históricas. Esses espaços entre a rua e a edificação criavam certo grau de privacidade. Os próprios vendedores ambulantes auxiliavam nessa formação de uma micro espacialidade.

  Apesar da convivência saudável entre passantes, ambulantes e visitantes do evento, logo ali, há alguns metros do local, via-se estampada a diferença, a segregação. Utilizando-se do anexo da Biblioteca Pública como abrigo, pessoas em situação de rua acampavam. Durante todas as incursões realizadas à Praça da Liberdade, havia a presença destas pessoas no local.

 

CONCLUSÃO

  Este trabalho constituiu-se da proposição de uma abordagem alternativa para a pesquisa de campo com vistas à observação direta simples (imersiva) em estudos que tratam de espaços públicos, sobretudo praças. Para tal intento, primeiramente, apresentou-se uma revisão da perspectiva situacionista que, já nos anos 1960, propunha uma forma distinta de se observar a cidade. Em seguida, foi proposta uma metodologia que se utiliza de instrumentos e técnicas de registro com o apoio de novas tecnologias e esta aplicada em um estudo de caso experimental, tendo como objeto de análise a Praça da Liberdade e seu entorno imediato.

  Para tais fins, aqui se propôs o uso das novas tecnologias aplicadas na pesquisa de campo, quais sejam: a fotografia digital e a gravação em áudio e vídeo, que se apresentaram como meios que agilizam as observações em campo e permitem um número maior de dados coletados em menor tempo. Assim, mostram-se registros eficazes para auxiliar a observação do pesquisador e, em alguns casos, permitem coletas simultâneas de dados, ampliando o espectro da apreensão das práticas socioespaciais por parte do pesquisador. Outra contribuição dessas novas tecnologias deu-se na fase de descrição do caso, uma vez que os dados coletados possibilitam “rememorar” o observado.

   A partir da experiência advinda desta pesquisa, percebeu-se que uma deriva bem sucedida começa pelo seu planejamento, desde a limitação das distâncias percorridas, área de percurso e observação, quantidade de pesquisadores e a necessidade de incursões sistemáticas e sistematização dos registros. Algumas sugestões foram relacionadas em um roteiro que resultou do estudo de caso experiencial, sem a pretensão de “regrar” os procedimentos e sim norteá-los. Também foram sugeridas algumas atitudes e procedimentos para o trabalho de campo, sendo que alguns materiais se fazem necessários e/ou são indicados para tornar a coleta de informações mais eficiente e organizada. Por fim, destaca-se que coleta de dados é só um dos propósitos das derivas propostas. Os dados coletados, para que sejam úteis a qualquer análise, precisam ser organizados e armazenados de forma segura e que facilite uma posterior consulta.

   Há ainda que se destacar a questão do limite de registro por parte dos artefatos (câmeras, gravadores e afins) que funcionam como “filtros” da realidade. Aquilo que é fotografado, gravado não é a realidade, mas um recorte dela. Todavia, istonão parece ser uma exclusividade deste tipo de registro, já que a própria observação pelo pesquisador já tem esse viés e a operação que ele faz desses artefatos também possui uma intenção, que é característica desse tipo de pesquisa. Merece ainda notar que há certo constrangimento das pessoas fotografadas, gravadas e isto, por vezes, gerou até mesmo a solicitação por parte de alguns para que o pesquisador apagasse os dados coletados.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ARQUITETOS ASSOCIADOS. Redesenho Urbano das Áreas Públicas do Entorno da Praça da Liberdade. Disponível em: . Acesso em: 02 jun. 2018.

 

JACQUES, P. B.. Breve histórico da Internacional Situacionista – IS. Arquitextos, São Paulo, v. 3, 2003. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2017.

 

LEFEBVRE, H. Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista. Entrevista com Kristen Ross. 1983. Trad. Cláudio Roberto Duarte.  Disponível em: .  Acesso em: 05 out. 2017.

 

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