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Chão Urbano

CHÃO URBANO ANO XX N°5 SETEMBRO/OUTUBRO 2020

24/08/2020

Integra:

 

        Editor            

Mauro Kleiman  

Publicação On-line

 Bimestral  

Comitê Editorial  

Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) 

Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Cra. Em Planejamento Urbano e Regional)  

Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF
Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ           Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)  

Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)  

Editora Assistente Júnior  

Julia Paresque  

IPPUR / UFRJ  

Apoio CNPq  

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS  

Coordenador  

Mauro Kleiman  

Equipe  

   Julia Paresque  

  Pesquisadores associados 

 André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares 

Indíce  

 “Subúrbios” e “arrabaldes” no olhar dos viajantes do XIX

 

 

 

“Subúrbios” e “arrabaldes” no olhar dos viajantes do XIX

                                     Leonardo Soares dos Santos¹ 

     A chegada da Família Real ao Rio de Janeiro em 1808 abriu uma nova era em termos das explorações científicas estrangeiras não apenas na cidade como no território da Colônia como um todo, pois, a partir desse evento, as incursões desses viajantes se tornariam mais frequentes, curiosos que estavam por desbravar aspectos da flora, da fauna, da vida rural e urbana de nosso território. Como lembra Bruno A.G. Moreira, no afã de conhecer os exotismos da Colônia, os viajantes produziram relatos condicionados por várias questões pessoais e institucionais.² Os pré-conceitos e referenciais culturais próprios davam um colorido especial aos seus relatos. Tudo isso é verdade. Interpretação e observação se misturavam em suas descrições, uma se confundindo com a outra. ³ Mas nem todos os referenciais operados pelos viajantes resultavam em relatos depreciativos. Um exemplo é a noção de “subúrbios” e “arrabaldes”.
    Como veremos mais adiante, tratava-se de termos que no caso da cidade do Rio de Janeiro faziam referência às áreas mais procuradas por estes viajantes, devido a suas belezas e atrativos climáticos como as temperaturas amenas. Para o viajante que se estabelecia na cidade do Rio, os “subúrbios” e “arrabaldes” da cidade ofereciam as melhores condições de vida. E eles explicavam a razão disso, conforme veremos mais adiante. Lendo alguns registros de época não deixa de ser interessante observar que em boa parte do século XIX, os termos utilizados com mais frequência para designar as áreas mais afastadas da área urbana eram “subúrbio” e “arrabalde”. E quase todos se referem a um território bem circunscrito: ele abrangia as freguesias da Glória, Catete, Tijuca e Botafogo. Os relatos de viajantes estrangeiros que passaram pelo Rio nas primeiras décadas do século XIX são boas fontes a esse respeito.

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¹Professor de História da Universidade Federal Fluminense/Campos dos Goytacazes, doutor em História (2009) pela mesma universidade. Tem grande interesse pelos temas da História Urbana e Subúrbios. 
² MOREIRA, Bruno Alessandro Gusmão. “Os relatos dos viajantes estrangeiros no Brasil Oitocentista: possibilidades historiográficas”. Texto apresentado no Ciclo de Estudos Históricos da UESC, . Disponível em: http://www.uesc.br/eventos/cicloshistoricos/anais/bruno_alessandro_gusmao_moreira.pdfhttp://ww w.uesc.br/eventos/cicloshistoricos/anais/bruno_alessandro_gusmao_moreira.pdf. Acesso em: 12/07/2020. p. 2.
³ Ver a esse respeito LOPES, Fabrício Antonio ; MILAGRES, Alcione Rodrigues ; PIUZANA, Danielle; MORAIS, Marcelino Santos de. “Viajantes e Naturalistas do século XIX: A reconstrução do antigo Distrito Diamantino na Literatura de Viagem”, Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011.

     Desde sempre, esses arrabaldes eram vistos com grande interesse. Um dos primeiros a fazê-lo no século XIX seria John Luccock, que viveu no Brasil entre 1808 e 1818. Sobre uma parte da cidade do Rio, ele anotaria em tom negativo: “nos arrabaldes da cidade as ruas são sem calçar, as casas de um só pavimento, baixas, pequenas e sujas e tanto portas como janelas são de rótula e abrem-se para fora, com prejuízo dos transeuntes”.⁴ 
    O botânico, naturalista e viajante francês Augustin François César Prouvençal de SaintHilaire começou a sua jornada de estudos no Brasil em junho de 1816. Trajetória essa iniciada exatamente na cidade do Rio de Janeiro. Ficaria no país até 1822. Como desdobramento de seu esforço investigativo, ele chegaria a reunir 30 mil amostras, entre espécies de plantas e de animais. Desse último conjunto, havia 16 mil insetos, 135 mamíferos e 2 mil aves, além de um sem número de répteis, peixes e moluscos. Com igual afinco e interesse, o francês nos deixou detalhada descrição dos “arredores” da cidade. Como o interesse de Saint-Hilarie era se dirigir para as Minas do interior da Colônia, ele acabaria tomando um trajeto que o levaria Inhaúma, assim descrita por ele. Note-se que apesar de se tratar de um povoado bem afastado da “cidade ”, Saint-Hilaire mostra-se impressionado pelo número de habitantes e pela rica dinâmica do lugar:

     Tendo caminhado durante duas léguas avistamos a igreja parochial de Inhaúma ou S.Tiago d nhaúma, pequeno edifício construído isoladamente sobre uma plataforma de onde se descortina um panorama muito agradável. [...] No interior do Brasil caminham-se, às vezes, sessenta léguas e mais ainda, pelo território de parochias onde existe apenas um ilhar ou dois de habitantes. Mas o que prova quanto os arredores do Rio de Janeiro são já bastante povoados, é que a parochia de Inhaúma, cujo raio não é maior que meia légua, conta duzentos fógos e mil e seiscentos habitantes adultos. Essa parochia, como varias outras nas proximidades do Rio de Janeiro, não é formada por uma povoação propriamente dita, e se compõe de casas esparsas pelo campo. Nas localidades retiradas do interior, pelo contrario, não há parochia sem povoação, e a razão dessa diferença pode ser, parece-me, explicada facilmente. Em torno ao Rio de Janeiro as terras se dividiram mais que em qualquer outra parte; cada pedaço de terreno passou a ser habitado, e quando o districto atingia população sufficiente, passava a constituir uma parochia independente.⁵ 

    Logo depois, atinge Irajá, onde percebe que a economia local é muito mais dependente dos “engenhos de assucar”, notando ainda uma certa correlação com a paisagem cujo grau de intervenção humana é menor do que encontrado em Inhaúma. Eis como ele comenta tais aspectos:

   Si próximo ao Rio de Janeiro podemo-nos julgar nos arredores de uma das maiores cidades da Europa, essa ilusão em breve se dissipa. À medida que nos afastamos de Inhaúma vê-se cada vez menos habitações, as vendas raream, encontram-se menos terrenos cultivados, os bosques tornam-se mais comuns, e como cada vez mais nos aproximamos das montanhas, o aspecto da região toma caracter mais grave. Até Inhaúma, o caminho é ladeado de sebes artificiaes, formadas por casa mimosa encantadora que está hoje em dia tão espalhada em volta do Rio de Janeiro. A partir de Inhaúma, taes cercos são já constituídas por plantas indígenas: são as espécies mais comuns, as que escaparam com certeza, à destruição das mattas virgens, principalmente diversas espécies de bigmonenceas, baahinias, uma cordia de odor fétido [...] e a pitangueira, myrtacea que caracteriza os terrenos arenosos e visinhos do mar. A cerca de duas léguas do Rio de Janeiro acabam as chácaras ou casa de campo, e começam os engenhos de assucar. São apenas em numero de cinco na parochia de Inhaúma, e já em Irajá atingem a doze, e onze na de S. Antonio da Jacuntiga, parochia que vem após Irajá, e cujas terras baixas e húmidas convêm perfeitamente à cultura da canna de assucar. Dá ahi três cortes consecutivos, em seguida se deixam repousar as terras durante quatro anos, a menos que não a adubem, o que começam a fazer os lavradores que dispõem de pouco terreno.⁶ 

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⁴ LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 25.

⁵SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Geraes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. pp. 60-61

⁶ Ibidem, pp. 63-64.

     Quase na mesma época de Saint Hilaire, seria a vez dos prussianos Theodor Von Leithold e Ludwig Von Rango falarem sobre os arrabaldes cariocas. Eles passaram pela cidade em outubro de 1819, animados pela possiblidade de estabelecer uma fazenda de café nos seus arredores. O que acabou não ocorrendo, já que os dois não suportariam o calor inclemente que castigava a cidade. O sonho durou apenas quatro meses, ao fim do qual os dois regressam à Europa. Em que pese a desilusão, os dois assim se refeririam aos seus “arrabaldes”, de maneira muito mais detalhada e positiva do que Luccock:
    A cidade não tem portas, mas aprazíveis arrabaldes, que lhe dão considerável extensão. O Catete, onde moram meu cunhado e vários ministros e cônsules estrangeiros, é um bairro bem mais saudável do que o centro e consiste numa única rua, larga e não pavimentada, que conduz a uma encantadora enseada, distante apenas um quarto de hora, toda rodeada de montanhas e de agradáveis chácaras habitadas por ingleses. Também a rainha ali possuía uma casa de campo chamada Laranjeiras. O Catete costuma ser concorrido aos domingos, quando acorrem numerosos pedestres, cavaleiros e carros; também o rei e a família real por aí passam quase diariamente para ir a Enseada e de lá voltar, já que os caminhos interiores são estreitos e incômodos.⁷ 

     Outro importante relato é o de Maria Graham, que viveu no Brasil em partes dos anos de 1821, 1822 e 1823. Sobre o Rio ela comentava: “No outro lado [da cidade], entre o sopé da montanha do Corcôvado, com seus contrafortes e o mar, as boas posições foram ocupadas por deliciosas casas de campo. A linda enseada de Boto Fogo (Botafogo), onde antes só havia pescadores e ciganos, tornou-se em breve um subúrbio arejado e populoso”.⁸  Além de Botafogo, ela conheceria outros “subúrbios”. Um deles, o Catete, ela visitaria no dia 17 de dezembro de 1821.⁹  Quase um ano depois, Graham voltaria a mencionar o “subúrbio do Catete” e se reportaria assim à Glória em 31 de dezembro de 1822:

      Fui à cidade pela primeira vez. O caminho segue através do subúrbio do Catete cêrca de meia milha. Há algumas boas casas de ambos os lados. Os intervalos são preenchidos por lojas e pequenas casas habitadas pelas famílias dos lojistas da cidade. Chegamos então ao outeiro chamado da Glória, do nome da igreja dedicada a N.ªS.ª da Glória, na eminência que domina o mar próximo. O morro é verde, coberto de matas e ornado de casas de campo. É quase insulado e o caminho passa entre êle e outro morro, ainda mais alto, exatamente onde uma abundante fonte deriva de um aqueduto (feita, penso eu, pelo conde de Lavradio, e traz, para esta região da cidade, saúde e refresco das montanhas das vizinhanças.¹⁰ 

   A pintora e escritora inglesa se mostra mais arrebatada por Laranjeiras. As plantações, o grande número de casas senhoriais e senzalas e de trabalhadores escravizados lhe chamam a atenção. No dia 19, ela escreveria em seu diário:

      Passeei a cavalo, ao lado de Langford, por um dos pequenos vales ao pé do Corcovado. É chamado Laranjeiros [Laranjeiras], por causa das numerosas árvores de laranjas que crescem dos dois lados do pequeno rio que o embeleza e o fertiliza. Logo à entrada do vale, uma pequena planície verde espraia-se para ambos os lados, através da qual corre o riacho sobre seu leito de pedras, oferecendo um lugar tentador para grupos de lavadeiras de todas as tonalidades, posto que o maior número seja de negras. E elas não enriquecem pouco o efeito pitoresco da cena. Geralmente usam um lenço vermelho ou branco em volta da cabeça, uma manta dobrada e presa sobre um ombro e passando sob o braço oposto, com uma grande saia. E a vestimenta favortia, algumas enrolam uma manta comprida em volta delas, como os indianos. Outras usam uma feia vestimenta europeia, com um babadouro bem deselegante amarrado adiante. Em torno da planície das lavadeiras, sebes de acácias e mimosas cercam os jardins, cheios de bananeiras, laranjeiras e outras frutas, que cercam cada vila. Além destas, as plantações de café estendem-se até bem alto na montanha, cujos cumes pitorescos limitam o cenário. As casas de campo não são aqui nem grandes nem luxuosas, mas são decoradas com varandas e têm geralmente uma bela escadaria até a casa de residência do dono, junto à qual estão, ou os paióis, ou, as casas dos escravos. Todas têm portão, qualquer que seja a casa, e este portão geralmente conduz ao menos a uma aléia onde se cultivam todas as espécies de flôres.¹¹  

    Quase na mesma época (1819-1820) que os prussianos, o militar inglês Henry Chamberland residiu por dois anos no Rio de Janeiro. Ao fim desse período havia produzido 36 litografias coloridas sobre paisagens da cidade. Uma delas retratava o subúrbio da Tijuca. No texto que acompanha a imagem, Chamberlain assim descreve o lugar:

    Cerca de seis milhas ao Oeste da cidade está situada de aldeia de Andaraí, onde começa a subida às Montanhas da Tijuca por um caminho outrora áspero, cheio de rochas e penhascos, quase intransitável durante a estação das chuvas, melhorado posteriormente, permitindo até a passagem de carruagens. Nesta aldeia vários comerciantes brasileiros ricos possuem vivendas campestres e foram estabelecidas uma fábrica de papel e uma tecelagem e estamparia de algodão, se bem que com pouco sucesso. Esta vista, tirada de uma colina em Mata-Porcos, oferece uma vasta perspectiva sobre o lindo vale do Engenho Velho, onde se distinguem a igreja paroquial de São Francisco Xavier da Aldeia do Andaraí, o caminho já mencionado e os píncaros mais elevados das próprias Tijucas. Uma grande parte desta região montanhosa é patrimônio do Visconde d’Asseca, que, entretanto, poucas vantagens auferia de suas vastas possessões, até que, há bem pouco tempo, vários lotes foram cultivados por emigrantes da Europa, franceses na maioria, que ali iniciaram consideráveis plantações de café, para o que o clima e o solo são particularmente apropriados. Enquanto os habitantes do Rio de Janeiro e das planícies circunvizinhas sofrem debaixo do calor opressivo de um sol tropical, os lavradores destas montanhas (que têm sido chamadas, com certa justiça, a Sintra do Brasil) gozam um clima delicioso, temperado por moderadas e refrescantes brisas. As noites são sempre frescas e o solo fértil, capaz de produzir muitas das frutas e a maioria das verduras da zona temperada.¹²

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⁸ GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. p. 55 
⁹  Ibidem, p. 175.
10 Ibidem, pp. 183-184.
11 Ibidem, pp. 177-178. 
¹² CHAMBERLAIN. Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1943. p. 143

Chamberlain, Henry. Casa de H. Chamberlain no Catete, 1820. 

 


Outro ponto dos subúrbios enaltecido pelo viajante seria Botafogo, “que fica não longe da Glória, constituído principalmente de chácaras à beira-mar, das quais a mais importante é a do Vice-Cônsul da Rússia.” Ebel resolveria estender o passeio, o que lhe possibilitou redigir um detalhado relato desses outros arrabaldes da cidade. A extensão e profusão de plantações e vivendas agrícolas presente na região lhe produz inegável encantamento: 

   Deixando Botafogo, chega-se a uma lagoa fechada por uma coroa de montanhas, cobertas de vegetação, em cujas encostas surgem atraentes e esparsas vivendas, oferecendo a mais bucólica visão. Junto ao Corcôvado, há que, passar-se sob um espigão rochoso que se projeta no espaço, ameaçando cair a todo instante, mas que assim continuará, provavelmente, milhares de anos. No Jardim Botânico, tivemos o prazer de encontrar seu diretor, o Padre Leandro, que teve a gentileza de nos servir de guia. O parque é formado por frondoso arvoredo e ocupa uma vasta extensão. Sebes de cardamomos fazem as vêzes de cêrca. Especialmente exuberante é a fruta-pão que aqui se dá muito bem e em abundância. Sua folha grande e dentada, verde-escuro, lembra a das nossas nogueiras; estavam elas carregadas de frutas também verdes, do tamanho de uma cabeça de criança.14 

  

  

 

Chamberlain, Henry. “Botafogo Bay”. Plate 1. In: Views and costumes of the city and neighbourhood of Rio de Janeiro, 1822. 

  

 


  

Outro militar que esteve várias vezes na cidade do Rio, entre os anos de 1825 e 1835, foi o suíço-alemão Carl Friedrich Gustav Seidler. Contava empolgado: 

    Adiante! Adiante através dos subúrbios, entre os quais já se considera a Glória. Repentinamente nos encontramos no meio dos mais esplêndidos jardins, cercados de altas sebes verdes, através das quais espiam as magníficas vivendas de campo, todas da mesma cor. Sempre adiante, mais adiante, até que o calmo idílio assume caráter dramático com o rugir do mar, cada vez mais próximo. Aqui forma-se uma grande baía, a Praia de Botafogo [sic]; é uma obra-prima da natureza, que se apresenta como prima-dona. Sucedem-se as vivendas, lado a lado, e a arte aqui em toda a parte prestou os melhores serviços de camareira à sua soberba dominadora. Aqui residem, na boa estação, a maior parte dos ministros estrangeiros; negociantes ricos, sobretudo ingleses, alugam as mais lindas vivendas, quando não as adquirem, e costumam às cinco da tarde, fechados os negócios, recolher-se aqui a cavalo, para passarem a noite com a família em Botafogo. Sem dúvida a moda contribui para isso; mas deveras o ar aqui é mais puro e mais saudável do que na cidade abafada, e a vista sobre a baía e os morros fronteiros é realmente pitoresca; até os brasileiros aqui residentes são mais sociáveis do que seus irmãos da cidade. É, em parte, o exemplo dos europeus aqui residentes que a isso os anima e também se imagina que em Botafogo já se está no campo para poder deixar os costumes rígidos da cidade; a influência do ar fresco do mar torna os homens em geral mais cordiais, mais atenciosos e delicados uns para os outros.  

Muitas dessas casas são altamente ricas e de gosto e pelos simpáticos jardins, onde estátuas de mármores atuam tão encantadoramente à sombra da mais pujante vegetação, tomam inteiramente a aparência de vilas italianas. Sem querer, o estrangeiro saudoso da pátria exclama: “Realmente, aqui é bom morar; também eu gostaria de levantar aqui a minha cabana.”15 

 Seidler trabalhava para a família real, naturalmente passaria a frequentar algumas das suas propriedades, entre elas a Fazenda Real localizada em Santa Cruz. Sobre a localidade, ele nos deixaria essa valiosa descrição: 

    A dez léguas do Rio de Janeiro a estrada atravessa a cidadezinha de S. Cruz, pertencente à grande fazenda do mesmo nome, com 4 a 5 léguas quadradas de área, a qual antigamente era propriedade particular do imperador, mas que agora pertence à nação, pois o governo afirma que D. Pedro a adquirira por forma ilícita. O imperador tinha aqui um palácio bastante elegante, que por causa da raça ele visitava frequentemente. Mais de mil escravos, todos pertencentes a ele, estavam sempre entregues ao cultivo dos extensos campos; também lhes competia tratar de uma porção de cavalos, bois, porcos e aves. Todos os produtos de S. Cruz eram diversas vezes na semana expedidos à venda para a cidade e rendiam enormemente ao imperador ávido de dinheiro, que pessoalmente se ocupava com a administração dessa fazenda, nos mínimos pormenores. Aliás D. Pedro, é sabido, empregava muitíssimo mais tempo e atenção na administração da sua fortuna pessoal do que na do Império e tinha muito mais jeito para enriquecer pessoalmente do que para reerguer as finanças do estado, profundamente decaídas. Raia pelo fabuloso o que de prata, ouro e diamantes ele levou consigo ao ser destronado; sem dúvida era o homem mais rico de seu tempo. A estrada atravessa essa propriedade e custou aqui enormes dispêndios porque sobre o solo pantanoso houve que construir em muitos pontos aterrados de seis a oito pés de altura; não obstante quando caem chuvas prolongadas a estrada fica tão má que os cargueiros atolam até a barriga na lama. A cidadezinha mesmo não pode absolutamente ser chamada bonita; consiste numa única fileira de casinhas baixas e mal construídas, geralmente penates de pobreza e desasseio.16 

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14 - Ibidem, pp. 130-131.

15 SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Eleições sob Dom Pedro I, dissolução do Legislativo, que redundou no destino das tropas estrangeiras e das colônias alemãs no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2003. pp. 87-88.

16 Ibidem, pp. 92-93.

17 SCHLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é (1824-1826): Contribuições de um diário para a história atual, os costumes e especialmente a situação da tropa estrangeira na capital do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2000. pp. 195-96.


   O testemunho de Carl Schlichthorst, militar alemão contratado para a guarda de Pedro I, que viveu na cidade em meados da década de 1820 é assaz ilustrativo da maneira com que essa região era descrita: havia uma acentuada tendência em se enfatizar o perfil aristocrático e bucólico do lugar, chamando atenção também para o seu caráter quase rural.  

   A cidade termina na ponte do Catete. Ao longo de sebes e belas casas de campo, o caminho acompanha o mar até onde começa Botafogo, renque de belas residências campestres formando suave curva ao longo da praia. Nos jardins, predomina um gosto que chamam francês e que preferiria fosse mourisco por se adaptar melhor à paisagem. A natureza oferece parques à inglesa que tornam qualquer imitação pueril. [...] As mais belas moradias são construídas um pouco distante da rua, no fundo dos jardins, ao pé dos morros e um tanto acima do nível da praia. A maioria, ao gosto mourisco, com cúpulas, arcos de forma estranha e uma escadaria ligeiramente inclinada à frente.17 

   O clérigo, historiador e escritor irlandês Robert Walsh esteve no Brasil nos anos 1828 e 1829, após ser nomeado capelão da embaixada britânica no Rio de Janeiro. Enquanto esteve na cidade, dedicou-se a desbravar a vida do escravo no país. Walsh era partidário do movimento pela sua abolição. E o irlandês destacaria em várias páginas do seu livro Notices of Brazil in 1828 and 1829Foi nesse contexto que acabou redigindo páginas extremamente elogiosas sobre os subúrbios da cidade. Segundo Walsh, a região era muito procurada por conterrâneos que se fixavam no Rio. Os atrativos apontados do lugar constituíam boas razões para tal procura: 

    A casa tirada para nossa residência ficava inteiramente no outro extremo da cidade e a uma distância considerável. A passagem de um lugar para outro no Rio não está em linha direta; montanhas intervêm literalmente entre uma rua e outra; e, como você não pode escalar seus cumes, deve rodear suas bases. Uma série dessas colinas se aproxima tão perto do mar, deixando apenas um caminho estreito entre elas e a água. Além, existe outro espaço aberto de terreno plano, um pouco semelhante ao que descrevi, e chamado Catete, no qual uma nova cidade foi construída. Uma rua, com casas de um lado e aberta para o mar do outro, conecta os dois; e nesta era a nossa residência. A casa pertencia a um cavalheiro que fora oficial da marinha britânica, mas havia mudado o serviço; e do posto de tenente, foi promovido ao de comodoro no serviço brasileiro. Sua casa correspondia à sua estação e estava apta para a residência de um embaixador no Brasil.18 

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¹⁸  No original: “The house taken for our residence was entirely at the other end of the city, and at a considerable distance. The passing from one place to another in Rio, is not in a direct line; mountains literally intervene between one street and another; and, as you cannot climb over their summits, you must wind round their bases. A range of these hills approach so close to the sea, as to leave only a narrow way between them and the water. Beyond is another open space of level ground, somewhat similar to that which I have described, and called Catete, on which a new town has been built. A street, with houses on one side, and open to the sea on the other, connects them both; and in this was our residence. The house belonged to a gentleman who had been an officer in the British navy, but had changed the service; and from the rank of lieutenant, was promoted to that of commodore in the Brazilian service. His house corresponded with his station, and was fit for the residence of an Ambassador in Brazil.” (WALSH, Robert. Notices of Brazil in 1828 and 1829. London: F. Westley and A. H. Davis, 1830. p 147).
19 No original: “The old city was almost exclusively confined to the narrow space between the hills, extending from the Rua Direita to the Campo de Santa Anna. It now stretches nearly to Bota Fogo on one side, and to S. Christovão on the other, forming a cidade nova; and when the area within these limits is filled up with houses, the city of Rio will be as extensive as any in Europe. Nor is this at all improbable, at no very great distance of time. Already, in the memory of persons residing there, the most extensive and almost incredible accessions have been made to the city; - the whole of the space about the Campo de Santa Anna was a stagnant marsh; it is now drained, and covered with streets; - from the hill of the Gloria to the river Catete, was a sandy plain; it is now a large district of the town, full of houses; - the Mat Cavallos was a rugged thicket, so called from its fatiguing horses; it is now a fine and extensive street. […] From the bridge of Catete to the convent of S. Bento, is a continued avenue of houses, deviating a little from a right line of nearly four miles.” (p. 458-459).


 Na visão detalhada que tinha sobre o território mais amplda cidade e de seus arredores, ele reserva páginas elogiosas sobre a Glória, até porque seria exatamente nesta localidade que ele ficaria residência no Rio de Janeiro: 

   A cidade antiga estava quase exclusivamente confinada ao espaço estreito entre as colinas, que se estendia da Rua Direita ao Campo de Santa Anna. Agora, ela se estende quase até BotaFogo, de um lado, e S. Christovão, do outro, formando uma cidade nova; e quando a área dentro desses limites estiver cheia de casas, a cidade do Rio será tão extensa quanto qualquer outra na Europa. Nem isso é improvável, não há uma distância muito grande do tempo. Já, na memória das pessoas que residem lá, os acessos mais extensos e quase incríveis foram feitos à cidade; - todo o espaço sobre o Campo de Santa Anna era um pântano estagnado; agora está drenado e coberto de ruas; - da colina da Glória até o rio Catete, havia uma planície arenosa; agora é um grande distrito da cidade, cheio de casas; - o Mat Cavallos era um matagal acidentado, assim chamado pelos seus cavalos fatigantes; agora é uma rua fina e extensa. […] Da ponte do Catete ao convento de S. Bento, há uma avenida contínua de casas, desviando-se um pouco da linha direita de quase seis quilômetros.19 

  

Outro cenário que causaria viva sensação no reverendo Walsh é a região que vai da “Baía de Bota Fogo”, o que explica a razão dela ser tão procurada pelos estrangeiros de altos cargos e/ou bens: 

O jardim botânico […] fica a cerca de 13 quilômetros do Rio, e a estrada que leva a ele é muito agradável. Passa pela bela baía de Bota Fogo e pelo belo lago de Rodrigo de Freitas, onde um lado é delimitado pelas magníficas cordilheiras do Corcovado e o outro pelos românticos promontórios da baía e do lago. O jardim é um apartamento rico, com cerca de quinze hectares, dividido em compartimentos por avenidas exóticas, entre as quais a noz de Sumatra é a mais notável.20  

   Em 1833, seria a vez de do artista e diplomata britânico William Gore Ouseley desbravar os subúrbios do Rio de Janeiro. Ficaria na cidade até 1841, desempenhando a função de secretário comercial britânico e, posteriormente, como ministro especial. Nesse tempo ele reuniria uma infinidade de impressões, notas e desenhos, reunidos em 1852 em Description of Views in South America from original drawings made in Brazil, the River Plate and Parana. A parte dedicada ao “subúrbio” de Botafogo revela o quão grande já era o caráter aristocrático da região nos anos 1830:

   Na estrada entre a cidade propriamente dita do Rio de Janeiro e a pequena baía de Botafogo, fica a vila de Mangueiras, assim chamada da avenida dos mangás (ou Anglicé, manga ou manga), levando a ela. Esta casa foi habitada por vários anos pelo Sr. W. Gore Ouseley, enquanto a Chargé d Affaires de sua Majestade no Brasil. Posteriormente, foi ocupada pelo príncipe Adalbert da Prússia, durante sua estadia no Rio de Janeiro; e pelo Exmo Hon. Sir Henry Ellis, quando enviado em missão especial à Corte do Brasil. Esta casa é um bom exemplo da chacra ou villa suburbana do Brasil. Ele possui uma bela vista do país, embora de fato muito mais perto do país, embora de fato muito mais perto da cidade do que muitas das casas ocupadas por membros da Corps Diplomatique, o governo, os comerciantes estrangeiros e outros. O Mangueiras foi construído por um arquiteto italiano. Toda a frente é ocupada por uma galeria de cerca de oitenta pés de comprimento, e a casa, situada na face saliente de uma colina, tem todos os benefícios da brisa do mar durante o dia e da brisa terrestre à noite. O jardim era luxuriantemente plantado com vários tipos diferentes de laranja e limão, banana, romã, palmeira e uma grande variedade de arbustos e legumes, peculiares ao Brasil; possuía, além da planta universal de café, em grande profusão, espécimes da planta do chá, cravo, canela e outras especiarias; araruta, mandioca (da qual é feita a tapioca) e muitas frutas e plantas de origem chinesa e indiana, todas bem-sucedidas no Brasil. 2¹

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20 No original: “The botanic garden […] is situated about eight miles from Rio, and the road leading to it is very delightful. It passes along the beautiful bay of Bota Fogo, and by the fine lake of Rodrigo de Freitas, where one side is bounded by the magnificent ridges of the Corcovado, and the other, by the romantic headlands of the bay and lake. The garden is a rich flat, comprising about fifty acres, divided into compartments by avenues of exotics, among which the Sumatra nut is the most conspicuous.” (Ibidem, p. 480).

21 No original: “On the road between the city proper of Rio de Janeiro and the little bay of Botafogo, is the villa of Mangueiras, so called from the avenue of manga trees (or Anglice, mango or mangoe), leading to it. This house was inhabited for several years by Mr. W. Gore Ouseley, while her Majestys Charge Affaires in Brazil. It was subsequently occupied by Prince Adalbert of Prussia, during his stay at Rio de Janeiro; and by the Right Hon. Sir Henry Ellis, when sent on a special mission to the Court of Brazil. This house is a good specimen of the “chacra” or suburban villa of Brazil. It commands a beautiful view of the country, although in fact much nearer to the country, although in fact much nearer to the city than many of the houses occupied by members of the Corps Diplomatique, the Government, the foreign merchants, and others. The Mangueiras was built by an Italian architect. The whole front is occupied by a gallery of about eighty feet in length, and the house being situated on the projecting face of a hill, has all the benefit of the sea breeze during the day, and of the land breeze in the evening. The garden was luxuriantly planted with several different sorts of orangest and lemons, bananas, pomegranates, palm trees, and a vast variety of shrubs and vegetables, peculiar to Brazil; it also possessed, besides the universal coffee-plant, in great profusion, specimens of the tea-plant, cloves, cinmamon, and other spices; arrowroot, mandioca (from which tapioca is made), and many fruits and plants of Chinese and Indian origin, all of which thrive well in Brazil.” - OUSELEY, William. Description of Views in South America from original drawings made in Brazil, the River Plate and Parana. London: Thomas McLean, 1852. pp. 39-40.

22 To the right on the road from the city to the bay and suburb of Botafogo is the district called Laranjeiras (or the “Orangery”). A good view of the entrance of the harbour and the back of the house of Mangueiras is obtained from this position. Plantations of coffee, oranges, tamarinds, and mangas, occupy the fertile soil of the valley below. The Laranjeiras road is one of those that lead to ascent of the Corcovado. It follows the winding course of a mountain brook, and the scenery is varied and beatiful. On either side are country houses, cottages, gardens, and “chacras” or villas, in their enclosed grounds. - Ibidem, p. 41. 23 GARDNER, George. Viagens no Brasil. Principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836- 1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 7.

Karl Robert von PlanitzBotafogoKarl Robert von PlanitzBotafogo e Caminho de S. Clemente, 1840. 

 



Ele ainda escreveria comentários positivos, embora destacasse alguns problemas em comparação ao que se via em cidades da Índia: Falta nos arredores do Rio uma coisa que não devia faltar em nenhuma grande cidade – estradas para passeios de carro. É este um ponto a que na India se dá particular atenção, onde quer que se localizem sequer uns poucos de europeus. No Rio os que desejam fazer um passeio de carro, pela manhã ou à tarde, só o podem realizar em estradas públicas que apenas se prestam a corridas por umas poucas milhas fóra da cidade. Verdade é que existe, bem perto, o que se chama Passeio Público, grande jardim de ruas ensombradas, mas que só se destinam aos que andam a pé. À tarde, quando faz bom tempo, é bem frequentado pelos habitantes da cidade. O Jardim Botânico, situado cerca de oito milhas da cidade, é bastante frequentado.24

 


23 GARDNER, George. Viagens no Brasil. Principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836- 1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 7
24 Idem

 

Ender, Thomas. Vallis Larangeiras prope Sebastianopolin [Laranjeiras], 1840 

 


 

      O missionário metodista norte-americano Daniel Parish Kidder, este por duas vezes no Brasil, de 1836 a 1837 e de 1840 a 1842. Em 1845 ele publicou seus relatos dessas passagens no livro Reminiscências de viagens e permanência no Brasil (Rio de Janeiro e província de São Paulo) compreendendo notícias históricas e geográficas do império e de diversas províncias. Embora tenha viajado por todo o país, ele fixou efetivamente sua residência na cidade do Rio de Janeiro. O fascínio exercido pela cidade foi tão grande, que procurou, num primeiro momento, detalhar até a evolução dos seus subúrbios: “A partir do centro da cidade, os subúrbios se estendem por cerca de quatro milhas, em três direções diferentes. Dentro desse dilatado perímetro acham-se as residências e os estabelecimentos comerciais das diferentes classes que compõem uma população de aproximadamente duzentas mil almas.”25 Tendo em conta as paginas seguintes do livro de Kidder, ficamos sabendo que as “três direções” diziam respeito à Glória/Laranjeiras/Botafogo, Catumbi/Engenho Velho/Mata-Porcos e São Cristóvão. Kidder e sua esposa Cynthia Harriet Russell Kidder – que acabaria falecendo no Rio em 1840 – decidiriam se fixar no “subúrbio” da Glória. Dali eles puderam contemplar o seguinte cenário, segundo depoimento de Kidder:

    Descendo pelo lado oposto do morro da Glória chega-se à praia do Flamengo, cujo nome provém de aves de igual nome que costumavam frequentá-la. Ao longo dessa praia estende-se um correr de esplêndidas residências. Seus moradores deliciam-se com a brisa que vem do mar e gozam noite e dia o murmúrio ritmado das ondas. Paralelamente à praia corre a Rua do Catete, importante artéria que liga o Botafogo à cidade. A cerca de meio caminho entre este bairro e o centro fica o das Laranjeiras. Límpido arroio saltita no fundo de um precipício cavado nas fraldas do Corcovado.26

A ocupação da região por pessoas ricas é sugerida pela descrição do intenso trabalho de mulheres escravizadas que se distribuíam pelos rios da região, realizando serviços para a elite ali estabelecida:

   Passeando-se pelas margens podem-se contemplar inúmeras lavadeiras dentro d"água batendo roupa sobre as pedras que se sobrelevam à corrente. Muitas delas saem da cidade pela manhã, com enorme trouxa sobre a cabeça, e voltam à tarde com toda ela já lavada e enxuta. Em diversos lugares vêem-se pequenos fogões improvisados onde preparam as refeições e grupos de crianças brincando pelo chão, algumas das quais já grandinhas, correm atrás das mães. As menores, porém, vão penduradas à costa das escravas sobrecarregadas com a mala de roupas.”27

O encantamento de Kidder pela cidade e seus “arredores” é inequívoco. Em outra passagem ele volta a se derramar:

    O aqueduto é um canal coberto, feito de cantaria, dotado de certa declividade e de respiradouros a determinadas distancias, passa, ora por baixo, ora pela superfície da terra. Os panoramas que daí se descortinam excedem a toda descrição, tal a sua variedade e beleza. À direita vêem-se o vale das Laranjeiras, o Largo do Machado, o Catete, a entrada do porto e o mar das Laranjeiras, o Largo do Machado, o Catete, a entrada do porto e o mar alto; acolá, confinando com a outra encosta do morro, podem-se contemplar o Campo da Aclamação, a Cidade Nova, o esplêndido subúrbio do Engenho Velho, e, longe, a extremidade superior da baía, cercada de montanhas e pontilhadas de ilhas.[...] Só os morros de Santo Antônio e do Castelo impedem que deste ponto se descortine a maior parte da cidade. Entretanto, a nesga que se percebe entre assas duas eminências já é bastante bela e o olhar do observador pousa com prazer sobre essa extraordinária combinação de obras de arte e de belezas naturais.28

Kidder nota também, assim como Gerge Gardner, que “muitos dos estrangeiros residentes no país, principalmente os ingleses e norte-americanos, instalam suas famílias em algum subúrbio distante da cidade e fazem a viagem de ida e volta pela manhã e à tarde.”29 Aspecto esse que demonstra que o deslocamento diário entre a cidade e seu “subúrbio” talvez fosse um privilégio quase que restrito às camadas mais ricas da sociedade. Ao mesmo tempo, revela também como as condições de vida, o frescor e a salubridade, eram muito valorizadas por essa aristocracia. Tanto assim que o próprio Kidder sempre fez questão de morar nos subúrbios. Por sinal, depois de seis meses vivendo na Glória, o casal se muda para o “Engenho Velho, o principal subúrbio ao poente da cidade”. Sobre o cenário mais amplo oferecido pela localidade, lemos:

 



 

 

25 KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil (Rio de Janeiro e província de São Paulo) compreendendo notícias históricas e geográficas do império e de diversas províncias. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001.p. 26.
26 Ibidem, p. 111.
27 Idem.
28 Ibidem, p. 115.
29 Ibidem, p. 88.
    Um pouco à esquerda dessa última [São Cristóvão], e junto ao sopé das montanhas do Tejuco [Tijuca], desenvolve-se uma planície, mais ou menos extensa, situada ainda dentro dos limites da cidade, mas até agora ocupada pelo que se poderia chamar de casas de campo. As ruas são largas e quase todas ladeadas de sebes floridas de mimosas. As casas não são muito distantes umas das outras, mas quase todas circundadas de jardins e protegidas por grandes quantidades de árvores frutíferas e de sombra. Quanto à beleza agreste que apresenta, poucos recantos da Terra poderão ser comparados ao Engenho Velho. Nossa residência ficava na Rua de S. Francisco Xavier, à vista da igreja matriz, e, provavelmente, não muito longe do ponto em que os jesuítas, em tempos idos, tinham o engenho de açúcar que deu nome ao lugar. A casa em que vivíamos era contígua a uma grande chácara, nome que geralmente lá se dá às terras adjacentes às casas de campo.30
     François Louis Nompar de Caumont LaPorte, ou simplesmente conde de Castelnau, era um naturalista inglês, mas a serviço do governo inglês chegaria ao Rio de Janeiro em 1843, para depois cruzar a América do Sul, para estudar os Rios da Prata e Amazonas. Confirmando o que Kidder havia declarado sobre a preferência de visitantes estrangeiros endinheirados pelos subúrbios da cidade, Castelnau escreveria sobre a região e as residências desses ricos:
    Os europeus ricos do Rio habitam quase todos a parte meridional da cidade, em belas casas distribuídas ao longo da costa da baía, em frente a magnífica vista. Dá-se a este bairro o nome de Botafogo; dele são apêndices a Glória e o Catete. As casas a que nos referimos há pouco são construídas em granito e raramente têm mais de dois andares. O interior delas é espaçoso e disposto de maneira a permitir a livre circulação do ar. As janelas têm quase sempre caixilhos; mas, no andar térreo estes são muitas vezes substituídos por rótulas de ripas cruzadas em losangos muito estreitos, de modo a permitir que as mulheres possam tomar conhecimento do que se passa na rua, sem serem muito visíveis aos que estão de fora. Lareiras não se conhecem [...]. O mobiliário é como o da Europa; em quase toda casa há um piano, que se vê ou se ouve, ainda nas mais humildes, porque o brasileiro tem gosto natural pela música e sabe aprendê-la sem mestre, embora nunca se torne musicista. Os instrumentos são na maioria importados da Inglaterra, mas alguns vêm da Alemanha, ou dos Estados Unidos.31
 
     A viajante austríaca Ida Laura Pfeiffer passaria alguns meses no Rio de Janeiro em 1846 e o lugar mais destacado por ela em seu livro de reminiscência A Woman"s Journey Round the World seria exatamente a região dos “arrabaldes” da cidade:
À direita, na estrada da cidade para a baía e o subúrbio de Botafogo, encontra-se o distrito chamado Laranjeiras (ou "Laranjal"). Uma boa visão da entrada do porto e da parte de trás da casa de Mangueiras é obtida a partir desta posição. Plantações de café, laranjas, tamarindos e mangas ocupam o solo fértil do vale abaixo. Perto do mar é Jardim Público (passeo publico) da cidade, que, desde sua multa palmeiras e elegante galeria de pedra, com duas casas de veraneio, formas um objeto impressionante. À esquerda, eminências, estão algumas isoladas igrejas e mosteiros, como St. Gloria, Santa Teresa, etc. Perto deles estão o Flamingo Praya e Botafogo, grandes aldeias com belas vilas, belos edifícios e jardins, que se estendem muito longe até se perder no bairro do Pão de Açúcar, e assim feche este panorama maravilhoso. Além de tudo isso, os muitos navios, parcialmente no porto antes da cidade, parcialmente ancorados nas diferentes baías, a vegetação rica e luxuriante e a aparência estrangeira e nova do todo, ajuda a formar uma imagem, de cujas belezas minha caneta, infelizmente, nunca pode transmitir uma ideia adequada.32

Martinet, Alfred. Rio de Janeiro Catette e entrada da Barra, 1852.


   Quase na mesma época aportaria no Rio o escritor e inventor Thomas Ewbank, que viveu ali nos anos de 1845 e 1846. O diário da sua estadia na cidade seria publicado em Life in Brazil: or, a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. Os subúrbios foram objeto de grande atenção:
     Com o mapa em mãos, isso é imediatamente reconhecido como Baía de Boto-Fogo, e as casas brancas contornando a praia, a vila de Boto-Fogo. O chifre superior do crescente é marcado por um penhasco, uma colina precipitada, de onde a margem se curva levemente para outra eminência, na qual se destaca uma bela igreja branca. Ele e a colina são dedicados a “Nossa Senhora da Glória”, e um local glorioso para a habitação que eles lhe deram. Entre as colinas fica o Cattete, um subúrbio que liga Boto-Fogo à cidade. Da igreja, a praia dispara uma milha para a frente em uma curva mais irregular, terminando em um ponto que fica bem distante da baía. Nesse trecho da cidade é visto - um enxame de casas, aglomerando-se e passando por uma passagem estreita entre duas colinas, como tropas correndo através de um desfiladeiro e pisando nos calcanhares umas das outras. [...] Em três minutos, o capitão e eu estávamos no bote e, como não queria ir para a cidade, ele me pousou, a meu pedido, aos pés da colina Gloria. Empurrando o barco, consegui saltar na praia sem me esquivar das ondas e, pisando rapidamente na rua, passei na direção de Boto-Fogo como se não fosse um estranho.33
   
     Importante também essa descrição de Laranjeiras: “Saímos com E. para as Laranjeiras, os laranjais de Anglice, um bairro suburbano ao lado de Cattete e na fronteira com um riacho que ondula, quase nenhum em mais de um metro e meio de largura, e a profundidade na maioria dos lugares apenas alguns centímetros.”34

30 Ibidem, pp. 140-141.
31 CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949. p. 26.
32 No original: “Close to the sea is the Public Garden (passeo publico) of the town, which, from its fine palm trees, and elegant stone gallery, with two summer-houses, forms a striking object. To the left, upon eminences, stand some isolated churches and monasteries, such as St. Gloria, St. Theresa, etc. Near these are the Praya Flamingo and Botafogo, large villages with beautiful villas, pretty buildings, and gardens, which stretch far away until lost in the neighbourhood of the Sugarloaf, and thus close this most wonderful panorama. In addition to all this, the many vessels, partly in the harbour before the town, partly anchored in the different bays, the rich and luxuriant vegetation, and the foreign and novel appearance of the whole, help to form a picture, of whose beauties my pen, unfortunately, can never convey an adequate idea.” - Pfeiffer, Ida. A Woman"s Journey Round the World. London: Office of the National Illustrated Library, 1852.
33 No original: “With map in hand, this is at once recognized as Boto-Fogo Bay, and the white houses skirting the beach the village of Boto-Fogo. The upper horn of the crescent is marked by a bluff, precipitous hill, whence the shore slightly curves onward to another eminence, on which a handsome white church conspicuous standes. It and the hill are dedicated to “Our Lady of Glory”, and a glorious site for a dwelling they have given her. Between the hills is the Cattete, a suburb connecting Boto-Fogo with the city. From the church the beach shoots forward a mile in a more irregular curve, ending in a point that just far into the bay. In this stretch part of the city is seen – a swarm of houses, crowding and turning through a narrow passage between two hills like troops rushing through a defile and treading on each other"s heels. […] In three minutes the captain and I were in the jolly-boat, and, as I did not wish to go up to the city, he landed me, at my request, at the foot of the Gloria Hill. Pushing the boat in, I succeeded in spring on the beach without a ducking from the surf, and, stepping up briskly into the street, passed along in the direction of Boto-Fogo as if no stranger.” (EWBANK, Thomas. Life in Brazil: or, a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. New York: Harper & Brothers, 1856. p. 58).
34 No original: “Walked out with E. to the Laranjeiras, Anglice orange-groves, a suburban district adjoining the Cattete, and bordering on a brook that comes rippling along, scarcely any where over five feet wide, and the depth in most places only a few inches.” (Ibidem, p. 73).
                                                  Preussen, Adalbert Prinz von. “Botafogo”. Skizzen zu dem Tagebuche von Adalbert Prinz von Preussen, 1842-1843.

     No fim de década de 1840, Jacques Étienne Victor Arago chegaria ao Rio de Janeiro, após sair da França, muito contrariado que estava pelo golpe de Estado realizado por Luis Napoleão em 1848. Arago acabaria fixando residência na cidade, morrendo nela em 1854. Ainda teve tempo de escrever suas impressões sobre a cidade em Souvenirs d"un aveugle: voyage autour du monde, publicado em 1868. A região limítrofe à baía de Botafogo é a região que despertaria mais elogios por parte do pintor e escritor francês:7
Creio que falei com você sobre o aqueduto que, partindo do pé virgem do Corcovado, desce e serpenteia de colina a colina, mantém fresco e límpido o sorriso que recebeu no nascimento e alimenta toda a cidade. Este aqueduto terá minha primeira visita hoje, e eu o seguirei em todas as suas voltas e reviravoltas. De longe, parece uma obra dos romanos na época de sua grandeza; mas, despojando-se de toda prevenção, vê-se apenas um trabalho paciente e de utilidade pública: a corrente da água chega a uma colina próxima, usando um aqueduto duplo, onde possui quarenta e dois arcos no andar superior, o que oferece um aspecto bastante monumental. Desde o sopé do convento de Sainte-Thérère até os flancos limpos do Corcovado, é uma parede de tijolos e grandes pedras bem cimentadas, com um comprimento e meio de altura de quatro a cinco pés de altura, ligadas por um cofre outra parede paralela, o todo servindo como canal para a corrente de água. Ocasionalmente, pequenos dias quadrados são práticos nas paredes, e a cada cem passos de distância uma pequena bacia lateral, onde a água cai por um cano de chumbo, foi escavada para atender às necessidades de pedestres e viajantes. Para aqueles que tiveram uma 20 boa idéia dos costumes preguiçosos dos brasileiros, esse produto é uma obra grandiosa que elogia o príncipe sob o qual ele foi construído. Depois de duas horas caminhando pelos locais mais bizarros e pitorescos, cheguei ao final do edifício e descansei por alguns momentos sob uma magnífica berthollehia, protegendo a folha de água que escapava da água. uma vegetação poderosa onde estava presa, flui livremente sobre um tufo duro e polido, onde os curiosos costumavam parar antes de subir o Corcovado. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a paisagem oferece um daqueles panoramas fantásticos que Claude Lorrain suspeitava, mas que Martin, esse pintor do espaço, poeticamente admirava tanto. [...] O dia estava adiantado e, em vez de afundar nesta massa compacta e sem forma de vegetação que me dominava, decidi renovar no dia seguinte a corrida informativa que havia planejado e, descendo morro e morro, assumiu a direção da cidade através de campos e plantações de café, banana e laranjas. Eu te disse, o Brasil é um enorme jardim.35
Anos depois, seria vez de François-Auguste Biard escrever sobre os subúrbios da cidade. Ficaria na cidade de maio a novembro de 1858. Depois alcançaria a Amazônia, após ficar um tempo no Espírito Santo. Mas antes disso, chegaria a frequentar por diversas vezes a residência da família imperial no Rio. O livro de Biard com suas reminiscências sobre o Brasil seria muito criticado nos anos seguintes de sua publicação (1862) por ser fantasioso e muito ofensivo aos brasileiros. Mas no que no tange aos arredores do Rio, o pintor e desenhista francês produziu um retrato muito positivo. Quando ainda se encontrava no, chegando ainda à cidade, ele teria se deparado com o seguinte cenário:

35 No original: “Je vous ai parle, je crois, de l aqueduc qui, partant du pied vierge du Corcovado, descend et serpente de colline en colline, garde fraiche el limpide la souree quil a recue à as naissance, et alimente tout ela ville. Cet aqueduc aura aujourd hui ma première visite, et je vais le suivre dans toutes ses sinuosités. De loin, on dirait um ouvrage des Romains au temps de leur grandeur; mais, en se dépouillant de toute prévention, on n"y voit qu"um travail de patiente et d"utilité publique: le courant d"au arrive à une colline voisine, à l"aide d"um double aqueduc où l"on compte quarante-deux arcades à l"étage superieur, et qui offre un ascpect assez monumental. Du pied du couvent de Sainte-Thérère jusqu aux flancs déblayés du Corcovado, c"est un mur de briques et de grosses pierres bien cimentées, long d"une lieu et demie, haut de quatre à cinq pieds, lié par une voute à um autre mur parallèle, le tout servant de rigole au courant d’eau. De temps à autre, de petits jours carrés sont pratiques sur les paróis, et à chaque cent pas de distance um petit bassin lateral, oú l"eau tombe par um tuyau de plomb, a êtê creusé pour les besoins des pietons et des voyageurs. Pour qui s"est fait une juste idée des moeurs paresseuses des Brésiliens, cet aueduc est une ouvre grandiose qui fait l"éloge du prince sous lequel il a été bati. Aprés deux heures de marche á travers les sites les plus bizarres et les plus pittoresques, j"atteignis l"extrémité de la bâtisse, et je me reposai quelques instants sous un magnifique berthollehia ombrageant la nappe d"eau qui, s"échappant de la végétation puissante oú elle était prisonniére, coule en liberte sur um tuf dur et poli, oú les curieux out l"habitude de faire halte avant de gravir le Corcovado. Le paysage offre ici, plus encore que partout ailleurs, um de ces panoramas fantastiques que Claude Lorrain avait soupçonnés, mais que Martin, ce peintre de l’espace, a si admirablement poétisés. [...] La journéé était avancée, et, au lieu de m"enfoncer dans cette masse informe et compacte de verdure qui me dominait, je me décidai à renover au lendemain la course instructive que j"avais projetée, et, descendant de coteau em coteau, je repris la Direction de la ville à travers champs et plantatios de caféiers, de bananiers et d’oranges. Je vous l’ai dit, le Brésil est um immense jardin.” (ARAGO, Jacques Étienne Victor. Souvenirs d"un aveugle: voyage autour du monde, Paris: Lebrun, Libraire-Editeur, 1868. p. 22).
Aqui é Botafogo, ele me disse; no fundo, deste lado, o hospital; esta pequena montanha que se projeta para o mar, onde estas lindas casinhas estão escondidas por árvores de todos os tipos, é Gloria; e todas essas casas brancas e rosadas são a Catette, o subúrbio Saint-Germain de Rio; esta colina, contra a qual este belo aqueduto é apoiado, é chamada Santa Tereza, um lugar muito saudável.36
Bertichen, Pieter Gotfred. “Chacara do Visconde d"Estrella Rio Comprido”. Brasil Pitoresco e Monumental - O Rio de Janeiro e seus arrabaldes, 1856.

    Mais adiante no próprio livro, ele voltaria a destacar a região. O francês reafirma na sua descrição as impressões expressadas anos atrás por George Gardner e Daniel Kidder: os subúrbios do Rio, em especial os que abarcavam as localidades de Botafogo, Glória, Catete, Laranjeiras, Santa Tereza e Tijuca, eram predominantemente ocupados pelos segmentos sociais mais ricos da cidade:
   
    Depois da Glória, esse é o nome dessa colina, chegamos ao Catette, da qual faz parte. Existem aristocratas de nobreza e dinheiro; é, como eu disse antes, o subúrbio Saint-German do Rio. Casas charmosas, belos jardins fazem desta parte da cidade uma estadia muito agradável; no entanto, parece que a febre amarela causa estragos por causa da proximidade do mar; Eu só falo sobre isso por boatos. Eu esperava, pelo que eu tinha visto em Lisboa e na Madeira, encontrar aqui as ruas cheias de flores: não era o caso, no entanto, e esses jardins, por mais agradáveis que fossem, não podem se equipara às nossas. Eu realmente não vi essas lindas flores crescendo em nossas estufas. Continuando a caminhada, chegamos a Botafogo, à beira-mar, e diz que a casa mais bonita pertence ao Marquês d"Abrantes, protetor iluminado das artes.37
    O naturalista suíço Louis Rodolphe Agassiz e sua esposa, a norte americana e também naturalista Elizabeth Cabot Cary passaram pelo Rio em 1865. As palavras com as quais eles se referem aos subúrbios demonstram a satisfação do casal:
         A nossa excursão hoje foi encantadora; atravessámos os subúrbios da cidade, ora beirando a baía e suas numerosas reentrâncias, ora margeando as montanhas numa estrada constantemente ladeada de bonitas chacaras e belos gramados. O Jardim Botânico está situado a cerca de oito milhas do centro da cidade. É um vasto e esplêndido parque cuja situação foi admiravelmente escolhida. Aliás tudo o que traz esse nome de jardim pode lá deixar de ser totalmente belo num clima onde a vegetação tem tanto vigor e variedade.38
Bertichen, Pieter Gotfred. “Chacara do Souto (S. Christovão)”. O Brasil Pitoresco e Monumental - O Rio de Janeiro e seus arrabaldes, 1856.

     Nota Agassiz que os arrabaldes do Rio (com exceção da Tijuca) foram sendo constituídos na parte litorânea da cidade, por sinal as áreas mais frescas e salubres: Esta tarde, a Sra. C..., seu marido e eu saimos para dar um passeio no campo; um pouco ao acaso, é verdade, mas bem certos de que, com essa natureza admirável das cercanias do Rio, podiamo-nos fiar nele para nos conduzir a algum belo ponto de vista. Tomámos, pois, passagem numa das numerosas embarcaçõezinhas à vapor cuja estação de embarque é vizinha do nosso hotel, e alguns minutos depois estávamos a caminho de Botafogo. Quase todos os arrabaldes do Rio de Janeiro se acham edificados ao longo das praias. Há, assim, a praia de Botafogo, a praia de São Cristóvão, a praia de São Domingos e uma dúzia ainda de outras. Tudo isso forma ainda os arrabaldes do Rio, situados à beira-mar ou fazendo face às margens da baía; e como é de bom-tom para certa classe da sociedade viver fóra da cidade, as casas e os jardins desses arrabaldes são quase sempre atraentes.39
     Ainda na década de 1860, Daniel Parrish Kidder voltaria a publicar relatos sobre o Brasil, e em especial sobre o Rio, junto a James Cooley Fletcher, que era também um missionário metodista e que esteve no Brasil durante os anos de 1851 e 1865. No livro O Brasil e os brasileiros, alguns detalhes sobre os subúrbios do Rio são acrescentados em relação às descrições efetuadas por Kidder em seu livro de 1845. O trecho sobre a entrada da baía de Guanabara é um exemplo: Olhando de novo para a margem oposta [de Jurujuba/Niterói], além de São João, vemos num relance a graciosa Enseada de Botafogo (Baía de Nápoles em miniatura) e o lindo subúrbio do mesmo nome, que parece uma jóia no meio das meigas praias alvas e o largo círculo da vegetação. Daqui também se tem uma outra vista dos múltiplos aspectos do Corcôvado e da Gávia [sic], que, quando se muda de posição, estão sempre variando e sempre belos. Agora a grande cidade surge diante de nós, estendendo-se, com seus brancos subúrbios, por milhas e milhas ao longo das margens irregulares da baía e recuando até quase ao pé das montanhas da Tijuca, semeada de verdes colinas que parecem brotar do seio dos bairros mais populosos. Esse conjunto de circunstâncias permite que do mar se tenha uma vista completa do Rio de Janeiro que do mar se tenha uma vista completa do Rio de Janeiro. Quando contemplávamos os zimbórios e campanários que se elevam sobre o branco casario da cidade, e o pujante manto de verdura dos morros da Glória, Santa Tereza e Castelo [...].40
Outro elogio aos subúrbios seria feito em relação às residências dos subúrbios:
     As residências urbanas, nas velhas cidades, pareceram-me excessivamente tristes, porem o mesmo não pode ser dito das novas residências urbanas, das lindas “vilas” suburbanas, cercadas por jardins, cobertos de folhagens, muitas flores e frutos pendentes. Alguns trechos de Sta. Tereza, Laranjeiras, Botafogo, Catumbí, Engenho Velho, Praia Grande e S. Domingos, não podem ser ultrapassados na beleza e pitoresco de suas casas.41
    O livro também dá especial destaque à Tijuca:
        Do cemitério da Gamboa, avista-se a serra da Tijuca, e, entre os muitos passeios perto da cidade, nenhum ultrapassa em interesse uma excursão a cavalo nessas montanhas. Passa-se pela longa rua do Engenho Velho, alinhada de residências das famílias mais ricas, cada qual cercada de sua chácara com a sua vegetação constante de mangueiras, laranjeiras, e palmeiras, misturadas a flores dos mais brilhantes coloridos no fim da qual alcança-se a base da montanha. Aí se vêm muitas vilas pitorescas, com varandas na frente, tendo muitas vezes na entrada um grande portão de ferro, onde, às tardes, a família se senta, e distrae as suas horas de lazer vendo passar os transeuntes. Essas residencias de campo são construídas em estilo que condiz com o clima quente. [...] As famílias do lugar moram geralmente na planície ou próximo da estrada, sempre cheia de atrativos; porem os ingleses, fieis ao seu caráter nacional, galgam a montanhas, e constroem o seu ninho entre as nuvens.42

36 “Voilà Botafogo, me disait-il; au fond, de ce côté, l”hôpital; cette petite montagne qui s”advance dans la mer, oú sont ces jolies maisonnettes, cachée par des arbres de toutes espéces, c”est la Gloria; et toutes ces maisons blanches et roses, c”est le Catette, le faubourg Saint-Germain de Rio; cette colline, à laquelle est adossé ce bel aqueduc, se nome Sainte-Thérèse, um endroit fort sain.” – BIARD, François Auguste. Deux années au Brésil. Paris: Librairie de L. Hachette et C., 1862. p. 42.
37 “Après la Gloria, c”est le nom de cette colline, on arrive au Catette don”t elle fait partie. Là sont les aristocrates de noblesse et d’argent; c”est, comme je l”ai déjà dit, le faubourg Saint-German de Rio. De charmantes maisons, de jolis jardins, font de cette partie de la ville un séjour três-agréable; cependant, il paraît que la fièvre jaune y fait des ravages à cause du voisinage de la mer; je n"en parle que par ouï-dire. Je m”attendais, d”après ce que j"avais vu à Lisbonne et à Madère, à trouver ici les rues enconbrées de fleurs: il n"en était rien cependant, et ces jardins, si agréables qu"ls soient, ne peuvent lutter avec les nôtres. Je n”y ai réellement pas vu de ces fleurs magnifiques qui croissent dans nos serres. En continuant à marcher, nous arrivâmes à Botafogo, sur le bord de la mer. La plus belle habitation appartient à M. le marquis d”Abrantes, protecteur éclairé des arts, à ce qu”on dit.” – Ibidem, p. 52. 38 AGASSIZ, Louis e Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil. 1865-1866. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 89.
39 Ibidem, p. 116.
40 p. 6.
41 p. 180.
42 Ibidem, p. 228.

Considerações finais

    A evolução dos subúrbios e arrabaldes do Rio também era registrado pelos jornais da época. O olhar da imprensa carioca, diferente do olhar dos viajantes estrangeiros (a esmagadora maioria da Europa e Estados Unidos), não buscava desvendar aspectos fascinantes e novidadeiros para o encantamento de algum público. E esses viajantes se pautavam em parâmetros e critérios de beleza e comodidade próprios do contexto de onde eram originários. Já os jornais da cidade buscavam os subúrbios com outras premissas e com outro tipo de abordagem: não se tratava de registrar memórias ou curiosidades, tal como num diário, mas descrever fatos cotidianos a serem lidos por um determinado público da mesma cidade. E na busca desses fatos ao longo do século XX, os jornais foram compondo involuntariamente um mapa desses subúrbios e arrabaldes da cidade do Rio, destacando seus aspectos, marcos, agentes e experiências. Mas independente do enfoque específico dos viajantes europeus e norte-americanos, as descrições sobre os subúrbios foram redigidas em centenas de cadernos de campo, com ricos e expressivos relatos sobre seus aspectos geográficos, biológicos e sociológicos. E não deixa de ser curioso notar que os subúrbios celebrados por esses viajantes ficassem pelos lados de Botafogo, Laranjeiras, Jardim Botânico, Leblon, Catete e Glória. Não resta dúvidas que a maciça ocupação da área que vai da Glória ao Leblon por parte da elite de estrangeiros que aportavam no Rio, em especial na primeira metade do século XIX, teria grande influência na consolidação dessa mesma região como “zona nobre” da cidade, a chamada Zona Sul. A imagem sobre o território, um lugar da elite, estava bem sedimentado desde aquela época. No século XX esta mesma imagem condicionaria a ocupação dessa região pela classe média carioca e o privilegiamento dos poderes públicos em termos de investimento e melhorias urbanas.

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