24/08/2020
Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
Bimestral
Comitê Editorial
Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Cra. Em Planejamento Urbano e Regional)
Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF
Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)
Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)
Editora Assistente Júnior
Julia Paresque
IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq
LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS
Coordenador
Mauro Kleiman
Equipe
Julia Paresque
Pesquisadores associados
André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares
Indíce
“Subúrbios” e “arrabaldes” no olhar dos viajantes do XIX
“Subúrbios” e “arrabaldes” no olhar dos viajantes do XIX
Leonardo Soares dos Santos¹
A chegada da Família Real ao Rio de Janeiro em 1808 abriu uma nova era em termos das explorações científicas estrangeiras não apenas na cidade como no território da Colônia como um todo, pois, a partir desse evento, as incursões desses viajantes se tornariam mais frequentes, curiosos que estavam por desbravar aspectos da flora, da fauna, da vida rural e urbana de nosso território. Como lembra Bruno A.G. Moreira, no afã de conhecer os exotismos da Colônia, os viajantes produziram relatos condicionados por várias questões pessoais e institucionais.² Os pré-conceitos e referenciais culturais próprios davam um colorido especial aos seus relatos. Tudo isso é verdade. Interpretação e observação se misturavam em suas descrições, uma se confundindo com a outra. ³ Mas nem todos os referenciais operados pelos viajantes resultavam em relatos depreciativos. Um exemplo é a noção de “subúrbios” e “arrabaldes”.
Como veremos mais adiante, tratava-se de termos que no caso da cidade do Rio de Janeiro faziam referência às áreas mais procuradas por estes viajantes, devido a suas belezas e atrativos climáticos como as temperaturas amenas. Para o viajante que se estabelecia na cidade do Rio, os “subúrbios” e “arrabaldes” da cidade ofereciam as melhores condições de vida. E eles explicavam a razão disso, conforme veremos mais adiante. Lendo alguns registros de época não deixa de ser interessante observar que em boa parte do século XIX, os termos utilizados com mais frequência para designar as áreas mais afastadas da área urbana eram “subúrbio” e “arrabalde”. E quase todos se referem a um território bem circunscrito: ele abrangia as freguesias da Glória, Catete, Tijuca e Botafogo. Os relatos de viajantes estrangeiros que passaram pelo Rio nas primeiras décadas do século XIX são boas fontes a esse respeito.
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¹Professor de História da Universidade Federal Fluminense/Campos dos Goytacazes, doutor em História (2009) pela mesma universidade. Tem grande interesse pelos temas da História Urbana e Subúrbios.
² MOREIRA, Bruno Alessandro Gusmão. “Os relatos dos viajantes estrangeiros no Brasil Oitocentista: possibilidades historiográficas”. Texto apresentado no Ciclo de Estudos Históricos da UESC, . Disponível em: http://www.uesc.br/eventos/cicloshistoricos/anais/bruno_alessandro_gusmao_moreira.pdfhttp://ww w.uesc.br/eventos/cicloshistoricos/anais/bruno_alessandro_gusmao_moreira.pdf. Acesso em: 12/07/2020. p. 2.
³ Ver a esse respeito LOPES, Fabrício Antonio ; MILAGRES, Alcione Rodrigues ; PIUZANA, Danielle; MORAIS, Marcelino Santos de. “Viajantes e Naturalistas do século XIX: A reconstrução do antigo Distrito Diamantino na Literatura de Viagem”, Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011.
Desde sempre, esses arrabaldes eram vistos com grande interesse. Um dos primeiros a fazê-lo no século XIX seria John Luccock, que viveu no Brasil entre 1808 e 1818. Sobre uma parte da cidade do Rio, ele anotaria em tom negativo: “nos arrabaldes da cidade as ruas são sem calçar, as casas de um só pavimento, baixas, pequenas e sujas e tanto portas como janelas são de rótula e abrem-se para fora, com prejuízo dos transeuntes”.⁴
O botânico, naturalista e viajante francês Augustin François César Prouvençal de SaintHilaire começou a sua jornada de estudos no Brasil em junho de 1816. Trajetória essa iniciada exatamente na cidade do Rio de Janeiro. Ficaria no país até 1822. Como desdobramento de seu esforço investigativo, ele chegaria a reunir 30 mil amostras, entre espécies de plantas e de animais. Desse último conjunto, havia 16 mil insetos, 135 mamíferos e 2 mil aves, além de um sem número de répteis, peixes e moluscos. Com igual afinco e interesse, o francês nos deixou detalhada descrição dos “arredores” da cidade. Como o interesse de Saint-Hilarie era se dirigir para as Minas do interior da Colônia, ele acabaria tomando um trajeto que o levaria Inhaúma, assim descrita por ele. Note-se que apesar de se tratar de um povoado bem afastado da “cidade ”, Saint-Hilaire mostra-se impressionado pelo número de habitantes e pela rica dinâmica do lugar:
Tendo caminhado durante duas léguas avistamos a igreja parochial de Inhaúma ou S.Tiago d nhaúma, pequeno edifício construído isoladamente sobre uma plataforma de onde se descortina um panorama muito agradável. [...] No interior do Brasil caminham-se, às vezes, sessenta léguas e mais ainda, pelo território de parochias onde existe apenas um ilhar ou dois de habitantes. Mas o que prova quanto os arredores do Rio de Janeiro são já bastante povoados, é que a parochia de Inhaúma, cujo raio não é maior que meia légua, conta duzentos fógos e mil e seiscentos habitantes adultos. Essa parochia, como varias outras nas proximidades do Rio de Janeiro, não é formada por uma povoação propriamente dita, e se compõe de casas esparsas pelo campo. Nas localidades retiradas do interior, pelo contrario, não há parochia sem povoação, e a razão dessa diferença pode ser, parece-me, explicada facilmente. Em torno ao Rio de Janeiro as terras se dividiram mais que em qualquer outra parte; cada pedaço de terreno passou a ser habitado, e quando o districto atingia população sufficiente, passava a constituir uma parochia independente.⁵
Logo depois, atinge Irajá, onde percebe que a economia local é muito mais dependente dos “engenhos de assucar”, notando ainda uma certa correlação com a paisagem cujo grau de intervenção humana é menor do que encontrado em Inhaúma. Eis como ele comenta tais aspectos:
Si próximo ao Rio de Janeiro podemo-nos julgar nos arredores de uma das maiores cidades da Europa, essa ilusão em breve se dissipa. À medida que nos afastamos de Inhaúma vê-se cada vez menos habitações, as vendas raream, encontram-se menos terrenos cultivados, os bosques tornam-se mais comuns, e como cada vez mais nos aproximamos das montanhas, o aspecto da região toma caracter mais grave. Até Inhaúma, o caminho é ladeado de sebes artificiaes, formadas por casa mimosa encantadora que está hoje em dia tão espalhada em volta do Rio de Janeiro. A partir de Inhaúma, taes cercos são já constituídas por plantas indígenas: são as espécies mais comuns, as que escaparam com certeza, à destruição das mattas virgens, principalmente diversas espécies de bigmonenceas, baahinias, uma cordia de odor fétido [...] e a pitangueira, myrtacea que caracteriza os terrenos arenosos e visinhos do mar. A cerca de duas léguas do Rio de Janeiro acabam as chácaras ou casa de campo, e começam os engenhos de assucar. São apenas em numero de cinco na parochia de Inhaúma, e já em Irajá atingem a doze, e onze na de S. Antonio da Jacuntiga, parochia que vem após Irajá, e cujas terras baixas e húmidas convêm perfeitamente à cultura da canna de assucar. Dá ahi três cortes consecutivos, em seguida se deixam repousar as terras durante quatro anos, a menos que não a adubem, o que começam a fazer os lavradores que dispõem de pouco terreno.⁶
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⁴ LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 25.
⁵SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Geraes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. pp. 60-61
⁶ Ibidem, pp. 63-64.
Quase na mesma época de Saint Hilaire, seria a vez dos prussianos Theodor Von Leithold e Ludwig Von Rango falarem sobre os arrabaldes cariocas. Eles passaram pela cidade em outubro de 1819, animados pela possiblidade de estabelecer uma fazenda de café nos seus arredores. O que acabou não ocorrendo, já que os dois não suportariam o calor inclemente que castigava a cidade. O sonho durou apenas quatro meses, ao fim do qual os dois regressam à Europa. Em que pese a desilusão, os dois assim se refeririam aos seus “arrabaldes”, de maneira muito mais detalhada e positiva do que Luccock:
A cidade não tem portas, mas aprazíveis arrabaldes, que lhe dão considerável extensão. O Catete, onde moram meu cunhado e vários ministros e cônsules estrangeiros, é um bairro bem mais saudável do que o centro e consiste numa única rua, larga e não pavimentada, que conduz a uma encantadora enseada, distante apenas um quarto de hora, toda rodeada de montanhas e de agradáveis chácaras habitadas por ingleses. Também a rainha ali possuía uma casa de campo chamada Laranjeiras. O Catete costuma ser concorrido aos domingos, quando acorrem numerosos pedestres, cavaleiros e carros; também o rei e a família real por aí passam quase diariamente para ir a Enseada e de lá voltar, já que os caminhos interiores são estreitos e incômodos.⁷
Outro importante relato é o de Maria Graham, que viveu no Brasil em partes dos anos de 1821, 1822 e 1823. Sobre o Rio ela comentava: “No outro lado [da cidade], entre o sopé da montanha do Corcôvado, com seus contrafortes e o mar, as boas posições foram ocupadas por deliciosas casas de campo. A linda enseada de Boto Fogo (Botafogo), onde antes só havia pescadores e ciganos, tornou-se em breve um subúrbio arejado e populoso”.⁸ Além de Botafogo, ela conheceria outros “subúrbios”. Um deles, o Catete, ela visitaria no dia 17 de dezembro de 1821.⁹ Quase um ano depois, Graham voltaria a mencionar o “subúrbio do Catete” e se reportaria assim à Glória em 31 de dezembro de 1822:
Fui à cidade pela primeira vez. O caminho segue através do subúrbio do Catete cêrca de meia milha. Há algumas boas casas de ambos os lados. Os intervalos são preenchidos por lojas e pequenas casas habitadas pelas famílias dos lojistas da cidade. Chegamos então ao outeiro chamado da Glória, do nome da igreja dedicada a N.ªS.ª da Glória, na eminência que domina o mar próximo. O morro é verde, coberto de matas e ornado de casas de campo. É quase insulado e o caminho passa entre êle e outro morro, ainda mais alto, exatamente onde uma abundante fonte deriva de um aqueduto (feita, penso eu, pelo conde de Lavradio, e traz, para esta região da cidade, saúde e refresco das montanhas das vizinhanças.¹⁰
A pintora e escritora inglesa se mostra mais arrebatada por Laranjeiras. As plantações, o grande número de casas senhoriais e senzalas e de trabalhadores escravizados lhe chamam a atenção. No dia 19, ela escreveria em seu diário:
Passeei a cavalo, ao lado de Langford, por um dos pequenos vales ao pé do Corcovado. É chamado Laranjeiros [Laranjeiras], por causa das numerosas árvores de laranjas que crescem dos dois lados do pequeno rio que o embeleza e o fertiliza. Logo à entrada do vale, uma pequena planície verde espraia-se para ambos os lados, através da qual corre o riacho sobre seu leito de pedras, oferecendo um lugar tentador para grupos de lavadeiras de todas as tonalidades, posto que o maior número seja de negras. E elas não enriquecem pouco o efeito pitoresco da cena. Geralmente usam um lenço vermelho ou branco em volta da cabeça, uma manta dobrada e presa sobre um ombro e passando sob o braço oposto, com uma grande saia. E a vestimenta favortia, algumas enrolam uma manta comprida em volta delas, como os indianos. Outras usam uma feia vestimenta europeia, com um babadouro bem deselegante amarrado adiante. Em torno da planície das lavadeiras, sebes de acácias e mimosas cercam os jardins, cheios de bananeiras, laranjeiras e outras frutas, que cercam cada vila. Além destas, as plantações de café estendem-se até bem alto na montanha, cujos cumes pitorescos limitam o cenário. As casas de campo não são aqui nem grandes nem luxuosas, mas são decoradas com varandas e têm geralmente uma bela escadaria até a casa de residência do dono, junto à qual estão, ou os paióis, ou, as casas dos escravos. Todas têm portão, qualquer que seja a casa, e este portão geralmente conduz ao menos a uma aléia onde se cultivam todas as espécies de flôres.¹¹
Quase na mesma época (1819-1820) que os prussianos, o militar inglês Henry Chamberland residiu por dois anos no Rio de Janeiro. Ao fim desse período havia produzido 36 litografias coloridas sobre paisagens da cidade. Uma delas retratava o subúrbio da Tijuca. No texto que acompanha a imagem, Chamberlain assim descreve o lugar:
Cerca de seis milhas ao Oeste da cidade está situada de aldeia de Andaraí, onde começa a subida às Montanhas da Tijuca por um caminho outrora áspero, cheio de rochas e penhascos, quase intransitável durante a estação das chuvas, melhorado posteriormente, permitindo até a passagem de carruagens. Nesta aldeia vários comerciantes brasileiros ricos possuem vivendas campestres e foram estabelecidas uma fábrica de papel e uma tecelagem e estamparia de algodão, se bem que com pouco sucesso. Esta vista, tirada de uma colina em Mata-Porcos, oferece uma vasta perspectiva sobre o lindo vale do Engenho Velho, onde se distinguem a igreja paroquial de São Francisco Xavier da Aldeia do Andaraí, o caminho já mencionado e os píncaros mais elevados das próprias Tijucas. Uma grande parte desta região montanhosa é patrimônio do Visconde d’Asseca, que, entretanto, poucas vantagens auferia de suas vastas possessões, até que, há bem pouco tempo, vários lotes foram cultivados por emigrantes da Europa, franceses na maioria, que ali iniciaram consideráveis plantações de café, para o que o clima e o solo são particularmente apropriados. Enquanto os habitantes do Rio de Janeiro e das planícies circunvizinhas sofrem debaixo do calor opressivo de um sol tropical, os lavradores destas montanhas (que têm sido chamadas, com certa justiça, a Sintra do Brasil) gozam um clima delicioso, temperado por moderadas e refrescantes brisas. As noites são sempre frescas e o solo fértil, capaz de produzir muitas das frutas e a maioria das verduras da zona temperada.¹²
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⁸ GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. p. 55
⁹ Ibidem, p. 175.
10 Ibidem, pp. 183-184.
11 Ibidem, pp. 177-178.
¹² CHAMBERLAIN. Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1943. p. 143
Chamberlain, Henry. Casa de H. Chamberlain no Catete, 1820.
Outro ponto dos subúrbios enaltecido pelo viajante seria Botafogo, “que fica não longe da Glória, constituído principalmente de chácaras à beira-mar, das quais a mais importante é a do Vice-Cônsul da Rússia.” Ebel resolveria estender o passeio, o que lhe possibilitou redigir um detalhado relato desses outros arrabaldes da cidade. A extensão e profusão de plantações e vivendas agrícolas presente na região lhe produz inegável encantamento:
Deixando Botafogo, chega-se a uma lagoa fechada por uma coroa de montanhas, cobertas de vegetação, em cujas encostas surgem atraentes e esparsas vivendas, oferecendo a mais bucólica visão. Junto ao Corcôvado, há que, passar-se sob um espigão rochoso que se projeta no espaço, ameaçando cair a todo instante, mas que assim continuará, provavelmente, milhares de anos. No Jardim Botânico, tivemos o prazer de encontrar seu diretor, o Padre Leandro, que teve a gentileza de nos servir de guia. O parque é formado por frondoso arvoredo e ocupa uma vasta extensão. Sebes de cardamomos fazem as vêzes de cêrca. Especialmente exuberante é a fruta-pão que aqui se dá muito bem e em abundância. Sua folha grande e dentada, verde-escuro, lembra a das nossas nogueiras; estavam elas carregadas de frutas também verdes, do tamanho de uma cabeça de criança.14
Chamberlain, Henry. “Botafogo Bay”. Plate 1. In: Views and costumes of the city and neighbourhood of Rio de Janeiro, 1822.
Outro militar que esteve várias vezes na cidade do Rio, entre os anos de 1825 e 1835, foi o suíço-alemão Carl Friedrich Gustav Seidler. Contava empolgado:
Adiante! Adiante através dos subúrbios, entre os quais já se considera a Glória. Repentinamente nos encontramos no meio dos mais esplêndidos jardins, cercados de altas sebes verdes, através das quais espiam as magníficas vivendas de campo, todas da mesma cor. Sempre adiante, mais adiante, até que o calmo idílio assume caráter dramático com o rugir do mar, cada vez mais próximo. Aqui forma-se uma grande baía, a Praia de Botafogo [sic]; é uma obra-prima da natureza, que se apresenta como prima-dona. Sucedem-se as vivendas, lado a lado, e a arte aqui em toda a parte prestou os melhores serviços de camareira à sua soberba dominadora. Aqui residem, na boa estação, a maior parte dos ministros estrangeiros; negociantes ricos, sobretudo ingleses, alugam as mais lindas vivendas, quando não as adquirem, e costumam às cinco da tarde, fechados os negócios, recolher-se aqui a cavalo, para passarem a noite com a família em Botafogo. Sem dúvida a moda contribui para isso; mas deveras o ar aqui é mais puro e mais saudável do que na cidade abafada, e a vista sobre a baía e os morros fronteiros é realmente pitoresca; até os brasileiros aqui residentes são mais sociáveis do que seus irmãos da cidade. É, em parte, o exemplo dos europeus aqui residentes que a isso os anima e também se imagina que em Botafogo já se está no campo para poder deixar os costumes rígidos da cidade; a influência do ar fresco do mar torna os homens em geral mais cordiais, mais atenciosos e delicados uns para os outros.
Muitas dessas casas são altamente ricas e de gosto e pelos simpáticos jardins, onde estátuas de mármores atuam tão encantadoramente à sombra da mais pujante vegetação, tomam inteiramente a aparência de vilas italianas. Sem querer, o estrangeiro saudoso da pátria exclama: “Realmente, aqui é bom morar; também eu gostaria de levantar aqui a minha cabana.”15
Seidler trabalhava para a família real, naturalmente passaria a frequentar algumas das suas propriedades, entre elas a Fazenda Real localizada em Santa Cruz. Sobre a localidade, ele nos deixaria essa valiosa descrição:
A dez léguas do Rio de Janeiro a estrada atravessa a cidadezinha de S. Cruz, pertencente à grande fazenda do mesmo nome, com 4 a 5 léguas quadradas de área, a qual antigamente era propriedade particular do imperador, mas que agora pertence à nação, pois o governo afirma que D. Pedro a adquirira por forma ilícita. O imperador tinha aqui um palácio bastante elegante, que por causa da raça ele visitava frequentemente. Mais de mil escravos, todos pertencentes a ele, estavam sempre entregues ao cultivo dos extensos campos; também lhes competia tratar de uma porção de cavalos, bois, porcos e aves. Todos os produtos de S. Cruz eram diversas vezes na semana expedidos à venda para a cidade e rendiam enormemente ao imperador ávido de dinheiro, que pessoalmente se ocupava com a administração dessa fazenda, nos mínimos pormenores. Aliás D. Pedro, é sabido, empregava muitíssimo mais tempo e atenção na administração da sua fortuna pessoal do que na do Império e tinha muito mais jeito para enriquecer pessoalmente do que para reerguer as finanças do estado, profundamente decaídas. Raia pelo fabuloso o que de prata, ouro e diamantes ele levou consigo ao ser destronado; sem dúvida era o homem mais rico de seu tempo. A estrada atravessa essa propriedade e custou aqui enormes dispêndios porque sobre o solo pantanoso houve que construir em muitos pontos aterrados de seis a oito pés de altura; não obstante quando caem chuvas prolongadas a estrada fica tão má que os cargueiros atolam até a barriga na lama. A cidadezinha mesmo não pode absolutamente ser chamada bonita; consiste numa única fileira de casinhas baixas e mal construídas, geralmente penates de pobreza e desasseio.16
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14 - Ibidem, pp. 130-131.
15 SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Eleições sob Dom Pedro I, dissolução do Legislativo, que redundou no destino das tropas estrangeiras e das colônias alemãs no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2003. pp. 87-88.
16 Ibidem, pp. 92-93.
17 SCHLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é (1824-1826): Contribuições de um diário para a história atual, os costumes e especialmente a situação da tropa estrangeira na capital do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2000. pp. 195-96.
O testemunho de Carl Schlichthorst, militar alemão contratado para a guarda de Pedro I, que viveu na cidade em meados da década de 1820 é assaz ilustrativo da maneira com que essa região era descrita: havia uma acentuada tendência em se enfatizar o perfil aristocrático e bucólico do lugar, chamando atenção também para o seu caráter quase rural.
A cidade termina na ponte do Catete. Ao longo de sebes e belas casas de campo, o caminho acompanha o mar até onde começa Botafogo, renque de belas residências campestres formando suave curva ao longo da praia. Nos jardins, predomina um gosto que chamam francês e que preferiria fosse mourisco por se adaptar melhor à paisagem. A natureza oferece parques à inglesa que tornam qualquer imitação pueril. [...] As mais belas moradias são construídas um pouco distante da rua, no fundo dos jardins, ao pé dos morros e um tanto acima do nível da praia. A maioria, ao gosto mourisco, com cúpulas, arcos de forma estranha e uma escadaria ligeiramente inclinada à frente.17
O clérigo, historiador e escritor irlandês Robert Walsh esteve no Brasil nos anos 1828 e 1829, após ser nomeado capelão da embaixada britânica no Rio de Janeiro. Enquanto esteve na cidade, dedicou-se a desbravar a vida do escravo no país. Walsh era partidário do movimento pela sua abolição. E o irlandês destacaria em várias páginas do seu livro Notices of Brazil in 1828 and 1829. Foi nesse contexto que acabou redigindo páginas extremamente elogiosas sobre os subúrbios da cidade. Segundo Walsh, a região era muito procurada por conterrâneos que se fixavam no Rio. Os atrativos apontados do lugar constituíam boas razões para tal procura:
A casa tirada para nossa residência ficava inteiramente no outro extremo da cidade e a uma distância considerável. A passagem de um lugar para outro no Rio não está em linha direta; montanhas intervêm literalmente entre uma rua e outra; e, como você não pode escalar seus cumes, deve rodear suas bases. Uma série dessas colinas se aproxima tão perto do mar, deixando apenas um caminho estreito entre elas e a água. Além, existe outro espaço aberto de terreno plano, um pouco semelhante ao que descrevi, e chamado Catete, no qual uma nova cidade foi construída. Uma rua, com casas de um lado e aberta para o mar do outro, conecta os dois; e nesta era a nossa residência. A casa pertencia a um cavalheiro que fora oficial da marinha britânica, mas havia mudado o serviço; e do posto de tenente, foi promovido ao de comodoro no serviço brasileiro. Sua casa correspondia à sua estação e estava apta para a residência de um embaixador no Brasil.18
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Na visão detalhada que tinha sobre o território mais amplo da cidade e de seus arredores, ele reserva páginas elogiosas sobre a Glória, até porque seria exatamente nesta localidade que ele ficaria residência no Rio de Janeiro:
A cidade antiga estava quase exclusivamente confinada ao espaço estreito entre as colinas, que se estendia da Rua Direita ao Campo de Santa Anna. Agora, ela se estende quase até BotaFogo, de um lado, e S. Christovão, do outro, formando uma cidade nova; e quando a área dentro desses limites estiver cheia de casas, a cidade do Rio será tão extensa quanto qualquer outra na Europa. Nem isso é improvável, não há uma distância muito grande do tempo. Já, na memória das pessoas que residem lá, os acessos mais extensos e quase incríveis foram feitos à cidade; - todo o espaço sobre o Campo de Santa Anna era um pântano estagnado; agora está drenado e coberto de ruas; - da colina da Glória até o rio Catete, havia uma planície arenosa; agora é um grande distrito da cidade, cheio de casas; - o Mat Cavallos era um matagal acidentado, assim chamado pelos seus cavalos fatigantes; agora é uma rua fina e extensa. […] Da ponte do Catete ao convento de S. Bento, há uma avenida contínua de casas, desviando-se um pouco da linha direita de quase seis quilômetros.19
Outro cenário que causaria viva sensação no reverendo Walsh é a região que vai da “Baía de Bota Fogo”, o que explica a razão dela ser tão procurada pelos estrangeiros de altos cargos e/ou bens:
O jardim botânico […] fica a cerca de 13 quilômetros do Rio, e a estrada que leva a ele é muito agradável. Passa pela bela baía de Bota Fogo e pelo belo lago de Rodrigo de Freitas, onde um lado é delimitado pelas magníficas cordilheiras do Corcovado e o outro pelos românticos promontórios da baía e do lago. O jardim é um apartamento rico, com cerca de quinze hectares, dividido em compartimentos por avenidas exóticas, entre as quais a noz de Sumatra é a mais notável.20
Em 1833, seria a vez de do artista e diplomata britânico William Gore Ouseley desbravar os subúrbios do Rio de Janeiro. Ficaria na cidade até 1841, desempenhando a função de secretário comercial britânico e, posteriormente, como ministro especial. Nesse tempo ele reuniria uma infinidade de impressões, notas e desenhos, reunidos em 1852 em Description of Views in South America from original drawings made in Brazil, the River Plate and Parana. A parte dedicada ao “subúrbio” de Botafogo revela o quão grande já era o caráter aristocrático da região nos anos 1830:
Na estrada entre a cidade propriamente dita do Rio de Janeiro e a pequena baía de Botafogo, fica a vila de Mangueiras, assim chamada da avenida dos mangás (ou Anglicé, manga ou manga), levando a ela. Esta casa foi habitada por vários anos pelo Sr. W. Gore Ouseley, enquanto a Chargé d Affaires de sua Majestade no Brasil. Posteriormente, foi ocupada pelo príncipe Adalbert da Prússia, durante sua estadia no Rio de Janeiro; e pelo Exmo Hon. Sir Henry Ellis, quando enviado em missão especial à Corte do Brasil. Esta casa é um bom exemplo da chacra ou villa suburbana do Brasil. Ele possui uma bela vista do país, embora de fato muito mais perto do país, embora de fato muito mais perto da cidade do que muitas das casas ocupadas por membros da Corps Diplomatique, o governo, os comerciantes estrangeiros e outros. O Mangueiras foi construído por um arquiteto italiano. Toda a frente é ocupada por uma galeria de cerca de oitenta pés de comprimento, e a casa, situada na face saliente de uma colina, tem todos os benefícios da brisa do mar durante o dia e da brisa terrestre à noite. O jardim era luxuriantemente plantado com vários tipos diferentes de laranja e limão, banana, romã, palmeira e uma grande variedade de arbustos e legumes, peculiares ao Brasil; possuía, além da planta universal de café, em grande profusão, espécimes da planta do chá, cravo, canela e outras especiarias; araruta, mandioca (da qual é feita a tapioca) e muitas frutas e plantas de origem chinesa e indiana, todas bem-sucedidas no Brasil. 2¹
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20 No original: “The botanic garden […] is situated about eight miles from Rio, and the road leading to it is very delightful. It passes along the beautiful bay of Bota Fogo, and by the fine lake of Rodrigo de Freitas, where one side is bounded by the magnificent ridges of the Corcovado, and the other, by the romantic headlands of the bay and lake. The garden is a rich flat, comprising about fifty acres, divided into compartments by avenues of exotics, among which the Sumatra nut is the most conspicuous.” (Ibidem, p. 480).
21 No original: “On the road between the city proper of Rio de Janeiro and the little bay of Botafogo, is the villa of Mangueiras, so called from the avenue of manga trees (or Anglice, mango or mangoe), leading to it. This house was inhabited for several years by Mr. W. Gore Ouseley, while her Majestys Charge Affaires in Brazil. It was subsequently occupied by Prince Adalbert of Prussia, during his stay at Rio de Janeiro; and by the Right Hon. Sir Henry Ellis, when sent on a special mission to the Court of Brazil. This house is a good specimen of the “chacra” or suburban villa of Brazil. It commands a beautiful view of the country, although in fact much nearer to the country, although in fact much nearer to the city than many of the houses occupied by members of the Corps Diplomatique, the Government, the foreign merchants, and others. The Mangueiras was built by an Italian architect. The whole front is occupied by a gallery of about eighty feet in length, and the house being situated on the projecting face of a hill, has all the benefit of the sea breeze during the day, and of the land breeze in the evening. The garden was luxuriantly planted with several different sorts of orangest and lemons, bananas, pomegranates, palm trees, and a vast variety of shrubs and vegetables, peculiar to Brazil; it also possessed, besides the universal coffee-plant, in great profusion, specimens of the tea-plant, cloves, cinmamon, and other spices; arrowroot, mandioca (from which tapioca is made), and many fruits and plants of Chinese and Indian origin, all of which thrive well in Brazil.” - OUSELEY, William. Description of Views in South America from original drawings made in Brazil, the River Plate and Parana. London: Thomas McLean, 1852. pp. 39-40.
22 To the right on the road from the city to the bay and suburb of Botafogo is the district called Laranjeiras (or the “Orangery”). A good view of the entrance of the harbour and the back of the house of Mangueiras is obtained from this position. Plantations of coffee, oranges, tamarinds, and mangas, occupy the fertile soil of the valley below. The Laranjeiras road is one of those that lead to ascent of the Corcovado. It follows the winding course of a mountain brook, and the scenery is varied and beatiful. On either side are country houses, cottages, gardens, and “chacras” or villas, in their enclosed grounds. - Ibidem, p. 41. 23 GARDNER, George. Viagens no Brasil. Principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836- 1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 7.
Karl Robert von Planitz. BotafogoKarl Robert von Planitz. Botafogo e Caminho de S. Clemente, 1840.
Ele ainda escreveria comentários positivos, embora destacasse alguns problemas em comparação ao que se via em cidades da Índia: Falta nos arredores do Rio uma coisa que não devia faltar em nenhuma grande cidade – estradas para passeios de carro. É este um ponto a que na India se dá particular atenção, onde quer que se localizem sequer uns poucos de europeus. No Rio os que desejam fazer um passeio de carro, pela manhã ou à tarde, só o podem realizar em estradas públicas que apenas se prestam a corridas por umas poucas milhas fóra da cidade. Verdade é que existe, bem perto, o que se chama Passeio Público, grande jardim de ruas ensombradas, mas que só se destinam aos que andam a pé. À tarde, quando faz bom tempo, é bem frequentado pelos habitantes da cidade. O Jardim Botânico, situado cerca de oito milhas da cidade, é bastante frequentado.24
Ender, Thomas. Vallis Larangeiras prope Sebastianopolin [Laranjeiras], 1840
O missionário metodista norte-americano Daniel Parish Kidder, este por duas vezes no Brasil, de 1836 a 1837 e de 1840 a 1842. Em 1845 ele publicou seus relatos dessas passagens no livro Reminiscências de viagens e permanência no Brasil (Rio de Janeiro e província de São Paulo) compreendendo notícias históricas e geográficas do império e de diversas províncias. Embora tenha viajado por todo o país, ele fixou efetivamente sua residência na cidade do Rio de Janeiro. O fascínio exercido pela cidade foi tão grande, que procurou, num primeiro momento, detalhar até a evolução dos seus subúrbios: “A partir do centro da cidade, os subúrbios se estendem por cerca de quatro milhas, em três direções diferentes. Dentro desse dilatado perímetro acham-se as residências e os estabelecimentos comerciais das diferentes classes que compõem uma população de aproximadamente duzentas mil almas.”25 Tendo em conta as paginas seguintes do livro de Kidder, ficamos sabendo que as “três direções” diziam respeito à Glória/Laranjeiras/Botafogo, Catumbi/Engenho Velho/Mata-Porcos e São Cristóvão. Kidder e sua esposa Cynthia Harriet Russell Kidder – que acabaria falecendo no Rio em 1840 – decidiriam se fixar no “subúrbio” da Glória. Dali eles puderam contemplar o seguinte cenário, segundo depoimento de Kidder:
Descendo pelo lado oposto do morro da Glória chega-se à praia do Flamengo, cujo nome provém de aves de igual nome que costumavam frequentá-la. Ao longo dessa praia estende-se um correr de esplêndidas residências. Seus moradores deliciam-se com a brisa que vem do mar e gozam noite e dia o murmúrio ritmado das ondas. Paralelamente à praia corre a Rua do Catete, importante artéria que liga o Botafogo à cidade. A cerca de meio caminho entre este bairro e o centro fica o das Laranjeiras. Límpido arroio saltita no fundo de um precipício cavado nas fraldas do Corcovado.26
A ocupação da região por pessoas ricas é sugerida pela descrição do intenso trabalho de mulheres escravizadas que se distribuíam pelos rios da região, realizando serviços para a elite ali estabelecida:
Passeando-se pelas margens podem-se contemplar inúmeras lavadeiras dentro d"água batendo roupa sobre as pedras que se sobrelevam à corrente. Muitas delas saem da cidade pela manhã, com enorme trouxa sobre a cabeça, e voltam à tarde com toda ela já lavada e enxuta. Em diversos lugares vêem-se pequenos fogões improvisados onde preparam as refeições e grupos de crianças brincando pelo chão, algumas das quais já grandinhas, correm atrás das mães. As menores, porém, vão penduradas à costa das escravas sobrecarregadas com a mala de roupas.”27
O encantamento de Kidder pela cidade e seus “arredores” é inequívoco. Em outra passagem ele volta a se derramar:
O aqueduto é um canal coberto, feito de cantaria, dotado de certa declividade e de respiradouros a determinadas distancias, passa, ora por baixo, ora pela superfície da terra. Os panoramas que daí se descortinam excedem a toda descrição, tal a sua variedade e beleza. À direita vêem-se o vale das Laranjeiras, o Largo do Machado, o Catete, a entrada do porto e o mar das Laranjeiras, o Largo do Machado, o Catete, a entrada do porto e o mar alto; acolá, confinando com a outra encosta do morro, podem-se contemplar o Campo da Aclamação, a Cidade Nova, o esplêndido subúrbio do Engenho Velho, e, longe, a extremidade superior da baía, cercada de montanhas e pontilhadas de ilhas.[...] Só os morros de Santo Antônio e do Castelo impedem que deste ponto se descortine a maior parte da cidade. Entretanto, a nesga que se percebe entre assas duas eminências já é bastante bela e o olhar do observador pousa com prazer sobre essa extraordinária combinação de obras de arte e de belezas naturais.28
Kidder nota também, assim como Gerge Gardner, que “muitos dos estrangeiros residentes no país, principalmente os ingleses e norte-americanos, instalam suas famílias em algum subúrbio distante da cidade e fazem a viagem de ida e volta pela manhã e à tarde.”29 Aspecto esse que demonstra que o deslocamento diário entre a cidade e seu “subúrbio” talvez fosse um privilégio quase que restrito às camadas mais ricas da sociedade. Ao mesmo tempo, revela também como as condições de vida, o frescor e a salubridade, eram muito valorizadas por essa aristocracia. Tanto assim que o próprio Kidder sempre fez questão de morar nos subúrbios. Por sinal, depois de seis meses vivendo na Glória, o casal se muda para o “Engenho Velho, o principal subúrbio ao poente da cidade”. Sobre o cenário mais amplo oferecido pela localidade, lemos:
Considerações finais
A evolução dos subúrbios e arrabaldes do Rio também era registrado pelos jornais da época. O olhar da imprensa carioca, diferente do olhar dos viajantes estrangeiros (a esmagadora maioria da Europa e Estados Unidos), não buscava desvendar aspectos fascinantes e novidadeiros para o encantamento de algum público. E esses viajantes se pautavam em parâmetros e critérios de beleza e comodidade próprios do contexto de onde eram originários. Já os jornais da cidade buscavam os subúrbios com outras premissas e com outro tipo de abordagem: não se tratava de registrar memórias ou curiosidades, tal como num diário, mas descrever fatos cotidianos a serem lidos por um determinado público da mesma cidade. E na busca desses fatos ao longo do século XX, os jornais foram compondo involuntariamente um mapa desses subúrbios e arrabaldes da cidade do Rio, destacando seus aspectos, marcos, agentes e experiências. Mas independente do enfoque específico dos viajantes europeus e norte-americanos, as descrições sobre os subúrbios foram redigidas em centenas de cadernos de campo, com ricos e expressivos relatos sobre seus aspectos geográficos, biológicos e sociológicos. E não deixa de ser curioso notar que os subúrbios celebrados por esses viajantes ficassem pelos lados de Botafogo, Laranjeiras, Jardim Botânico, Leblon, Catete e Glória. Não resta dúvidas que a maciça ocupação da área que vai da Glória ao Leblon por parte da elite de estrangeiros que aportavam no Rio, em especial na primeira metade do século XIX, teria grande influência na consolidação dessa mesma região como “zona nobre” da cidade, a chamada Zona Sul. A imagem sobre o território, um lugar da elite, estava bem sedimentado desde aquela época. No século XX esta mesma imagem condicionaria a ocupação dessa região pela classe média carioca e o privilegiamento dos poderes públicos em termos de investimento e melhorias urbanas.