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Chão Urbano

CHÃO URBANO ANO XIX Nº1 JANEIRO / FEVEREIRO DE 2019

25/03/2019

Integra:

CHÃO URBANO ANO XIX Nº1 JANEIRO FEVEREIRO DE 2019

Editor

Mauro Kleiman

Publicação On-line

Bimestral

Comitê Editorial

Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional)

Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF

Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)

Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)

Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editores Assistentes Júnior

Beatriz Mesquita Angelo e Julia Paresque

IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador

Mauro Kleiman

Equipe

Beatriz Mesquita Angelo e Julia Paresque

Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares


ÍNDICE 

ACESSO A REDES DE ÁGUA/ ESGOTO E COLETA DE LIXO EM ÁREAS PRECÁRIAS DAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO: LIMITES E PROBLEMAS QUANTO À ECONOMIA CIRCULAR E METABOLISMO URBANO.

 

 

TEXTO

ACESSO A REDES DE ÁGUA/ ESGOTO E COLETA DE LIXO EM ÁREAS PRECÁRIAS DAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO: LIMITES E PROBLEMAS QUANTO À ECONOMIA CIRCULAR E METABOLISMO URBANO.

                                                                                                                                                                                                          Mauro Kleiman ¹ 
¹ Prof. Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro-Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil, kleiman@ippur.ufrj.br
O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-Brasil ao Projeto de Pesquisa nº 301979/2017-0



RESUMO

O artigo trata dos limites a uma economia circular se relacionar seu quadro de redes e serviços de água e esgoto e coleta de lixo às definições de metabolismo urbano no caso das Favelas. A partir de pesquisa sobre o quadro de implantação de água e esgoto e coleta de lixo em Favelas, anotamos que ações para implantação de redes oficiais de água/esgoto, e coleta de lixo  tem sido executadas, mas não como uma política universal, pois visam apenas partes de favelas, ainda não possibilitando se vislumbrar impactos urbanísticos e melhoria das moradias que signifique alteração do quadro encontrado. O texto coloca em discussão as intervenções para implantação de redes de água e esgoto com um padrão não adequado a áreas com diferenças tipológicas de moradia e urbanísticas diversas da cidade formal, e a problemática do lixo sequer recolhido que implicam em limites e problemas para uma economia circular e metabolismo urbano.

Palavras-chave : Economia Circular, Favelas, Infraestrutura, Metabolismo Urbano, Rio de Janeiro

 

ABSTRACT

The communication deals with the limits to a circular economy if it relates its framework of networks and services of water and sewage and garbage collection to the definitions of urban metabolism in the case of the Favelas. From research on the water and sewage collection and waste collection framework in Favelas, we note that actions for the implementation of official water / sewage networks and garbage collection have been carried out, but not as a universal policy, since they aim at only parts of favelas, still not possible to see urban impacts and improvement of housing that means alteration of the picture found. The text calls into question the interventions for the implantation of water and sewage networks with a pattern that is not suitable for areas with typological differences of dwelling and different urbanities of the formal city, and the problem of garbage even collected that imply limits and problems for an economy circular and urban metabolism.

Keywords: Circular Economy, Favelas, Infrastructure, Urban Metabolism, Rio de Janeiro.

 

 1-INTRODUÇÃO

O atual momento, já quase na final da segunda década do século XXI, mostra um novo contexto nas Favelas do Rio de Janeiro. Assinale-se logo no primeiro plano a intensidade cada vez maior da expansão vertiginosa de novas moradias, ou acréscimos em moradias existentes em todas as favelas. Registre-se , igualmente, o surgimento e crescimento de novas favelas em todas áreas da metrópole, com acentuação em áreas da zona Oeste- Itanhangá, Vargens, Jacarépagua.

As favelas se verticalizaram; se tornaram mais densas, mais delas se conurbaram formando e/ou ampliando os denominados Complexos de favelas; se espalharam por novas zonas( como no caso da Zona Oeste da cidade); ganharam maior e mais diversificado comércio e serviços; se tornaram locais de forte produção imobiliária informal numa dinâmica rentista. Ao mesmo tempo, nestes últimos quatro anos de nossos estudos ( 2014 a 2018) verificamos que a política de intervenção para urbanização de favelas que procurava se reatualizar através do PAC- Programa de Aceleração do Crescimento, em concomitância com a permanência de outros  programas de níveis de governo estadual e municipal,  combinado,  em  alguns  casos,  com  uma  política  de  segurança pública(UPP), que abriria caminhos para ações do Estado de caráter sistemático e de mais longo prazo para a implantação de infraestruturas de serviços urbanos , entram ambas em colapso, deixando um rastro de obras de infraestrutura inacabadas ou mal executadas, e uma forte insegurança de vida nestes lugares.

Ao percorrer as várias partes dos Complexos de favelas examinado, e contando com a ajuda de membros das famílias com que fizemos laços para a análise pretendida, verificamos a existência de partes ainda mais precárias no interior da precariedade nas favelas. Estas partes contam com uma tipologia de moradia praticamente já não existente, ou não mais registrada e reconhecida, que remete às construções improvisadas que durante muito tempo serviram de imagem da favela como lugar totalmente diferenciado da cidade formal, e estrutura urbanística diversa da formal e mesmo de favelas já mais consolidadas, e com quadro de grave ausência e/ou precariedade de água e esgoto, e alguns casos parcial e pontual ação pública para prover estes serviços. Quando se verifica esta situação diferenciada, por um lado permanece, na ausência e/ou precariedade, o envolvimento de todo o núcleo familiar numa busca permanente para suprir-se dos serviços, em detrimento de outras atividades. Este quadro tem por efeito, determinado padrão de moradia e rotinas de seus habitantes. Por ouro lado, quando se observa obras, esta situação pode vir a mudar, com a efetiva introdução de água e esgoto nas moradias, alterando a permeabilidade e seus percursos entre espaço privado e público a que estavam obrigados os moradores e valorizando-se o espaço privado. É neste espectro, entre a ausência e/ou precariedade e processos de implantação de água e esgoto, em diferentes níveis, que vislumbramos a possibilidade de examinar qualitativamente os espaços internos das casas se mantendo ou se alterando entre o invenção com o desvio de uso de objetos antes utilizados para outros fins, e a passagem por mudanças nos seus arranjos de cômodos ou divisões e nas rotinas dos moradores, o que nos leva a propor  a continuidade do estudo numa nova abordagem com foco no interior das casas de áreas precárias das favelas, pouco abordadas ou obscurecidas pela forma atual das moradias faveladas.

A permanência da ausência e/ou precariedade de infraestruturas básicas de abastecimento de água e coleta de esgoto e lixo, apesar de relativas, pontuais e parciais ações no sentido de seu provimento às favelas do Rio de Janeiro, colocam em questão a possibilidade desses lugares populares serem contemplados no interior dos conceitos de economia circular e metabolismo urbano, dando base a uma reflexão crítica sobre o assunto, em forma de ensaio, através de análise qualitativa com pesquisa de campo em favelas.

Economia Circular e Metabolismo Urbano exigem como suporte a existência de infraestrutura. O metabolismo urbano entendido como soma de todos os processos técnicos e sócioeconômicos que ocorrem nas cidades resultando em crescimento sustentável pela produção de recursos e coleta com reciclagem de seus resíduos conduz a um ambiente de trocas de produtos, movimentos da força de trabalho, informações, sinais, recebimento de insumos, serviços, não poderia existir sem uma base de infraestrutura “Roncayolo (1997)”. Já economia circular se assenta na redução, reutilização, recuperação e reciclagem de materiais, água e energia, substituindo o conceito de fim-de-vida da economia linear, por novos fluxos circulares de reutilização, restauração e  renovação, num processo integrado, onde a economia circular é vista como um elemento chave para promover a dissociação entre o crescimento económico e o aumento no consumo de recursos, relação até aqui vista como perene e inexorável, se baseando nos mecanismos dos ecossistemas naturais, que gerem os recursos a longo prazo num processo contínuo de reabsorção e reciclagem, redesenhando os processos e  promove um modelo econômico reorganizado, através da coordenação dos sistemas de produção e consumo em circuitos fechados, visando para além do foco estrito das ações de gestão de resíduos e de reciclagem, com uma ação mais ampla, desde do redesenho de processos, até à otimização da utilização de recursos Materializa-se na minimização da extração de recursos, maximização da reutilização, e aumento da eficiência. Seu conjunto de elementos também necessita de forma obrigatória da existência do suporte de infraestrutura consolidada.

A infraestrutura, é tomada na sua fundamentação teórica, como processos articulados em redes capazes de promover relações sociais, seus processos normativos e suas determinações comportamentais e sociabilidades; suas funções como estruturante da economia capitalista como parte da chamada cooperação urbana(aproxima e realiza integração entre unidades produtivas; reduz tempo de circulação de mercadorias; aproxima produção e consumo); e sua natureza multiescalar traspassando barreiras politico administrativas e servindo as diferentes escalas do local ao regional, nacional e global . Rompe-se , assim, sua ideia de elemento meramente técnico e estanque por uma ideia de nexos e interações entre infraestrutura e território. Entendemos, que à permanência de uma corrente que retrata a infraestrutura como objeto meramente técnico, tratado como algo estanque aos demais elementos do território, trabalhamos com aquelas referências teóricas que advogam sua compreensão como objeto sócio-técnico”Amar (1987)”; “Dupuy(1985)”.Tomado neste novo sentido a infraestrutura é parte do processo de estruturação da cidade-metrópole, como estruturados dos vários fluxos e interações  fazendo parte de sua própria produção, organizador do território e das redes que o compõem;, tratando-se de mais que um instrumento de ordem técnica, ou isolado da formação em que se dá, de um processo de produção do espaço socialmente construído através de sua articulação em redes, imersas e constituintes de relações sociais especificadas pela sua distribuição espacial. É, afinal, um elemento estruturante para a ordenação e desenvolvimento do território em suas várias escalas, um instrumento sócio-técnico, uma engenharia com função social, pondo em relação física e sócio-simbólica o território, solidarizando-o ”Offner(1994)”.

Para a análise pretendida trabalhamos assim com a dimensão social da acessibilidade dos serviços de água/esgoto, e coleta de lixo, por meio de metodologia de análise qualitativa, com pesquisa de campo com entrevistas semi-estruturadas com os moradores , e observação técnica direta de campo. Os casos estudados foram escolhidos entre favelas do Rio de Janeiro que ainda estejam sendo objetos de obras de água e esgoto, e aquelas com obras já concluídas, permitindo assim uma análise de vários momentos: do impacto na sociabilidade estabelecida na ausência e/ou precariedade de acesso, até a questão da prestação, operação e manutenção dos serviços, tomando-se o período de tempo do início de políticas sistemáticas para implantação de serviços básicos em 1995 e analisando suas várias fases. Neste sentido examinamos os Complexos de Favelas do Alemão; da Maré; da Cidade de Deus; Manguinhos; Cantagalo/PavãoPavãzinho, e Acari.

O objetivo do estudo foi verificar o quadro de água/esgoto e coleta de lixo, e até que grau os processos resultantes de políticas de urbanização propiciam reais condições de habitabilidade e mudanças no cotidiano, e no interior das casas, e se as premissas de uma economia circular e metabolismo urbano estariam presentes, seus limites e dificuldades.

 

2-DISCUSSÃO SOBRE O QUADRO DE ÁGUA/ESGOTO E LIXO NAS FAVELAS

Será somente a partir de 1995 que passa a formular-se e aplicar-se uma política que pretende implantar, de forma abrangente e sistemática, redes de água e esgoto, e ações de coleta de lixo  nas favelas. A política de melhorias urbanas tinha como ideia implantar conjuntamente redes de água e esgoto, contendo todos seus elementos que, articulados, além de coleta regular de lixo que poderiam possibilitar a existência de serviços urbanos básicos, pretendendo-se, assim, incluir as favelas na cidade oficial/legal.

Esta política faz-se através de um desenho de um padrão em comum: tem porte hiperdimensionado e sofisticação técnica, sendo de natureza macro-estrutural O modelo padrão das redes caracterizado por seu grande porte, hiper-dimensionado e contando com sofisticação técnica, tem sido aplicado igualmente, de forma estandartizada para todas as partes das cidades brasileiras, sem nelas distinguir suas diferenças sócio-econômicas.

Constituiu-se assim uma uniformização de tipologia de rede e também de sua normatização (regras técnicas de engenharia, desde as peças componentes à implementação, operação e manutenção, e de tarifação). Como no Brasil o padrão escolhido equipa de maneira plena apenas a parte da cidade dita formal em nexo com as camadas de maior renda e interesses imobiliários, de acordo com a separação sócio-espacial de usos e funções diferenciados por classes, o modelo padrão da rede de água/esgoto e coleta de lixo, foi concebido para atender apenas esta parte. Em primeiro lugar, porque seu porte e sofisticação técnica exige sua alocação onde exista demanda solvável que minimamente reponha o custo de implantação, operação e manutenção, o que exclui as camadas populares, que não têm renda para pagar a tarifação do acesso. Em segundo lugar, seu projeto de engenharia prevê uma correspondência com a ortogonalidade das cidades, não encontrada na estrutura urbanística das favelas onde as “ruas” são aquilo que sobra da superposição das casas, de modo que o modelo da rede não “consegue” nelas penetrar. As soluções encontradas para este tipo de situação são as ações para um redesenho urbanístico, naqueles lugares onde seja possível alterar a morfologia típica da favela que se configura como não-ortogonal. No Rio de Janeiro, mesmo em favelas situadas em locais com grande aclive, em morros, onde tem sido possível, tem sido alterado o desenho morfológico tradicional do lugar, em parte com abertura de ruas carroçáveis ou alargando as já existentes tornando-as carroçáveis, ou seja com um mínimo de três metros de caixa de via, e em becos e escadarias busca-se adapta-los  a este padrão, pavimentando-os e se possível alargando-os. Com esta intervenção nas vias implanta-se rede em formato de “árvore”, ou seja de um único ponto da nova rede oficial implantada sai um ramal que se divide em tantas partes quantos forem os domicílios a serem ligados. Isto só é possível nos lugares onde se consegue colocar redes convencionais. Onde não é possível esta forma a ligação das moradias se faz por ligações individualizadas da rede convencional até cada domicílio com ponto final em cada casa. As redes assim implantadas não podem ser entendidas como rede completa mas parciais, pois a primeira tem como característica a conexão de todos elementos do lugar de maneira equivalente. Nas ligações individualizadas observamos problemas de volume insuficiente para as atividades e necessidades do dia-a-dia, pressão intermitente, e não regularidade de atendimento no abastecimento de água, assim como para sua manutenção dado estarem localizadas as casas em posição de “final” de rede sem articulação plena com a rede convencional alocada em ruas ortogonais. Verificamos, igualmente, que estes domicílios apresentam problemas para a devida coleta de esgoto e seu transporte até a rede convencional dado o frequente entupimento destes ramais individuais, seja por dimensionamento da tubulação não ser o suficiente para atender o volume coletado, seja pelo posicionamento e caimento da tubulação impedir correto escoamento. No que toca ao lixo, se anotou, em geral, duas principais situações. Primeiro se verifica que grande parcela dos moradores junta os resíduos em sacolas plásticas e os lança para fora das casas na direção dos becos e vielas Em segundo lugar, quanto à coleta de lixo, de maneira geral, para tal os moradores devem sair de suas casas e leva-lo a determinados pontos onde veículos passam sem regularidade de tempo definida, para remover grandes volumes de resíduos, tanto orgânicos, como entulhos de obras, móveis descartados(sofás, fogões, geladeiras,armários, televisores,vasos sanitários,entre outros). O depósito em determinados pontos decorre da alegação da inexistência de vias de passagem com caixa suficiente para caminhões de coleta, sendo, então, um serviço público que deveria ir a cada casa transferido ao morador.  

Assim sendo, podemos apontar que o modelo estandartizado de rede revela capacidade de responder a especificidade da demanda das áreas de camadas de maior renda, colocando problemas para uma resposta as de menor renda, como nas favelas examinadas. A uniformização das redes portanto não conduz à universalização dos serviços, e , sim, uma aplicação caso a caso(não se trata de programa geral de saneamento de favelas)  respondendo a determinada situação dada emergencialmente, englobando nova organização urbanística e, por vezes, nova tipologia de moradia, e exigem , principalmente, medidas administrativas, normas, regulamentos, regras compartilhadas e taxação dos serviços, tudo antes inexistente nas favelas. Implantar redes oficiais e equipamentos de infraestrutura de água e esgoto e coleta regular de lixo por domicílio introduz nas favelas toda uma gama de novos objetos acompanhados por regras e normas oficiais que colocam a necessidade de redefinir rotinas, gestos ,ações, condutas próprias do mundo urbanizado.

Anotamos que o modelo adotado segue o padrão e desenho para a cidade formal, não percebendo, ou não levando em conta a cultura e modo de vida de décadas sem ações do Estado para provimento de água e esgoto e descarte de lixo, onde os moradores , através de táticas e práticas configuraram seu provimento. Isto será, combinado com o intenso adensamento e verticalização que vem ocorrendo nas favelas, e a especificação de sua tipologia urbanística e habitacional arquitetônica diferenciada, onde inexistia articulação com redes oficiais de água e esgoto e coleta domiciliar de lixo, ou precariedade de atendimento, o quadro tem se agravado, e onde ocorreram obras de implantação dos serviços o padrão utilizado não consegue apresentar capacidade de resposta às especificidades das comunidades populares das favelas.

Constitui-se, assim, como fundamental questionar-se sobre(i)a estandartização da rede, que no Brasil tem padrão hiperdimensionado e sofisticado tecnicamente,e (ii) o modelo de intervenção macro-escalar em face do fenômeno de conurbação de favelas formando os denominados “complexos”, onde observa-se uma importante heterogeneidade em seu interior,nas dimensões sócio-economicas. Entendemos a favela como espaço de heterogeneidades-como de renda ,tipologia habitacional, tipologia urbanística,acesso a infraestrutura e equipamentos públicos coletivos,acesso a segurança pública(UPP) em algumas favelas(até a atual falência e/desmontagem do projeto de segurança)..

O Estado, durante pelo menos seis décadas, pratica uma política de ausência, não articulando estas áreas de habitação populares às modernas redes de infraestrutura que vinham sendo implantadas e desenvolvidas nas cidades, muitas vezes ao lado destas áreas populares. O resultado desta “não-política” ou política da ausência,  foi que à semelhança da auto-construção da habitação, as camadas populares terão também a necessidade de mais um sobre-trabalho de auto-construírem sua infraestrutura. A partir da década de 1980 observa-se a configuração de políticas institucionais de urbanização de favelas em substituição a idéia de remoção desenvolvendo-se um discurso de intervenção por meio de ações integradas-política de habitação com dotação de infraestrutura,coleta de lixo,equipamentos urbanos,etc.- que na realidade não se concretiza a não ser por alguns êxitos parciais e pontuais. A partir de meados da década de 1990 identificam-se Programas que propugnam a integração das favelas aos bairros, com o objetivo de  inseri-las na cidade formal. A questão que coloca-se é que estes programas tem se revelado pontuais atingindo apenas algumas favelas e não um programa generalizador, e por outro aspecto seus resultados são parciais na articulação à redes de água e esgoto, com problemas de operação e manutenção, e no tocante a coleta de lixo não se tem um serviço regular serviço prestado.

O modelo adotado de rede  de água e esgoto revela capacidade de responder a especificidade da demanda das áreas de camadas de maior renda, colocando problemas para uma resposta as de menor renda. Assim se  temos uma novidade singular de aplicação de recursos para acesso à meios essenciais para camadas de renda baixa, esta modificação não altera o padrão, pois mantém-se fortes e maiores investimentos nas áreas de maior renda, aparentemente introduzindo-se apenas uma espécie de “desvio” no padrão para um atendimento em áreas de baixa renda, que não altera substancialmente seu conteúdo, devendo ser levantado e analisado, como propomos no projeto ora apresentado, o grau de urbanização que estaria sendo atingido quanto a implantação e prestação de serviços urbanos nas favelas.

A política de infraestrutura em favelas no Brasil caracterizou-se até meados da última década do século XX pelo que denominamos de uma “não-política”, excluindo estes lugares pobres da articulação com os serviços de água e esgoto. Assim, a favela enquanto lugar da ausência e/ou precariedade de acesso a serviços básicos à vida teve que ser espaço da invenção e informalidade na produção da sua estrutura urbanística e da moradia, da busca do provimento dos mesmos.

Ao se pensar a favela as fronteiras entre espaço público e privado perdem a nitidez, na medida que não existe nela nem uma privatização estrito senso do território, nem a presença do Estado que pudesse lhes inscrever na esfera pública. Mas a ausência e/ou precariedade de acesso-articulação a redes oficiais de infraestrutura como as de água e esgoto, entre outras, fez com que os moradores procurassem, de forma cotidiana e várias vezes ao dia um percurso, uma passagem permanente, ainda que intermitente entre o espaço privado da moradia e o público para se prover de serviços urbanos, enquanto que o Estado brasileiro praticou uma “não–política” isentando-se da implantação de serviços básicos, ou, por vezes,   se fez presente em ações pontuais e parciais( como , por exemplo na “política da bica d’água”), fazendo uma espécie de “ponte” improvisada para uma inserção também intermitente no espaço público.

Ao introduzir-se redes coletoras de esgoto e de abastecimento de água, e coleta de lixo, os moradores passariam a ter a possibilidade de não necessitar obrigatoriamente de sair de casa para fazer atos fisiológicos e buscar o líquido, e descartar resíduos, propiciando-lhe certa autonomia e isolamento, com valorização da vida privada. Ao se implantar estas infraestruturas básicas se traz com elas as regras de compartilhamento de um serviço coletivo, sua tributação através de taxa de acesso, suas normas e a necessidade do aprendizado de seu uso, o que deve ensejar mudanças culturais , incluso nos hábitos de higiene corporais e de organização e limpeza das casas e da cidade.  Ao mesmo tempo que valoriza o privado estar articulado a redes oficiais de água e esgoto oferece a possibilidade de  pertencimento podendo o morador assumir seu lugar na cidade formal. A implantação de infraestruturas de água e esgoto, e coleta domiciliar de lixo em favelas implicaria em mudanças culturais, espaciais, e nas relações e fronteiras entre as esferas pública e privada, alterando praticas cotidianas. 

A primeira questão, contudo, que se coloca, é que dados os atrasos, obras não conclusas, instalações apenas de engenharia civil, e falta de partes do que seriam a rede,e a sua operação e manutenção irregulares , assim como coleta de lixo só em determinados pontos onde o próprio morador conduz os resíduos e seu recolhimento se faz em temporalidades irregular, o cumprimento da efetividade social dos serviços ainda não se fez sentir, ou apenas se fez pontual e parcialmente.

Nas áreas onde a prática cotidiana era de pegar água de poço, bombeá-la na rua ou fazer a ligação clandestina, e criou-se a expectativa de ter abastecimento canalizado com água tratada, a decepção é muito intensa de ver obras de engenharia prontas , mas onde, por exemplo, a água não chega às moradias por conta da inexistência de rede de distribuição para as casas. Em áreas onde conseguiu-se concluir as obras, a vida diária mudou: alteram-se as temporalidades, os ritmos, rompem-se as repetições da obrigatória saída da esfera privada para inserção na pública em busca do líquido. Como não existe completude registram os moradores problemas de frequência – a água não entra diretamente – insuficiência de volume para as necessidades familiares diárias, e muitos problemas de variação de pressão. Apareceram também indicações de problemas na qualidade biológica da água. Mas se constata um “descasamento” entre as obras de água e esgoto: em algumas favelas foram feitas (ainda que algumas obras apenas parcialmente) obras de esgoto e não as de água, em outros as de água e não as de esgoto; em outros casos faz-se a pavimentação e drenagem das ruas, mas não a rede de esgoto, em outras pavimenta-se as ruas mas não se faz a rede de águas pluviais.

No que concerne mais especificamente ao esgoto se observa, igualmente, obras paradas ou inconclusas. Onde se construiu rede de coleta domiciliar, o sistema aplicado ao invés de ser o separador absoluto como determinado no projeto acabou sendo o unitário que junta água de chuva com esgoto. Esta “solução” provoca problemas de entupimentos, vazamentos e retorno de esgoto às casas, pois os canos do esgoto foram dimensionados para o sistema separador. Apesar de terem sido executados mecanismos de inspeção e limpeza o sistema unitário não da conta do volume de água de chuva somado ao de esgoto. Onde a rede coletora atendeu ao especificado no projeto, o cotidiano modificou-se, pois eliminou-se o mal cheiro, a impossibilidade de sair à rua, etc. Mas existe o problema do destino do esgoto estar sendo a rede pluvial mais próxima, por ausência da obra do tronco coletor que levaria o fluxo para uma estação de tratamento que não previa este tipo de fluxo e matéria.

Outro ponto assinalado é que, onde foram feitas as obras, existem problemas de manutenção e operação das redes: vazamentos na rede água, rompimentos e entupimentos na rede de esgoto demoram muito a serem consertados ou não o são. Apesar de implantação de redes oficiais ocorre que, no mais das vezes, os bairros no entorno das favelas têm ausência ou precariedade de funcionamento das redes (notadamente a de esgoto), e por outro lado, o efetivo funcionamento das redes construídas mostram problemas de operação, pois a Cia. Estadual não quer assumir rede feita pela prefeitura, ou se faz a ligação não faz a manutenção, o que impede a efetividade plena dos serviços. Persistem, assim, alguns problemas de pressão, com variação ao longo do dia, não atingindo homogeneamente todas as casas. Ainda verificam-se manobras para levar água e uma parte a outra, e aponta-se, também para abastecimento irregular( por exemplo é comum a água entrar duas vezes por semana ao invés de diariamente, ou faltar água uma vez ao mês por uma semana), assim como a questão de manutenção mostra-se difícil, com tempo para consertos chegando a levar de 10 a 14 dias, e de entupimentos na rede de esgoto que extravasa em vários pontos. Os moradores, observando sua não resolução pela companhia de água e esgoto, procuram resolvê-lo de maneira alternativa, vazando a tubulação ou lançando, de novo, o esgoto a céu aberto, apontando também, que nas favelas(principalmente nas de maior porte) só atendem-se parte dos domicílios.

Quanto a questão do lixo, de fato se fizeram várias experiências para sua coleta mais regular e mesmo domiciliar sem o morador ter de levar os resíduos até determinado ponto. Entre estas experiências destacamos as de “gari comunitário”, onde os moradores de favelas eram contratados para coletar o lixo domiciliar e varrer as ruas; as de uso de veículos de menor porte(espécie de pequenos tratores com caçambas) para poder adentrar em becos e vielas para coleta domiciliar; “garis alpinistas” para recolher enormes volumes de lixos jogados nas encostas de morros onde favelas se instalam; uso periódico(como uma vez por semana, em geral) de grandes tratores e caminhões para recolher verdadeiras “montanhas” de entulhos, móveis de todos os tipos, lixo orgânico, entre outros, que formam os chamados “lixões” em cada favela; um programa de reciclagem de lixo, no qual os moradores levavam o que poderia ser de alguma forma reutilizado a determinado ponto(em geral a sede da Associação de Moradores da favela) e ganhavam em troca bônus de redução na conta de eletricidade .

Assina-lhe-se que de todas estas experiências resta atualmente de maneira mais plena apenas o recolhimento de “lixões” por grandes tratores e caminhões, mas ainda assim dependente do orçamento público para obras e manutenção de vias , muito restrito nos dias atuais pela opção de forte ajuste fiscal neoliberal. Mais recentemente vem sendo instaladas, nas vias mais largas que dão acesso as favelas ou no seu interior, grandes caçambas com tampas movidas a pedal onde são os moradores que seria para levarem o lixo orgânico até elas que será recolhido por caminhões normais de coleta, mas os moradores as mantém permanentemente abertas com pedaços de madeira ou cabos de vassouras e depositam todo tipo de resíduo ali dentro. 

 

3. CONCLUSÃO

Apermanência da ausência e/ou precariedade de infraestrutura de água /esgoto e coleta de lixo na maior parcela das favelas analisadas na pesquisa, e a implantação parcial e pontual de infraestrutura de água e esgoto, e de coleta de lixo, e o quadro encontrado a partir dessa ação permite tanto uma reflexão sobre seus impactos na vida e estratégias cotidianas indagando-se sobre sua implicação na redefinição das fronteiras entre público e privado, como sobre as possibilidades de aderência a uma economia circular e princípios do metabolismo urbano.

Em primeiro plano se observa um “descasamento” entre a cultura e hábitos das comunidades e técnicas implantadas, normatizadas e regularizadas, pois se a introdução de água e esgoto de fato introduzem um elemento de novidade no processo de urbanização brasileira. De fato, dotariam as favelas de certo grau de infraestrutura, contudo, o que se coloca, é que tal implantação de serviços básicos se faz por meio de um padrão idêntico ao utilizado nas áreas de maior renda: um desenho hiperdimensionado, com obras de grande porte e com sofisticação técnica, com alto custo, e que não toma em conta  a tipologia habitacional e a estrutura urbana das favelas, e não observa que se desenvolveu e consolidou-se de um conjunto de práticas cotidianas que configurou-se na ausência de política de infraestrutura básica para estes assentamentos. Ao seguir nas favelas o padrão de infraestrutura das áreas de maior renda poderia se pensar que o Estado procura uma integração plena destes assentamentos na cidade os formalizando. Estas escolhas evidenciam a busca de fazer prevalecer as mesmas normas e regras e seus consequentes comportamentos e condutas existentes na cidade formal nas favelas. Isso significaria, se de fato a implantação obtivesse resultados plenos, que: (a)os moradores teriam que(de maneira rápida) apreender um conjunto de códigos, normas, regras para uso dos objetos e equipamentos de infraestrutura e coleta de lixo; (b) poderia conduzir a uma valorização do privado, a uma “intimização” da vida cotidiana, rompendo a temporalidade da repetição de ações individualizadas para se prover de água e descartar esgoto e lixo, (ações que tem ritmos próprios e desiguais por seu caráter individual), possibilitando uma dissociação entre público e privado.

Esta intenção de estender as mesmas normas e regras da cidade formal para as favelas será colocada em contradição , pois no que se pode acompanhar, observar com olhar técnico, e se confirma nas entrevistas com moradores, a utilização do mesmo padrão de redes da cidade formal não tem conseguido estabelecer na plenitude, prover redes com todos seus componentes e faze-las funcionar com todas suas propriedades de forma a prestar serviços continuados e suficientes para a vida diária, o que não permite a intenção primeira de valorizar o privado separando-o do público ao não tomar em conta  a cultura e práticas cotidianas  configuradas na ausência e/ou precariedade de serviços básicos, e querer altera-la de chofre, não obtém êxito pleno e continuado na passagem entre o âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado para o âmbito urbanizado, de modo que as infraestruturas introduzidos não conseguem ser compreendidos e usados. A pretensão  de uma integração com a cidade formal e inclusão social envolve completar um percurso que estaria em curso na direção de um âmbito urbanizado, mas que parece carecer de um entendimento que este processo, que se trata na verdade de uma semi-urbanização em algumas favelas ou em parte de algumas favelas, e de persistência da não-urbanização em outras, este processo não é igual a similares na cidade formal, pois  nas favelas sua concepção esta eivada de desvios de uso, de invenções e estratégias para provimentos alternativos próprios das respostas viáveis às condições de vida dos moradores. Não seria possível, assim, fazer a apropriação das tipologias de moradia existentes e de parte da estrutura urbanística, como tem sido tentado pelas intervenções públicas  ainda assim parcialmente, sem procurar entender e aceitar,  ou pelo menos dialogar, com as estratégias cotidianas e a cultura que se configurou na vida dos moradores, expressados na estrutura urbanística e tipologia de moradia das favelas. 

A passagem da ausência e/ou precariedade de redes e serviços de água e esgoto para a sua disponibilidade, pois esta implica em novos hábitos cotidianos envolvendo mudanças na higiene corporal, no preparo de alimentos, na limpeza das casas, na saúde. Trata-se de uma mudança de modelo cultural que ao introduzir novos objetos e equipamentos de infraestrutura traz consigo outras regras a serem compartilhadas e seguidas como condutas obrigatórias, e uma inscrição tributária na taxação de acesso e consumo de infraestrutura e seus serviços que conduzem a novas práticas cotidianas, mas que são processos necessariamente lentos e que envolvem a compreensão do que se passa- ou seja da intenção do Estado de agregar os moradores das favelas no âmbito urbanizado, onde valoriza-se o privado e o separa do público  e obter a aderência dos moradores a este processo e a este âmbito, sem que tenha existido efetiva consulta aos moradores, e muito menos e fóruns de participação democráticos para tal.

A introdução de infraestrutura compondo redes e serviços de água e esgoto, e coleta de lixo, ainda que parciais e pontuais, trata-se de uma cultura que está sendo trazida mas não traduzida para a população das favelas, que inclusive sequer recebe instruções de como fazer uso de algo que nunca usaram, ou usaram na invenção do improviso . Se observa, assim sendo, a construção de uma indefinição entre público e privado, a configuração de ritmos desiguais e difusos de ações ora para valorizar o privado quando os elementos implantados se efetivam para as atividades da moradia, ou quando funcionam com regularidade, ora para inserir os moradores no público para continuar as se prover de água e esgoto se ainda não contemplados pela intervenção pública, ou quando existem falhas na operação e manutenção das redes instaladas.

As redes de infraestrutura são elementos que colocados num território, ainda a mais num lugar como as favelas que estão à margem da cidade formal, possibilitam alterar normas, regulamentos, regras e implicam em novos comportamentos e condutos. No caso da favelas o Estado acredita que ao implantar estes dispositivos os moradores poderiam ser “automaticamente” inseridos num âmbito urbanizado valorizando-se a dimensão sociocultural do domínio privado, e que os indivíduos absorvam o código de normas e procedimentos da cidade oficial, ao reconhecer no seu lugar as mesmas condições de vida (pelo menos no que toca a água e esgoto) que nas outras partes da cidade. Assim o modelo dos programas, idêntico ao do desenho das redes do restante da cidade, “apagaria” a inserção intermitente no espaço público para se prover de serviços, se de fato modificasse as condições de vida. A dificuldade é que como se trata de implantação de infraestrutura que tem atingido apenas algumas comunidades populares, e muitas vezes até somente parcelas no interior destas, será nas partes onde tem êxito que pode-se observar que cessam os caminhos percorridos para buscar água, levando à uma “ intimização” da vida, com um tempo de vivência mais contínuo mantendo-se aos não atendidos a passagem cotidiana e intermitente para estes entre esfera pública e privada.

Em âmbitos não-urbanizados ou semi-urbanizados improvisadamente como encontrados nas favelas brasileiras, a valorização da esfera pública se fez em movimentos difusos e em ritmos repetitivos mas desregrados por conta de ações individuais, embora , em determinados momentos, tenha se constituído a esfera pública como lugar da ação quando a prioridade da solidariedade comunitária configurou redes clandestinas para se prover serviços de infraestrutura básica alternativa. Estar num âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado possibilitou passagens entre o público e o privado, porosidades entre favela e cidade formal. Mas efeitos da incompletude das intervenções do Estado, são a não redefinição plena da articulação dos moradores das favelas com redes e serviços de água e esgoto, tendo como efeito a não dissociação e separação  entre espaço público e privado que é próprio de âmbitos urbanizados, mas permanece um conjunto difuso de passagens, porosidades e percursos entre um e outro espaço no interior das favelas, criando espaços intermediários semi-públicos e semi-privados com a sinalização que se evidencia que não se completou a valorização do privado, ou seja a moradia ainda não contém, ou não esta articulada  a todos os elementos básicos para a vida cotidiana.

Na realidade tem se configurado um efeito de segregação intra-pobres configurando pedaços – “ilhas” – articuladas a redes ainda que com serviços incompletos, e com problemas advindos da standartização das redes, em meio a “oceanos” de ausência ou forte precariedade de acesso com um padrão de prestação de serviços que não atende a totalidade dos domicílios e para aqueles que atende o faz com problemas cotidianos de operação e manutenção. A persistência de áreas de baixa renda na situação histórica de não-articulação ou má-articulação acrescidos agora de pedaços articulados, mas com serviços de qualidade irregular e incompletos, e a questão da uniformização de redes, apontam para a reflexão sobre a identificação dos graus de padrão de infraestrutura de habitabilidade atingidos (qual o grau efetivo de urbanização).

Diante da não universalização de um atendimento efetivo de redes-serviços de água/ esgoto e coleta de lixo não é possível apontar para uma integração com bairros formais do entorno, sendo esta integração apenas parcial e pontual no espaço, e intermitente no tempo, o que conduz a um padrão de prestação de serviços, na maior parcela dos casos analisados, irregular, parcial e pontual.

Observa-se, e registrou-se isto na etapa de entrevistas, na maior parcela das favelas analisadas que a efetividade social das ligações alternativas(clandestinas), individuais ou coletivas, apresentam padrões de infraestrutura de habitabilidade, no que toca a água e esgoto, em melhor grau que as ligações oficiais, o que conduz, por vezes, a que os moradores quando são articulados às redes oficiais, desfaçam estas ligações e retomem a articulação anterior alternativa ou criem uma nova, embora em algumas partes os moradores considerem que as redes oficiais configuradas pelas obras funcionam melhor e se fixem neste atendimento. Configura-se, assim sendo, um mosaico que combina a heterogeneidade sócio-econômica e de tipologia urbanística com outro referentes aos padrões de infraestrutura de habitabilidade, prestação irregular de serviços e diferenças nos graus ou ausência de integração com bairros no entorno. Este quadro heterogêneo e fragmentado inviabiliza, a nosso juízo, a proposição do Estado de prover acesso a água e esgoto por meio do modelo convencional. O Estado supõe que introduzindo redes e serviços normatizados, com as medidas oficiais e regulamentares, isto significaria de modo imediato e automático uma inserção das favelas no mundo urbano-

Á indagação se seria possível se adaptar os princípios de uma economia circular a políticas de intervenções públicas para dotação de água/esgoto e coleta de lixo nas favelas podemos dizer que dado o paradigma conceitual racional-funcionalista ainda ser o padrão metodológico de ação nestes lugares, o que implica em  importantes constrangimentos e dificuldades para uma adaptação a economia circular. Isto porque enquanto esta pressupõe um fluxo contínuo-circular com processos integrados com reutilização, renovação e reciclagem nas favelas o pensamento, as ações e a realidade ainda se expressam em processos fragmentados e estanques uns aos outros, apresentam-se ausências de fluxos e acessos a água e importantes desperdícios quando se consegue algum provimento às moradias; descarta-se esgoto a “céu-aberto”, assim como todos tipos de resíduos jogados em pontos diferentes nas favelas e sequer recolhidos com regularidade.

O advento de uma economia circular onde se contrariam seus princípios com uma realidade que estaria mais para uma economia informal antes mesmo que linear implicaria numa reconceitualização de modelos de projetos e planejamento para o desenho da urbanização de favelas, e exigiria  uma profunda reorganização socio-econômica desses lugares incluso em sua cultura e modo de vida não passíveis de se vislumbrar na realidade atual. 

 

Referências:

Amar, George (1987), Concept de Réseaux, Concept des Systèmes, Paris, Editions Economica

De Certeau, Michel. (1990),L’invention da quotidien, París, Gallimard.

Dupuy, Gabriel.(1985), Systèmes. Réseaux et Territoires, Paris, Press d’Ecole Nattionale des Pontes et Chaussées.

Juan, Salvador (1995), Les formes élementaires de la vie quotidienne, París, PUF.

Maffesoli, Michel. (1979), La conquête du présent, pour une sociologie de la vie quotienne, París, PUF.

Offner, Jean.Marc, (1994). Réseaux, Territoires et organisation sociale. Paris, La Documentation Française..

Roncayolo Michel, La ville et ses territoires. Paris: Gallimard, 1997.

 

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