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Chão Urbano

CHÃO URBANO ANO XVIII - nº 6 NOVEMBRO / DEZEMBRO DE 2018

10/01/2019

Integra:

 

                                                                                                                                                                                                                  

CHÃO URBANO ANO XVIII - nº 6  OUTUBRO  /DEZEMBRO DE 2018

 

Editor

Mauro Kleiman

Publicação On-line

Bimestral

Comitê Editorial

Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional)

Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF

Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)

Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)

Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editores Assistentes Júnior

Beatriz Mesquita Angelo e Julia Paresque

IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador

Mauro Kleiman

Equipe

Beatriz Mesquita Angelo e Julia Paresque

Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares

 

 

Índice 

A CIDADE NA ENCRUZILHADA: TENSÕES DO CAPITALISMO E A NECESSIDADE DE UMA TRANSIÇÃO SUSTENTÁVEL...

CONTORNOS E TENDÊNCIAS DAS COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS INTENCIONAIS EM PORTUGAL – UMA ANÁLISE DESCRITIVA E EXPLORATÓRIA...

LUZES E PENUMBRAS ENTRE CAPITALISMO E CIDADE: UMA REVISÃO DE LITERATURA...

 

Editorial 

  

A Cidade na Encruzilhada: Tensões do Capitalismo e a Necessidade de uma Transição Sustentável. 

 

Hugo Pinto¹ e Mauro Kleiman² 

¹ Pesquisador e co-coordenador do Núcleo de Estudos sobre Ciência, Economia e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Professor Auxiliar Convidado na Universidade do Algarve (Portugal)

² Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Laboratório Redes Urbana e Organização Territorial e do Laboratório das Regioões Metropolitanas do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urnano e Regional da UFRJ


A história da sociedade humana está largamente associada ao desenvolvimento da cidade

Muito do que a humanidade alcançou nos últimos três milênios resultou de notáveis criações colaborativas realizadas em contexto urbano. A cidade possui essa força, permite aprender com a proximidade entre pessoas e estimular a colaboração através de economias de aglomeração. A cidade é também um quase sinônimo de desenvolvimento econômico e de elevados padrões de vida. Existem pesquisadores, como Edward Glaeser, autor de Triumph of the City (O Triunfo da Cidade), que a consideram a mais importante invenção humana (Glaeser, 2011). Segundo este autor se comparamos diferentes países, existe uma correlação positiva quase perfeita entre urbanização e prosperidade econômica. Isso significa que os países com mais cidades estão normalmente mais preparados em áreas fundamentais para o bem-estar das populações, gerando níveis mais elevados de renda. 

O segredo do poder das cidades é a grande densidade das relações humanas. 

As economias de aglomeração, na tradição de Alfred Marshal, permitem à cidade a capacidade de se especializar profundamente em determinadas atividades econômicas e beneficiar de uma intensa atmosfera industrial. Na tradição de Jane Jacobs, as cidades trazem um grande número de pessoas para contatos mais próximos, mais frequentes e produtivos do que outros lugares. O grande benefício da aglomeração é exatamente essa diversidade em contato direto, face-a-face, essencial para facilitar as trocas de conhecimento e ideias que geram invenções, novas empresas e inovação.  Mas a cidade está atualmente numa encruzilhada.  Segundo informação da Organização das Nações Unidas (United Nations, 2018), em termos globais, cada vez mais pessoas vivem em áreas urbanas. Em 2018, mais de metade da população mundial (55%) reside em áreas urbanas. A população urbana do mundo cresceu rapidamente desde 1950, tendo aumentado de 751 milhões a 4,2 bilhões em 2018. Em 1950, 30% da população mundial era urbana. Estima-se que em 2050, este valor ascenda a 68% da população mundial. Quase 90% do crescimento nas próximas décadas ocorrerá em países em desenvolvimento, na Ásia e em África. 

Perto da metade dos moradores urbanos do mundo residem em lugares com menos de 500.000 habitantes, enquanto cerca de um em cada oito vive numa das 33 megacidades com mais de 10 milhões de habitantes. Até 2030, o mundo poderá ter 43 megacidades, a maioria delas em países em desenvolvimento (cf. Figura 1). Tóquio é a maior cidade do mundo, com uma aglomeração de 37 milhões de habitantes, seguida de Deli com 29 milhões e Xangai com 26 milhões. Seguem-se a Cidade do México e São Paulo, cada uma com cerca de 22 milhão de habitantes. 

Este crescimento origina diversos desafios, não só para a própria cidade, mas também nas relações hierárquicas que esta estabelece com outros lugares. A densidade e benefícios da aglomeração espacial então na base de uma visão hierárquica das cidades no sistema-mundo com diferentes funções. A cidade global compete cada vez mais pela atração de recursos e investimentos com outras cidades 

  


 
 

Figura 1: Urbanização crescente a nível global e o surgimento das cidades globais 

Fonte: Organização das Nações Unidas (United Nations, 2018) - World urbanization prospects 2018 (acessado em 15 de Outurbro de 2018). https://population.un.org/wup/Maps/  

 

 

 

 Surgem diferentes rankings que avaliam capacidade das cidades globais em dominar ou serem dominadas, sendo o mais conhecido o disponibilizado pelo Globalization and World Rankings Research Institute (cf. Tabela 1). 


 

 

 

 

 

 

 

 

Alpha++ 

Alpha+ 

Alpha  

Alpha−  

Beta+  

Beta  

Beta−  

Londres, Nova Iorque 

Singapura, Hong Kong, Paris, Pequim, Tóquio, Dubai, Xangai 

Sydney, São Paulo, Milão, Chicago, Cidade do México, Mumbai, Moscou, Frankfurt, Madri, Varsóvia, Joanesburgo, Toronto, Seul, Istambul, Kuala Lumpur, Jacarta, Amsterdã, Bruxelas, Los Angeles 

Dublin, Melbourne, Washington, Nova Deli, Bangkok, Zurique, Viena, Taipei, Buenos Aires, Estocolmo, São Francisco, Guangzhou, Manila, Bogotá, Miami, Luxemburgo, Riad, Santiago, Barcelona, Tel Aviv, Lisboa 

Praga, Cidade de Ho Chi Minh, Boston, Copenhague, Düsseldorf, Atenas, Munique, Atlanta, Bucareste, Helsinque, Budapeste, Kiev, Hamburgo, Bangalore, Roma, Oslo, Dallas, Cairo, Houston, Lima, Lagos, Caracas, Auckland, Cidade do Cabo 

Doha, Karachi, Nicósia, Genebra, Montevidéu, Berlim, Montreal, Abu Dhabi, Casablanca, Filadélfia, Vancouver, Shenzhen, Sofia, Perth, Hanói, Beirute, Brisbane, Bratislava, Manama 

Port Louis, Mineápolis, Chennai, Stuttgart, Santo Domingo, Rio de Janeiro, Cidade do Kuwait, Cheng du, Cidade do Panamá, Denver, Lahore, Jidá, Túnis, Quito, Belgrado, Seattle, Manchester, Cidade da Guatemala, Lyon, São José, Tianjin , Calgary, Amã, San Juan, San Salvador, Antuérpia, Zagreb, Calcutá, Tallinn, São Luís, Monterrey, Hyderabad, Edimburgo, San Diego, Colônia, Roterdã, Daca, Islamabad 

Tabela 1: Ranking das Cidades Globais em 2016 

Fonte: Globalization and World Rankings Research Institute, acessado a 16 de Outubro de 2018. 

 

Esta hierarquização tem levado a uma crescente concentração urbana, que acontece simultaneamente a vários níveis. Ao nível local, a vila ou cidade média capta os recursos das pequenas aglomerações. Ao nível estadual, a capital captura os benefícios de toda a região. Ao nível nacional, as grandes cidades são as maiores beneficiadas das políticas nacionais e de atração de investimentos estrangeiros, capturando a fatia central de recursos. Mas estas competem também com outras cidades globais. Daqui não resultaria nenhum fenómeno demasiado nefasto não fosse o fato da preferência pela aglomeração estar criando causalidades cumulativas de consequências imprevisíveis. As cidades maiores são cada vez mais atrativas e os outros lugares são cada vez mais os espaços onde ninguém quer viver e dos quais ninguém quer saber. 

Como referido, as cidades concentram atualmente mais de metade da população mundial e as megalópolis multiplicam-se rapidamente. O futuro vai ser cada vez mais urbano. Mas há sempre uma cidade maior que a nossa. Estamos a chegar a uma situação em que a cidade vencedora será absoluta (Flórida, 2017). As cidades estão a seguir cada vez mais este padrão de o vencedor fica com tudo, em que um pequeno grupo de cidades globais-estrela concentram uma parcela absolutamente desproporcional do talento, atividade econômica, inovação e riqueza (Florida, Mellander e King, 2017). 

No entanto, mesmo nas cidades vencedoras, nem tudo corre bem. A concentração de recursos nestas cidades tem originado uma forte especulação imobiliária aumentando exponencialmente os preços da habitação. O resultado prático é que, embora os salários médios sejam mais altos, após se descontar os custos da habitação, os indivíduos que não sejam de escalões de elevada renda, estão efetivamente numa situação mais desfavorável em termos de nível de vida numa cidade global-estrela do que numa outra cidade média do seu país (Flórida, 2017).    

A quem cabe as decisões de políticas públicas e acadêmicos frequentemente enfatizam a ligação positiva entre a dimensão da cidade e o crescimento econômico. Uma análise recente (Frick e Rodríguez-Pose, 2018), com um painel de 113 países e informação entre 1980 e 2010, analisou se existem dimensões populacionais das cidades que induzem o crescimento econômico e os fatores que impactam nessa relação. Contrastando com a visão dominante na literatura de que as grandes cidades são sempre incitadoras de crescimento, esta análise revelou que são as cidades relativamente grandes até 3 milhões de habitantes, as mais propícias ao crescimento econômico. Uma grande parte da população urbana em cidades com mais de 10 milhões de habitantes será apenas promotora de crescimento em países com uma população urbana superior a 28,5 milhões. Os resultados sugerem assim uma relação não linear entre estes dois fenómenos que depende do largamente tamanho do país onde se localiza cada cidade. 

A cidade está numa encruzilhada. 

A concentração urbana enfrenta grandes desafios relacionados com congestionamentos de trânsito, a criminalidade e a criação de outros bloqueios geradores de externalidades negativas. A cidade tornou-se um problema ao ser atualmente a maior produtora de resíduos e de poluição, gerando preocupações sobre como compatibilizar o estilo de vida urbano com um paradigma sustentável, essencial à sobrevivência do planeta. A globalização, em particular a financeirização, gerou estímulos para o investimento imobiliário nas cidades globais. A rentabilidade dessa especulação é assegurada pela crescente demanda de habitação com a ascensão de classes médias e altas, favorecendo a gentrificação dos centros das cidades. A cidade cada vez mais tenta atrair os ricos e muito ricos, há uma mudança nas políticas para a cidade atender diretamente às suas necessidades. Esta é uma cidade tremendamente desigual (Short, 2017). Por outro lado, o capitalismo tem também criado novas pressões no desenvolvimento urbano, seja pela imposição da privatização de bens e serviços considerados públicos, como os transportes ou a água, ou pelo impacto transformador de consequência imprevisíveis com as crescentes hordas de turistas urbanos na vida quotidiana da cidade. Esta é uma luta global, predominantemente com o capital financeiro, pois essa é a escala em que os processos de urbanização agora funcionam (Harvey, 2008).  

A geração de desigualdade na cidade normalizou-se. Hoje encara-se com demasiado à vontade os diferentes níveis de desenvolvimento entre cidades e dentro de cada cidade, as zonas em redor dos centros comerciais e financeiros, a criação de guetos e favelas, com a divisão clara do espaço em função da capacidade financeira e poder de compra. O Brasil é paradigmático neste contraste (cf. Figura 2), mas o mundo está cheio de exemplos.


 

 

Figura 2: Imagem aérea da Rocinha, na proximidade da Gávea e de São Conrado, dois dos bairros com o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) mais alto da cidade do Rio de Janeiro 

Fonte: Google Maps, acessado em 16 de Outubro de 2018. 

 

As armadilhas da pobreza estão muito ativas no mundo atual e têm uma fortíssima dimensão espacial. A maior parte das vezes referem-se à falta crónica que alguns territórios têm em termos dos diferentes tipos de capital, o capital físico, natural, social, político e humano. Enquanto os decisores políticos continuam a argumentar que se economias de aglomeração forem bem-sucedidas o dinamismo econômico vai acontecer, a pobreza, a decadência e falta de oportunidades persistem em muitos lugares. Estes problemas, quase crónicos, estão causando o descontentamento nestas regiões em declínio. Essa desconexão levou as populações de muitos desses “lugares dos quais ninguém quer saber a se revoltarem em ondas de populismo político que têm fortes bases territoriais e não sociais como era comum (Rodriguez-Pose, 2017). 

Composto por artigos de jovens pesquisadores portugueses, este número do Chão Urbano é um pequeno contributo para estas discussões. O primeiro texto “Luzes e Penumbras entre Capitalismo e Cidade: Uma Revisão de Literatura”, de Fábio Sampaio da Universidade de Coimbra, apresenta uma reflexão conceitual sobre o desenvolvimento urbano e o capitalismo. O segundo texto “Contornos e Tendências das Comunidades Sustentáveis Intencionais em Portugal – uma Análise Descritiva e Exploratória”, de Carla Nogueira da Universidade do Algarve, apresenta uma avaliação recente de comunidades sustentáveis em Portugal, procurando explorar aprendizagens para a vida urbano a partir destes modos de vida alternativos.  

A cidade está numa encruzilhada. Mais e melhor pesquisa e melhores políticas de desenvolvimento territorial são necessárias para explorar o potencial da cidade e fornecer oportunidades quer às pessoas que vivem nos “lugares dos quais ninguém quer saber” quer às que são marginalizadas nas cidades globais-estrela. 

 

Referências 

Florida, R. (2017). The New Urban Crisis, New York: Basic Books. 

Florida, R., Mellander, C. e King K.M. (2017). Winner-Take-All Cities, Working Paper Series, Martin Prosperity Research, REF. 2017-MPIWP-002 http://martinprosperity.org/media/2017-MPIWP-002_Winner-Take-All-Cities_Florida-Mellander-King.pdf  

Frick, S.A. e Rodríguez-Pose, A. (2018). Big or small cities? On city size and economic growth, Growth and Change, Vol. 49 No. 1 (March 2018), pp. 4–32,doi:10.1111/grow.12232 

Glaeser, E. (2011). Triumph of the city: how our greatest invention makes us richer, smarter, greener, healthier, and happier, the Penguin Press.  

Harvey, D. (2008). The right to the city, New left review, 53, sept-oct, pp. 23-40, https://newleftreview.org/II/53/david-harvey-the-right-to-the-city 

Short, J.R. (2017). The Unequal City: Urban Resurgence, Displacement and the Making of Inequality in Global Cities, Routledge. 

Rodríguez-Pose, Andrés (2017). The revenge of the places that don’t matter (and what to do about it). Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, 11 (1). pp. 189-209. 

United Nations (2018). World urbanization prospects 2018(Accessed October 15, 2018). https://population.un.org/wup/Maps/  

 

 

 

 

Contornos e Tendências das Comunidades Sustentáveis Intencionais em Portugal – uma análise descritiva e exploratória -

Carla Nogueira¹  

Resumo: 

Nos últimos anos, tem-se registado um crescimento de grupos auto-organizados que procuram a construção de modos de vida que compatibilizem, de forma equilibrada, a dimensão societal, ambiental, económica e organizativa. Este fenómeno é reflexo da maior consciencialização sobre os limites do crescimento, da necessidade de (re)localização da economia para valores de base mais equitativos e integrados assentes numa lógica social e solidária, da vontade de construção de uma sociedade mais democrática e mais participativa. A pesquisa centra-se na análise das diferentes dimensões operativas que caracterizam a constituição e desenvolvimento de um conjunto específico de grupos, que se denominam de comunidades sustentáveis intencionais (CSI). O conceito procura agregar aqueles coletivos que, a partir de um espaço de ação concreto, desenvolvem um conjunto de atividades que beneficiam esse coletivo, valorizando a sustentabilidade como modo de vida. O estudo sobre estas comunidades parte de uma análise extensiva através da aplicação de um inquérito por questionário a um conjunto de comunidades sustentáveis intencionais identificáveis em Portugal. O artigo centra a sua análise na caracterização geral destas experiências em Portugal procurando refletir sobre o potencial de transferência destas iniciativas para outros contextos, como o urbano. Reconhecendo-se o caráter ainda exploratório da pesquisa, pretende-se contribuir para a reflexão sobre a emergência de formas hibridas de comunidade que procurem funcionar como pontes de ligação territorial, que decorrem de uma articulação específica entre o informalismo que se defende e o formalismo que lhes é externamente exigido para o desenvolvimento de parte da sua ação. 

Palavras-chave: Comunidades sustentáveis intencionais; Ecovillages; Dimensões de sustentabilidade; Transição; Portugal 

¹ Doutoranda em Sociologia – Centro de Investigação sobre o Espaço e as Organizações (CIEO) da Universidade do Algarve, Mestre em Economia Social e Solidária – cfnogueira@ualg.pt   

1. Introdução: 

A erosão das estruturas, sociais e económicas, tradicionais e a eminência de uma crise ecológica global são preocupações que atravessam a contemporaneidade. Os paradigmas que preconizam o desenvolvimento como sinónimo de crescimento económico têm vindo a ser alvo de várias interrogações e do interesse de um número crescente de investigadores científicos. Paralelamente, têm surgido iniciativas que tentam desenvolver modelos de vida, produção e consumo, para superar as consequências sociais, ambientais, económicas e políticas que têm vindo a ser implementadas nas sociedades industrializadas. Estas iniciativas assentam em modelos comunitários de vida cujo principal objetivo é o desenvolvimento e dinamização de práticas de sustentabilidade ambiental, social, económica e cultural e são, neste artigo, designadas por comunidades sustentáveis intencionais. 

Os contextos de crise social, económica e ambiental são férteis no aparecimento de alternativas e experiencias que procurem minimizar as consequências destas crises. É neste contexto que estes modelos têm vindo a ganhar uma nova relevância, precisamente enquanto formas de repensar os modelos e práticas dominantes. Este fenómeno é reflexo da maior consciencialização sobre os limites do crescimento, da necessidade de (re)localização da economia para valores de base mais equitativos e integrados assentes numa lógica social, da vontade de construção de uma sociedade mais democrática, assim como da urgência em implementar modelos sociais mais justos em termos ambientais e económicos. Atualmente, e devido às especificidades e ao aumento destas iniciativas comunitárias, assiste-se a um crescimento do interesse académico sobre este fenómeno. 

Pese embora a importância destas experiências enquanto produtores de modos de vida sustentáveis, a grande maioria destes projetos desenvolve-se em contexto rural. Embora as cidades ofereçam oportunidades económicas em expansão na nova economia global, também é possível verificar que as cidades são grandes contribuintes para a rutura ambiental, dentro e além das suas fronteiras. Com a tendência para a globalização, as cidades são importadores de recursos e exportadores de resíduos, causando um impacto desproporcional sobre os ecossistemas naturais e na biosfera como um todo. Embora seja cada vez mais frequente um discurso político assente na sustentabilidade e nas cidades sustentáveis e inteligentes, ainda persistem desafios. Para além da importância das abordagens top-down, importa também refletir em torno de potenciais introduções de mudanças bottom-up que possam minimizar estes impactos, ainda que à microescala, por parte da sociedade civil.  

O objeto empírico escolhido é a organização de grupos de cidadãos que se agrupam em torno deste objetivo e que tenham passado por uma mudança estrutural do modo de vida e que procurem modelos organizacionais baseados em formatos holísticos, participados e horizontais. Como objetivos a presente pesquisa pretende: traçar um quadro geral sobre estas experiências em Portugal, de uma forma descritiva e exploratória; refletir acerca de que forma é que estas comunidades se manifestam; o que nos sugerem; e cruzar o impacto que a utilização dos princípios das comunidades sustentáveis intencionais poderiam ter nas cidades contemporâneas.  

Este estudo reflete uma parte da pesquisa desenvolvida durante a tese de mestrado da autora (Nogueira, 2015) e foca os resultados exploratórios da referida dissertação. Parte de uma metodologia quantitativa, utilizando como técnica a aplicação de um inquérito por questionário, para compreender os contornos e tendências destas experiências. O artigo avança com uma contribuição teórica para a definição e enquadramento das comunidades sustentáveis no contexto socioeconómico atual; seguidamente são tecidas algumas considerações metodológicas e uma análise descritiva dos dados. O artigo termina com as principais conclusões do estudo, reflexão em torno dos princípios destas experiências na cidade contemporânea e algumas recomendações políticas.  

 

2. O(s) Contexto(s) das Comunidades Sustentáveis Intencionais 

2.1 Um contexto de (in)definição teórico-empírica  

O movimento ecológico surgiu na década de 1980/90 em resposta a desafios ecológicos e sociais que começam a ganhar destaque nas sociedades modernas. Nesta altura, começa a ganhar visibilidade o fenómeno das comunidades sustentáveis intencionais (CSI) ou ecoaldeias, no sentindo em que representam formatos de organização social voluntária, com membros comprometidos a viver de forma mais ecológica e comunitária (Mulder, Costanza, e Erickson, 2006; (Bissolotti, Santiago, e Oliveira, 2006)  Os pioneiros deste movimento começaram a experimentar formas diferentes de tecnologia, mas também novas formas de viver na comunidade, abrangendo integralmente todas as áreas da vida, desde o consumo, à produção, à economia, ao planeamento infraestrutural, até à organização, à governança e também às relações sociais e à educação (Christian, 2003; Bang, 2005). As CSI são fundadas com uma intenção ecológica e, muitas vezes também, sociopolítica ou espiritual e experimentam novas formas de vida que respondem às crises ecológicas, económicas e sociais contemporâneas (Kunze 2009; 2012). 

Estas comunidades são o tipo de comunidade intencional com maior taxa de crescimento e expansão, durante os últimos 40 anos (Adalilar, Alkibay, e Eser, 2015; Waerther, 2014), passando por períodos de multiplicação, reestruturação e organização a nível mundial, com um foco específico na sustentabilidade ambiental, social e económica (Kirby, 2003).  Avançar com uma definição de CSI é um exercício complexo e quase impossível. Isto porque estas são comunidades que têm significados diferentes em diferentes contextos, para pessoas diferentes. As definições variam tendo em conta o ponto de vista do autor e dos objetivos do estudo que pretende desenvolver. De seguida apresentam-se as principais definições encontradas na literatura, de forma cronológica.  

Uma das definições mais referenciadas e que é ponto de concórdia entre os autores é a primeira definição conhecida de ecovillages. Robert e Diane Gilman, em “Ecovillages and Sustainable Communities” (1991:10) definem este conceito como sendo: «Um assentamento completo da escala humana, em que as atividades humanas são integradas no mundo natural, sem causar danos e de uma forma que apoia o saudável desenvolvimento humano e que podem ser continuadas, com sucesso, no futuro indefinido». Com o aumento da visibilidade e do interessa académico do fenómeno, esta definição tem vindo a ser alvo de reflexão e reconstrução. Desde 2012 que a definição oficial do conceito, como previsto nos documentos da Global Ecovillage Network (GEN), é uma das mais referenciadas e compreende as CSI como comunidades intencionais ou tradicionais que são conscientemente projetadas através de processos participativos, com propriedade local, para a regeneração dos ambientes sociais e naturais. Têm por base quatro dimensões de sustentabilidade (ecológica, económica, social e cultural) que se encontram integradas numa perspetiva holística (Kirby, 2003; Bates, 2003; Bang, 2005; Liftin, 2009; Kunze, 2012; Hall, 2015). 

Com base na revisão da literatura, é possível identificar dez características básicas que as caracterizam (Kasper, 2008; Bates, 2003; Andreas e Wagner, 2012; Liftin, 2014; Kunze e Avelino, 2015; Ergas e Clement, 2016): são modelos comunitários, focados na sustentabilidade holística, criados para colmatar necessidades sociais como a construção da identidade e o sentimento de pertença e segurança; procuram o desenvolvimento tecnológico sustentável, através da implementação de técnicas agrícolas, geração e utilização de energia, reutilização de recursos e construção; não têm uma dimensão padrão, podendo ser grupos de 10 membros (como por exemplo o Vale da Sarvinda em Portugal) ou 2400 habitantes (como por exemplo Auroville na India); oferecem oportunidades de emprego no local para os residentes ou visitantes; requerem uma arquitetura e design planeado (normalmente, seguindo os princípios da permacultura); minimizam a utilização de veículos móveis dentro do território; têm contratos sociais específicos ou planos de gestão social; providenciam alojamento para os seus membros (com valores apoiados na ótica do comércio justo); são locais de aprendizagem, geração e partilha de conhecimento; e reconhecem a importância dos governos locais para o seu sucesso. 

De acordo com Bang (2005), as CSI são construídas tendo em conta três dimensões basilares: a dimensão social, ecológica e ambiental. Contudo, a GEN abre o leque destas dimensões, acrescentando a componente económica como determinante na procura e vivência deste estilo de vida. Neste sentido, atualmente considera-se que uma CSI deve ser fundamentada sob os seguintes alicerces: dimensão social ou comunitária, uma vez que as pessoas se devem sentir, simultaneamente apoiadas e responsáveis pelo grupo, construindo um sentimento de pertença, através da capacidade de ser parte integrante do processo de tomada de decisões de forma transparente; dimensão ecológica, através da conexão entre o individuo, o grupo e a terra, satisfazendo as suas necessidades diárias em articulação e com respeito pelos ciclos da natureza; dimensão cultural ou espiritual, através da promoção de atividades que potenciem o espirito artístico e criativo e contribuindo para a saúde do espírito; e a dimensão económica, fundamentada nos princípios da redistribuição, característicos da economia solidária (Joubert e Alfred, 2007; Hall, 2015; Kunze & Avelino, 2015). 

A integração destas práticas e as consequências da aplicação das mesmas descrevem as razões pelas quais os agentes sociais são atraídos para o modo de vida sustentável praticado nestas comunidades, embora em certos projetos possa haver uma dimensão predominante face às restantes, e que outros possam não incluir a totalidade das dimensões, uma vez que são raros os casos em que um projeto cubra a totalidade das dimensões supramencionadas (Lockyer, 2010; Ergas, 2010; Hall, 2015). Esta segmentação ocorre devido ao facto de a implementação de uma CSI, representar uma mudança estrutural, paradigmática e radical daquilo que são os modos de vida das sociedades contemporâneas. Esta visão holística pode ser entendida como uma forma de pós-modernismo construtivo pois representa um conhecimento de base comunitária pragmático em termos de compromisso, não só no conjunto das suas práticas como também na construção de uma visão global comum. No entanto, é importante observar que esta tentativa de definição não reflete necessariamente questões de localização geográfica.  

 

2.2 Contexto Rural e Urbano 

A maioria das CSI encontra-se estabelecida em espaços rurais devido à redução das condicionantes económicas e legais (Kasper, 2008; Ergas, 2010; Litfin, 2014) e à procura de maiores níveis de autossuficiência (principalmente na produção de alimentos e energia). Isto requer uma maior disponibilidade de espaço físico e de recursos naturais (Dias et. al, 2017). Esta primazia do espaço rural pode conduzir a algum isolamento das próprias comunidades. Se por um lado, determinados níveis de isolamento podem acarretar aspetos positivos, na medida em que facilita mudanças radicais no estilo de vida e o surgimento de soluções alternativas e inovadoras (Dias et. al, 2017). Por outro lado, este isolamento pode dificultar a visibilidade das práticas e princípios das CSI que poderão apresentar-se como potenciais medidas para a melhoria da sustentabilidade das cidades contemporâneas.  

Os desafios urbanos apresentam-se como, cada vez mais, prementes. As cidades são o contexto primordial do desenvolvimento social e económico. Neste sentido, é fundamental que estes espaços comecem a assumir, de forma mais efetiva, o desafio da sustentabilidade. Há uma necessidade crítica de prever os assentamentos humanos de uma forma mais estrutural, desde logo para reduzir os impactos per capita, mas também para uma possibilidade real onde as cidades começam a ser um contexto principal e ativo para a regeneração ecológica de suas regiões (Newman e Jennings, 2008).  

Existem alguns exemplos que ilustram esta preocupação - projetos como as “smart cities”, “sustainable cities” e “green cities” – são, cada vez mais, incontornáveis e encontram-se presentes nos discursos e na agenda política. No entanto, o que se verifica é que estas tentativas têm sido, em grande parte, fragmentadas, sem uma estrutura de orientação holística que permita unir as diversas dimensões da sustentabilidade (Newman e Jennings, 2008). Assim, a proposta reflexiva deste artigo é analisar as CSI como mecanismos escaláveis e transferíveis para a dimensão urbana. Isto porque são modelos já sedimentados e testados que podem ter a capacidade de reestruturação e readaptação a outros contextos, enquanto auxiliares da emergência de novos modelos a implementar nas cidades contemporâneas para contribuir para uma mudança contínua. 

A lógica de mudança contínua encontra-se associada a uma necessidade de transição. Os tempos de crise acabam por ser períodos férteis de inovação e criação de soluções criativas para a minimização das suas consequências. As CSI podem representar um mecanismo de desenvolvimento de propostas de transição. As referências mais recentes têm vindo a refletir acerca deste tipo de comunidades, precisamente, enquanto agentes de mudança e de transição (Adalilar, Alkibay, e Eser, 2015; Ergas e Clement, 2016; Avelino et. al, 2015; Kunze e Avelino, 2015; Hall, 2015).  

De acordo com Kunze (2012) as mudanças estruturais de paradigmas ocorrem em três etapas diferentes: a primeira etapa refere-se a todas as ações que retardam o processo de colapso, ocorre na resistência pública e política à destruição de sistemas de apoio, através de ONG’s, iniciativas locais, demonstrações ou desobediência civil, campanhas públicas, etc.; a segunda fase da mudança acontece simultaneamente com a primeira, implica a análise e a compreensão das causas estruturais da crise atual e a criação de padrões alternativos e consiste na procura de estruturas alternativas que transformem a sociedade; por fim, a terceira etapa representa uma mudança fundamental nos valores e nas visões de mundo, através da adoção de novas perspetivas sobre a realidade, sedimentando-se em abordagens que compreendem as perceções dos agentes enquanto catalisadores e formadores de estrutura. Os trabalhos de Paul Ray sobre a escala de mudança de valor nas sociedades modernas são um exemplo deste tipo de pensamento.  

As CSI apresentam evidências de transformação nestas três fases: alguns dos seus membros normalmente são parte integrante de um movimento de protesto contra o sistema hegemónico ou a destruição ambiental (Avelino e Kunze, 2009; Marckmann, Gram-Hanssen, e Christensen, 2012); posteriormente, com a materialização da sua existência, fazem parte do segundo estágio de construção de modelos (Adalilar, Alkibay, e Eser, 2015) e, portanto, criam laboratórios experimentais para o teste de soluções sustentáveis; e estes estilos de vida experimentais tornam-nas parte integrante do valor e da mudança de consciência (Kunze e Avelino, 2015).  

Do ponto de vista sociológico, estas comunidades intencionais têm uma dimensão sociopolítica específica na medida em que são fundadas conscientemente com base numa visão alternativa da sociedade, procuram e exploram novas formas de viver com outras pessoas e com a natureza, desenvolvem práticas de construção e sedimentação de grupos através de objetivos comuns e procuram a transformação da sociedade.  

Um dos principais desafios teóricos a esta transição é a tendência de isolação destas comunidades. É necessário considerar que comunidades geograficamente isoladas podem ter potencial e alcance limitados em termos de impacto social. Os projetos mais integrados com o mainstream (particularmente projetos urbanos), têm a potencialidade de propagar, de forma mais efetiva, as suas ideias devido à alta visibilidade e às conexões com o ambiente social mais amplo (Dias et. al, 2017). Projetos como a Los Angeles Ecovillage, de 40 membros, perto do centro de Los Angeles, a comunidade Le Case, em San Diego, a Avalon Ecovillage em Detroit e o Enright Ecovillage em Cincinnati, são apenas alguns exemplos desta potencialidade. 

As comunidades em áreas urbanas requerem, no entanto, modelos um pouco diferenciados (ou adaptados) do que as comunidades em contexto rural. No entanto, esta discussão não deixa de ser dicotómica. Se por um lado, modelos mais compatíveis com os valores de independência, privacidade e propriedade, que são facilmente assimiláveis à sociedade dominante, representam um maior potencial de impacto em larga escala (Sanguinetti, 2012). Por outro lado, pela mesma razão, estas reestruturações podem acabar por condicionar a necessidade de mudanças mais profundas no paradigma dominante. De fato, é necessário considerar que as comunidades urbanas tendem a ser estruturalmente mais restritas, menos independentes economicamente e menos ecologicamente sustentáveis em comparação com as comunidades sustentáveis intencionais urbanas (Boyer, 2016).  

No contexto atual, pese embora a validade de todas as tentativas que procurem contribuir para modelos mais sustentáveis, é necessário refletir em torno das semelhanças e diferenças, alinhá-las com as potencialidades de cada um dos modelos e procurar criar modelos híbridos, assentes em abordagens bottom-up e top-down, criando novas possibilidades em termos de impacto social de larga escala.  

 

3. Metodologia 

A proposta metodológica que conduziu a presente pesquisa seguiu uma lógica quantitativa, uma vez que o objetivo central é traçar o quadro geral do contexto em que surge o fenómeno das comunidades sustentáveis intencionais, em Portugal, ao nível dos seus contornos e das suas tendências. Este estudo utilizou como técnica de recolha o inquérito por questionário, com o objetivo de aumentar o conhecimento geral sobre a população que se pretendia conhecer e aceder a um maior número de dados que possibilitam a criação de correlações (Quivy e Campenhoudt, 2008).  

Devido à imensidão e rapidez do surgimento de novos projetos e iniciativas que têm como mote o buscar de um modo de vida sustentável, torna-se metodologicamente complicado e cientificamente não exequível, dado o tempo existente para o desenvolvimento da dissertação, dar conta de todos os movimentos, que se poderiam encaixar na procura da sustentabilidade como modo de vida, existentes em Portugal. Como tal, e de forma a obedecer a algum critério, a primeira etapa da análise metodológica teve por base o mapeamento de projetos de sustentabilidade (com diversas configurações) elaborado pela Rede Convergir4. É importante referir que o mapeamento da Rede Convergir resulta da autoproposta dos promotores. De acordo com esta fonte, os projetos inseridos variam dentro tipologias demonstradas na tabela 1.  


Tabela 2 - Tipologia dos projetos inseridos na Rede Convergir 

 

Tipologia  

Designação  

Cultura e Educação  

Projetos relativos a questões relacionadas com a educação não formal sobre vários domínios e desenvolvimento humano e comunitário  

Institutos de Permacultura  

Projetos ligados à permacultura, logo com especial enfoque na agricultura biológica e no design na construção de hortas e na bio construção.  

Gestão da Terra e da Natureza  

Projetos de âmbito alargado que promovem todas as dimensões do desenvolvimento sustentável. Funcionam como movimentos holísticos que encerram em si um novo paradigma de modo de vida.  

Movimentos de Transição  

O Movimento de Transição surgiu dos movimentos ambientais e sociais, fundado (em parte) sobre os princípios da permacultura.  

Uso da Terra e Comunidade  

Estes projetos caracterizam-se por uma preocupação humanitária de promoção da paz e com especial enfoque no individuo e nas suas potencialidades.  

Ferramentas e Tecnologias  

Projetos ligados às questões da ciência e tecnologia sustentável, relacionados com a mudança de paradigma da investigação científica.  

Economia e Finanças  

Projetos que têm por base a economia social e solidária. Modelos económicos mais justos e equitativos, baseados na redistribuição e reutilização dos recursos.  

Desporto, Saúde e Bem-Estar  

Projetos diretamente relacionados com a prática de desportos que promovam a ligação entre o ser-humano e a natureza  

Mercados Biológicos e Hortas Comunitárias  

Projetos espontâneos baseados nas ligações já existentes entre os pares, promovidos por grupos ou associações, ou em alguns casos, dinamizados e apoiados pelas autarquias  

Fonte: Adaptado de RedeConvergir.net 


Os critérios da seleção dos casos a inquirir, prenderam-se com: a existência de uma dimensão social, onde fosse possível identificar modelos de governança, redes de solidariedade e entre ajuda comunitária, divisão do trabalho e momentos de lazer; uma dimensão ecológica onde se verificasse a tentativa de auto produção de bens alimentares, a gestão e reutilização do desperdício e dos resíduos, e preocupações de impacto ambiental; preocupações associadas ao consumo de bens e serviços, promoção de trocas e redistribuição de recursos, característicos da dimensão económica. Assim, de modo a cumprir estes critérios, os projetos deveriam garantir: 1) a existência de um espaço físico onde se desenvolvam as atividades; 2) a residência permanente de alguns membros associados ao projeto; 3) A residência parcial de alguns membros associados ao projeto. Como tal foi feita uma seleção, tendo por base a tipologia da Rede Convergir, a fim de selecionar os projetos que garantissem estas 3 premissas. Os projetos que seguiram para a fase seguinte do estudo foram retirados dos grupos: Uso da Terra e da Comunidade; Institutos de Permacultura7 e Gestão da Terra e da Natureza, e perfazem um total de 25 casos. 

O inquérito por questionário foi administrado, por correio eletrónico, aos 25 casos que resultaram da primeira etapa de identificação da amostra. Estes primeiros casos foram selecionados de acordo com uma técnica de amostragem não probabilística, designadamente a amostragem por conveniência, em que os elementos foram escolhidos com base no processo indicado anteriormente. O processo de amostragem por conveniência não garante uma amostra representativa da população nem permite fazer inferência estatística (Bryman, 2004), pese embora o facto de esse não ser o objetivo central deste trabalho. Este trata-se de um universo que não se encontra devidamente identificado no terreno, pelo que o que se optou por fazer foi aplicar o questionário ao universo dos 25 casos que se conheciam. 

O inquérito por questionário, para além de uma técnica de recolha de dados, serviu também como um mecanismo de seleção de mais casos. Aos inquiridos foi solicitado que indicassem outros projetos dos quais tivessem conhecimento. Este tipo de amostragem é designado “Amostragem por Bola de Neve” e permite que a amostra cresça e é um tipo de amostragem utilizado quando se pretende estudar pequenas populações específicas (Bryman, 2004). No total foram enviados 52 questionários5 e recebidas 27 respostas. A tabela 2 mostra como é que o universo e a amostra se encontram dispersos no território nacional.  


Tabela 3 - Processo de Amostragem 

 

NUTS II 

Universo Conhecido 

Amostra 

Norte 

5 

1 

Centro 

15 

9 

Lisboa e Vale do Tejo 

13 

9 

Alentejo 

4 

6 

Algarve 

3 

2 

Não identificados 

12 

0 

Total 

52 

27 

Fonte: Adaptado de Nogueira, 2015. 


Os dados foram tratados em SPSS – Statistical Package for the Social Sciences e permitem conhecer as características gerais das comunidades sustentáveis em Portugal, mas também tirar conclusões acerca das suas tendências de sustentabilidade. A análise quantitativa subdivide-se em duas categorias: A primeira parte pretende dar resposta ao primeiro objetivo específico deste trabalho, ou seja, perceber como se traduzem os aspetos gerais que enquadram o objeto empírico e a segunda parte debruça-se sobre o nível de integração de práticas de sustentabilidade, nas dimensões estudadas, no quotidiano dos projetos em estudo. 

  

4. Análise de dados 

4.1 Os Contornos 

As comunidades sustentáveis intencionais inquiridas neste estudo são na sua totalidade projetos de âmbito rural. Isto deve-se por um lado, ao fato de as comunidades de contexto rural serem a realidade mais presente em Portugal, o que aumenta o número possível de casos a estudar, garantindo uma maior representatividade e, por outro lado, ao fato de, como indica a literatura, a diferença de contexto resultar em diferentes modelos de comunidades o que implicaria instrumentos de recolha diferenciados.  

A primeira comunidade sustentável em Portugal, de entre as analisadas neste estudo, surgiu em 1985. Em 2008 regista-se um ligeiro aumento no número de comunidades sustentáveis, que se começam a desenvolver, e 2010 destaca-se como o ano em que mais projetos reportaram o início dos seus trabalhos preparatórios. Em 2010 iniciaram a sua fase preparatória, cerca de 6 dos projeto 

estudados, sendo que em 2011 esse número decaiu para 4, voltando em 2012 a seguir a mesma tendência de estabilização que se verificava nos anos anteriores a 2010. 

  

Contextos espaciais e territoriais: 

Uma comunidade sustentável intencional pressupõe a existência de um espaço físico onde os membros possam residir e onde seja possível desenvolver as atividades que contribuem para a resiliência da comunidade (Bang, 2005; Assadourian, 2008). Uma das principais preocupações, transversal a estes projetos, é garantir a capacidade de subsistência alimentar, através de práticas sustentáveis de agricultura biológica e permacultura, o que implica a existência de um contexto espacial e geográfico que possa providenciar condições ao desenvolvimento destas atividades. Para além disso, existe uma forte preocupação é a proximidade entre os membros, de forma, a sedimentar o sentido de comunidade e o sentimento de pertença.  

A escolha do local para a criação de uma CSI é então feita com base em algumas premissas incontornáveis, como a disponibilidade de terreno para a produção de alimentos, nomeadamente a existência de bacias de água nas proximidades, para a construção de habitações, bem como tendo em atenção outras questões, como os objetivos particulares de uma determinada comunidade, a residência de origem dos fundadores, a origem dos terrenos (particulares dos fundadores ou de familiares ou a necessidade de arrendar ou comprar), o preço dos terrenos, as características das acessibilidades (dependendo dos objetivos da comunidade), entre outros (Andreas, 2013). São várias as razões que podem condicionar ou facilitar a escolha de um determinado local, porque de facto, cada comunidade obedece a regras internas específicas e a objetivos individuais e coletivos únicos, o que impossibilita a determinação de razões estanques tanto para a escolha do local, como para a maioria das variáveis em análise. 


Figura 3 – CSI inquiridas segundo as NUTS II (%) 

 

Fonte: Adaptado de Nogueira, 2015 


No caso de Portugal (Figura 1), estas CSI encontram-se essencialmente nas regiões da zona central do país. As regiões mais representativas são: Lisboa e Vale do Tejo e o Centro, onde se situam a maioria projetos estudados (33,3% em cada uma das regiões referidas). Cerca de 22% das comunidades respondentes ao questionário, apontam o Alentejo como a região onde se encontram situados. O Algarve e o Norte são as zonas menos escolhidas para a criação e desenvolvimento destas iniciativas, sendo que no Algarve foram identificados cerca de 7% dos casos e no Norte, apenas 3%. 

À dispersão geográfica associa-se uma outra variável que também contribui para perceber o contexto espacial onde se desenvolvem estes projetos. A área, medida em hectares, que os projetos, em análise, têm disponível para o desenvolvimento das suas atividades pode estar diretamente relacionada com as condições que enquadraram a escolha do local. Os dados obtidos revelam que as comunidades inquiridas desenvolvem as suas atividades em territórios pouco extensos. Por outro lado, também é possível verificar que, embora a maioria seja de uma dimensão menor, existem projetos que têm possibilidade de expansão, dado que os seus terrenos têm uma estrutura espacial que lhes permite o desenvolvimento de um maior número de atividades, em extensão.  


Figura 4 – CSI inquiridas segundo a área ocupada (em hectares) (%) 

 

Fonte: Adaptado de Nogueira, 2015 

Na figura 2 verifica-se que a grande parte dos projetos em estudo, cerca de 56%, desenvolve as suas atividades em áreas pouco extensas, compreendidas entre os 0 e 3 hectares, 10% têm a possibilidade de explorar áreas até 10 hectares. De entre os casos em análise, cerca de 20% desenvolvem os projetos em áreas extensas, com mais de 50 hectares. Estes dados podem indiciar duas potencialidades latentes das CSI portuguesas: por um lado, é possível deduzir que, em termos territoriais, com cerca de 20% dos projetos em áreas com mais de 50ha, existe capacidade para aumentar o volume de iniciativas e práticas desenvolvidas; por outro lado, o fato de a grande maioria desenvolver as suas atividades em áreas de pouca dimensão também pode ser revelador de um potencial de transição destas iniciativas para as cidades, onde o espaço disponível é menor. Em última instância estes projetos, em termos geográficos, podem funcionar como laboratórios à microescala, transferíveis e escaláveis, para um ambiente urbano. Esta dedução não é estanque nem linear. Existe um conjunto de outras dimensões fundamentais para o desenvolvimento das práticas comunitárias que podem carecer de reconfigurações para que esta transferência seja possível.  

  

Estruturas organizativas 

No contexto das sociedades contemporâneas torna-se complexo concertar as propostas teóricas e empíricas que materializam as abordagens organizacionais com o mundo real das organizações. Esta realidade deve-se em parte, a duas razões fundamentais: as características das mudanças emergentes e a inadequação de algumas proposições teóricas face à evolução das sociedades (Ferreira et. al, 2011). Na literatura, verifica-se um leque alargado de tipologias de estruturas organizativas. Cada uma dessas estruturas, embora se oriente por esquemas diferenciados - tanto ao nível da divisão de tarefas, tomada de decisões e resolução de conflito - têm latente um objetivo comum – a eficácia e eficiência da organização (Lawrence e Lorsch, 1967; Morgan, 1996; Hudson, 1999).  

A análise das CSI em Portugal revelo que existe uma forte tendência para a não formalização dos projetos (37%). A génese desta diferenciação encontra-se nos objetivos particulares de cada comunidade. Existem comunidades que pretendem trazer para a discussão social, ambiental e económica, a possibilidade de criar modos de vida mais sustentáveis que objetivem um paradigma de desenvolvimento não dominante. Estes projetos pautam o seu percurso pela estratégia de intervenção local com o objetivo de causar impacto de uma forma mais abrangente e global, e pretendem funcionar como grupos de pressão política e social, através da disseminação e promoção das suas práticas e dos seus objetivos, com o intuito de contribuir para a tomada de consciência da necessidade de um novo paradigma de desenvolvimento económico, social, político, cultural e ambiental.  

  

  

  

Figura 5 – Comunidades sustentáveis inquiridas segundo o estatuto jurídico (%) 

 

Fonte: Adaptado de Nogueira, 2015 


No que diz respeito ao estatuto jurídico, 37% dos projetos estudados, são entidades formalizadas como associações privadas sem fins lucrativos; cerca de 10% são cooperativas ou grupos formais com outro tipo de estatuto jurídico; e 15% revelaram ser empresas privadas com fins lucrativos, o que pode sugerir um aspeto interessante de debate, no que diz respeito aos valores normalmente associados a estes projetos, mas que para o caso da formalização legal/ou a não formalização, dos projetos em estudo, é um indicador que acresce o número de projetos que se assumem como grupos formais.  

As organizações sem fins lucrativos, estatuto jurídico característico do terceiro sector, sedimentam-se em modelos organizacionais cujo maior desafio é o desenvolvimento de uma estrutura de gestão adequada às suas particularidades (Ferreira et. al, 2011). Estas organizações possuem singularidades no desenvolvimento de suas atividades, que devem ser consideradas na sua análise organizacional, tendo em conta o seu perfil e os objetivos que preconizam, sendo que uma análise centrada na transposição de técnicas e modelos desenvolvidos no sector empresarial, pode ser redutora. Este tipo de comunidades orienta-se pelos princípios da economia social e solidária que se baseiam nos vetores da reciprocidade (não monetários) e da redistribuição (não mercantis) (Hudson, 1999; Teixeira, 2003), pelo que se apresentam como organizações singulares que requerem que a sua análise seja tecida tendo em conta a apropriação de diversas abordagens, de modo, a construir uma perspetiva multidimensional e integrada que se reflita em modelos de organização híbridos. 

Dimensões como: um clima organizacional sedimentado na igualdade e na participação de todos os membros da organização; trabalho motivado por um ideal compartilhado entre todos os membros que a compõe; uma maior partilha das informações, pois prevalece nestas organizações a lógica da cooperação; a informalidade está presente nestas organizações, e a tomada de decisões coletivamente, são características fundamentais para a análise organizativa deste tipo de projetos (Hudson, 1999;Tenório, 1997).  

Ao nível da estrutura organizacional e os modelos de governação são pilares fundamentais para que os membros se identifiquem com o processo. O sistema de liderança hierarquizado é um modelo que se encontra enraizado nos modos individuais de percecionar a liderança e a tomada de decisão (Joubert e Alfred, 2007). Em organizações que preconizem um modo de vida comunitário, baseado na democracia representativa e na igualdade, é necessário que se preveja a aplicação de outros padrões de governança, em que todos os membros se sintam representados e onde exista espaço para a diversidade (Joubert e Alfred, 2007). Modelos como a sociocracia6 ganham destaque nestas comunidades. A maior contribuição que as organizações do terceiro setor podem transferir para a sociedade está no âmbito sociocultural, dos valores e dos símbolos, no sentido de reconstruir uma sociedade baseada em princípios da responsabilidade social e na cooperação solidária. Neste sentido, estas organizações necessitam de desenvolver modelos de gestão que respeitem as suas particularidades, com o objetivo de mobilizar os seus esforços para atividades que são determinantes para o desenvolvimento da sua ação. A dimensão organizacional é uma das mais críticas para a implementação e desenvolvimento de uma comunidade sustentável intencional. Pese embora, estes modelos de governança tenham potencial de transferência e desenvolvimento nas cidades, quanto mais distanciado um projeto estiver de interferências externas mais célere, intuitivo e efetivo será o processo de aceitação e colaboração para com este modelo.  

 

Membros 

Outra das dimensões estruturais para a compreensão dos contornos das CSI é a análise dos seus recursos humanos, ou seja, dos seus membros. Relativamente à sua estrutura, ou seja, ao número de habitantes, as CSI portuguesas são, maioritariamente, projetos de pequena dimensão. Esta variável subdivide-se em 2 grupos: os habitantes/membros a tempo inteiro, sendo aqueles que podem ser considerados membros efetivos, e os habitantes/membros a tempo parcial, ou seja, que apenas passam alguns períodos de tempo nas comunidades sustentáveis, como por exemplo, aos fins-de-semana ou durante períodos de voluntariado.  

Como é possível verificar na figura 5, a grande maioria dos projetos em estudo são de pequena dimensão, desenvolvendo as suas atividades com entre 1 a 5 membros a tempo inteiro. Apenas um dos casos analisados se pode considerar uma comunidade de grande dimensão, e conta com mais de 40 membros. Quando se analisa os membros a tempo parcial, verifica-se que existe a maior parte das comunidades recebe apenas entre 1 a 5 membros em momentos esporádicos e nenhuma comunidade recebe mais de 40 membros a tempo parcial. O que significa que o contorno da estrutura das comunidades portuguesas não varie significativamente entre os membros efetivos e os membros que visitam os projetos durante uma determinada temporada. 


Figura 6 – CSI inquiridas segundo o nº de membros a residir a tempo inteiro e tempo parcial 

 

Fonte: Adaptado de Nogueira, 2015 


Os membros a viver em tempo parcial podem inserir-se em várias categorias. Se por um lado, estes dados refletem os indivíduos que visitam os projetos em determinadas temporadas, normalmente durante períodos de tempo que se compreendem entre 1 semana e 2 meses, em regime de voluntariado, por outro lado, também se incluem nesta variável, os membros que têm um compromisso mais profundo com o projeto, mas que, por diversas razões, ainda não assumiram a comunidade como a sua residência. Estes membros podem trabalhar no projeto e visitá-lo regularmente (entre 2 a 3 vezes por semana e durante o fim-de-semana), mas ainda não procederam a uma rutura com o modo de vida das sociedades onde se encontram inseridos. Estes membros podem ser designados como membros em fase de transição, em detrimento da designação de membros a tempo parcial, que melhor se aplica a indivíduos que não têm nível de compromisso com o projeto e que apenas o encaram como uma experiência temporária, de curta duração. Estes membros em fase de transição podem representar um mecanismo vivo de partilha e transferências das práticas comunitárias para as cidades contemporâneas, construindo pontes de conhecimento e valores fortuitas para o crescimento destas experiências em espaço urbano.  

 

4.2 Tendências de sustentabilidade 

Esta subsecção pretende dar a conhecer a forma como as CSI portuguesas percecionam e aplicam práticas de sustentabilidade e revelaram que existe uma maior facilidade de integração de práticas de sustentabilidade ambiental e social, nas atividades desenvolvidas nos projetos. 

A sustentabilidade é normalmente associada à utilização eficaz e eficiente dos recursos naturais, e encontra-se maioritariamente, relacionada com a ecologia e com a dimensão ambiental. De facto, as comunidades portuguesas assumem um compromisso com as práticas de sustentabilidade ambiental e, a par com a sustentabilidade social, é a dimensão onde existem maiores níveis de integração nas práticas comuns dos projetos estudados. Como já foi referido anteriormente, uma das principais preocupações, transversais à maioria dos projetos, é a produção própria de alimentos. Esta tendência manifesta-se através de uma preocupação crescente pela qualidade dos alimentos que consomem, e representa o primeiro passo para a procura da autossuficiência e da resiliência comunitária. Sempre que possível, os excedentes da produção acabam por funcionar também como uma valência que lhes permite a entrada de recursos financeiros, através da comercialização (de acordo com os princípios do comércio justo), e da possibilitação de trocas por outros bens ou serviços. 


Figura 7 – Nível de Integração de Práticas de Sustentabilidade Ambiental 

 

Fonte: Adaptado de Nogueira, 2015 


Como é possível verificar na figura 6, a produção de alimentos orgânicos/biológicos, é uma prática que se encontra totalmente integrada em quase 80% das comunidades respondentes. Esta produção é associada ao cultivo de alimentos que respeitem as características do local onde são produzidos, de modo a minimizar o impacto no solo e a respeitar e perpetuar os ciclos naturais. A reutilização e reaproveitamento de resíduos também é uma prática que se encontra bastante integrada no quotidiano das comunidades, onde para além da reciclagem, se verificam outras atividades, como a reutilização do lixo orgânico em composto fertilizante, que é utilizado posteriormente, nos solos. Esta tendência de começar e concluir ciclos (alimentação – composto – fertilizante – alimentação) é uma das características dos princípios da permacultura e uma tendência fortemente integrada na sustentabilidade das comunidades. Os dados revelam também que, de entre as práticas assinaladas para medir o nível de integração da sustentabilidade ambiental, o recurso à utilização de materiais naturais e com pouco impacto ambiental na construção de habitações, é a prática menos integrada nos projetos em estudo. 

A sustentabilidade social, tal como a dimensão ambiental, encontra-se fortemente integrada nas tendências das comunidades sustentáveis em Portugal. Um dos pilares fundamentais para a edificação de uma comunidade saudável são os seus membros e a construção constante da noção de comunidade. Uma visão sistémica que preconize uma consonância entre o individual e o coletivo (Ware, 1986), e procure alcançar uma totalidade orgânica baseada em objetivos comuns (Joubert e Alfred, 2007), são pedras basilares para que possa alcançar uma identidade comunitária homogénea e uma consciência coletiva. Para tal, é necessário um compromisso coletivo e comunitário com algumas práticas que não só refletem a estrutura da comunidade, mas que também servem como um mecanismo contínuo para a construção da mesma. 


Figura 8 – Nível de Integração de Práticas de Sustentabilidade Social 

Fonte: Adaptado de Nogueira, 2015 


O nível de integração de práticas de dimensão social (Figura 7) nos projetos em estudo, e verifica-se que existe um compromisso que destaca esta dimensão como uma das mais importantes para as comunidades portuguesas. A transparência da gestão e o livre acesso à informação, bem como, a partilha de recursos comuns e a promoção da ajuda mútua/existência de redes de solidariedade, e a participação ativa de todos os indivíduos na vida da comunidade são práticas que se encontram totalmente integradas para a maioria dos casos estudados, e que contribuem para a sedimentação e coesão da comunidade. A tomada de decisões pela via do consenso e a gestão coletiva de recursos e atividades apesar de se encontrarem integradas, revelam um nível de integração ligeiramente inferior às restantes, uma vez que, em alguns casos, existe um núcleo de gestão comunitário, eleito pelos membros da comunidade, que funciona como um facilitador da decisão, e que tem o papel de garantir que as decisões tomadas refletem as necessidades da comunidade e a opinião dos membros. 

As práticas de sustentabilidade económica não revelam as mesmas tendências que as dimensões analisadas anteriormente. De facto, verifica-se que existem modelos não lineares de integração da dimensão económica. É possível perceber que as práticas gerais que têm que ver com os princípios da economia social e solidária são mais facilmente integrados do que práticas mais específicas, que preconizem uma rutura com a economia de mercado. A sustentabilidade económica foi a dimensão onde os respondentes colocaram um maior número de observações/opiniões, que revelaram que embora exista uma perceção coletiva da importância desta dimensão para a autossuficiência e para a resiliência da comunidade, bem como a manifestação da vontade de integrar algumas destas práticas, admitem uma maior dificuldade na dimensão económica, muitas vezes associado à dimensão da comunidade, ao facto de serem projetos recentes e à dependência do exterior e do mercado. 


Figura 9 – Nível de Integração de Práticas de Sustentabilidade Económica 

 

Fonte: Elaboração Própria 

 

A figura 8 revela a fragmentação da integração de práticas de sustentabilidade económica, no quotidiano das comunidades sustentáveis respondentes. De entre as práticas mais integradas destacam-se o consumo sustentável e socialmente responsável, seguindo-se o princípio da lógica não cumulativa e redistributiva, e pela existência de atividades de autofinanciamento. A integração de redes de trocas não monetárias divide os projetos em causa, e enquanto aproximadamente cerca de metade dos casos indica níveis de integração entre o 4 e o 6, da escala, os restantes assume-se entre os 3 níveis inferiores da escala. A criação, promoção e utilização de uma moeda para as trocas necessárias e a poupança em instituições financeiras criadas dentro da comunidade são as práticas económicas menos integradas nas comunidades estudadas. 

Nesta análise, para além das 3 dimensões mais comuns na análise da sustentabilidade, incluiu-se a dimensão espiritual. A dimensão espiritual, quando integrada, é um dos mecanismos que pode ser servir como um impulsionador da construção da identidade coletiva e da partilha de valores e ideais de uma dada comunidade. Embora a literatura defina os rituais como sendo comportamentos codificados culturalmente, que são fundamentais para a construção de identidade comunitário e para o aumento do sentimento de pertença individual (Bates, 2005; Joubert e Alfred, 2007; Waerther, 2014), a maioria dos projetos analisados admite a não existência de uma religião predominante, e revela que a participação em rituais e celebrações é uma prática que se encontra pouco integrada na comunidade (com níveis de integração entre o 1 e o 3).  

Em suma, é possível perceber que as formas de organização social de base comunitária que preconizam modos sustentáveis de vida podem merecer um lugar de destaque na discussão relativa aos paradigmas de desenvolvimento e na importância da sua transferibilidade para outros contextos, comos as cidades contemporâneas, devido à sua capacidade de criar condições que promovam uma maior autonomia individual e consequentemente coletiva. Segundo José Manuel Henriques: «A produção agrícola para autoconsumo, a autoconstrução, o trabalho voluntário em associações locais, a organização coletiva para a guarda de crianças, etc., são exemplos da concretização possível dessa perspetiva com exemplos comuns» (Henriques, 2010: 17). 

 

5. Conclusão: 

A crescente tomada de consciência da necessidade de reestruturação do paradigma dominante de desenvolvimento conduz, efetivamente, à procura de novos modos de vida que preconizem modelos sustentáveis e comunitários. Em Portugal, tendo em conta os casos estudados, apesar de ser possível registar uma procura crescente neste sentido, e consequentemente, uma maior dinâmica de oferta, o que se verifica é que existem desafios no que diz respeito a uma mudança que se possa considerar estrutural. É um fenómeno não sistémico entre as organizações e que ainda se encontra pulverizado. A maioria dos projetos ainda é de dimensão reduzida. Esta dispersão faz com que papel de mudança estrutural que estes projetos poderiam ter ainda não seja vinculativo e conduz a uma inatividade relativa à dimensão do seu compromisso político enquanto grupos de pressão e exemplos de boas práticas. 

A análise mostra que as comunidades sustentáveis intencionais em Portugal refletem uma primazia, no que se refere às práticas de sustentabilidade, das dimensões sociais e ambientais. A dimensão económica é normalmente, a que se encontra menos integrada nas práticas da comunidade, muitas vezes, devido à dificuldade que encontram em manter o sistema resiliente sem a dependência da economia de mercado. É neste sentido, que os projetos encontram alguma resistência e desmotivação na construção de um papel político preponderante.  

Como referenciado pela literatura, os contornos e definições destes objetos empíricos ainda se encontram pouco sistematizados. Isto não acontece por falta de esforço dos investigadores e/ou dos projetos académicos que se têm debruçado sobre esta temática, mas sim porque cada comunidade é um projeto, simultaneamente, individual e coletivo dos membros que a formam. Isto faz com que, embora existam algumas dimensões e linhas transversais, cada comunidade tenha a sua identidade, preconize os seus próprios objetivos e foque as práticas que acreditam ser mais estruturais para o seu desenvolvimento.  

Este trabalho revelou que, embora as comunidades sustentáveis encerrem em si, inúmeras possibilidades de funcionar como promotores de modelos não dominantes de desenvolvimento, no sentido em que estamos perante laboratórios experimentais de novas formas de organização social, que articulam modelos simples com contextos complexos, e que promovem a inovação através da valorização dos recursos endógenos, tangíveis e intangíveis, ainda existe um longo caminho a percorrer. Se por um lado, é necessário que a classe política e as agências de desenvolvimento olhem para estes cenários como exemplos de boas práticas e promovam o seu crescimento através da implementação de políticas públicas que facilitem o progresso das suas atividades e a transferência do conhecimento gerado por estes projetos. Por outro lado, cabe também os projetos abrirem o caminho, no sentido, de sedimentarem o seu papel político e aumentar o compromisso para com a comunidade global, de modo a ganhar dimensão e voz ativa e esbater a desconfiança associada a estas comunidades. 

O isolamento, principalmente o geográfico e territorial, contribui para esta lacuna na escalabilidade das suas práticas, comprometendo assim, o impacto que estas comunidades poderiam trazer para as cidades contemporâneas. Note-se que, para algumas comunidades, esta transferência poderá ser encarada como uma rutura e desconexão dos seus próprios valores. Pese embora, os vários exemplos e potencialidades de pontes de ligação entre as CSI em contexto rural e as de contexto urbano, este não deixa de ser um debate controverso e dicotómico. No entanto, numa época em que se identificam problemas, debatem-se soluções, mas efetivam-se poucas práticas, estas comunidades ganharam uma considerável relevância científica e social devido às suas experiências concretas com a construção de alternativas sociais, contribuindo, consideravelmente, para um debate mais amplo e profundo sobre sustentabilidade (Dias et. al, 2017).  

Tendo em conta os dados analisados é possível perceber que esta transição é mais dificultada pelos valores e princípios subjacentes às comunidades sustentáveis intencionais, do que propriamente, à dificuldade de implementar as suas práticas em contexto urbano. Atualmente, existe uma tendência crescente para estas comunidades começarem a assumir um papel, mais preponderante, enquanto agentes ativos de mudança e produtores de conhecimento. A GEN – Global Ecovillage Network é um exemplo do esforço que tem vindo a ser feito neste domínio, atuando como agente de promoção e disseminação das boas práticas das CSI, ao mesmo tempo que difunde uma ideologia de partilha e construção de redes entre estas comunidades e outros agentes sociais.  

Neste sentido, mais do que traçar quadros gerais dos contextos ou analisar estudos de caso como exemplos de boas práticas, importa, futuramente, sistematizar e identificar os impactos reais e potenciais das comunidades sustentáveis intencionais na sociedade civil, nomeadamente, nas cidades contemporâneas. Para tal, importa perceber de que forma é que estas práticas podem ser codificadas, transferidas, reestruturadas e aplicadas em outros contextos, mesmo que através de modelos híbridos de comunidade.  

 

Agradecimentos: Carla Nogueira beneficia do apoio financeiro da FCT  –  Fundação  para  a  Ciência  e  a  Tecnologia  (referência  SFRH/BD/117398/2016,  financiado  pelo  POCH,  comparticipado  pelo  Fundo  Social  Europeu  e  por  fundos  nacionais  do  Ministério  da  Ciência. A autora agradece a todas as comunidades que participaram no estudo e à orientadora da sua dissertação de mestrado que inspirou este artigo – Vanessa Sousa.  

 

 

 

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Luzes e Penumbras entre Capitalismo e Cidade: Uma Revisão de Literatura

 Fábio Sampaio¹

Resumo:

Desde a emergência do capitalismo industrial até ao capitalismo moderno e monopolista atual, que existem desigualdades entre os indivíduos devido à propagação da lógica capitalista que visa a acumulação de riqueza e a desigualdade entre classes. Muita literatura recente tem-se debruçado sobre os impactos do capitalismo na vida dos indivíduos nas cidades, particularmente no que toca aos efeitos dos centros urbanos na vida dos indivíduos e dos aglomerados industriais nas cidades. O presente artigo faz uma revisão sobre os impactos do capitalismo – analisando conceitos como, novo espírito do capitalismo, capitalismo flexível e capitalismo cognitivo-cultural nas cidades. A intenção é saber que contributo tem afinal o capitalismo no desenvolvimento socioeconómico das cidades, tanto do indivíduo como pessoa singular dentro da cidade, assim como, na cidade em sentido mais amplo. Desta forma, é imperativo tentar perceber impactos positivos e desenvolvimento socioeconómico que advêm da presença do capitalismo nas cidades, mas será também relevante descortinar e esmiuçar as desvantagens e desigualdades que poderão ocorrer nas cidades.

 

Palavras Chave: Capitalismo; Capitalismo Cognitivo-Cultural; Capitalismo Flexível; Cidades; Centros Urbanos; Aglomerados Industriais.

 

¹ Investigador Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), Estudante do Doutoramento em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

 

1. Introdução

 

A discussão em torno do capitalismo e da sua influência na sociedade é algo que tem vindo a ser muito debatido pela literatura desde o início da sua ascensão como ordem social e económica. O presente artigo irá descortinar o conceito de capitalismo num sentido mais lato, tendo como referência autores como Richard Sennett, no que toca à sua perspetiva em torno da nova cultura do capitalismo e do capitalismo flexível. O capitalismo exerceu uma transformação na produção, isto é, uma mudança nas instituições e burocracias para que as pessoas possam trabalhar de forma mais flexível (o chamado capitalismo flexível) e menos rígida, promovendo assim maiores e melhores oportunidade de emprego e de vida (Sennett, 2005). Por outro lado existem outras manifestações e exteriorizações do capitalismo como nos tem falado Scott (2014), focando a sua obra no capitalismo cognitivo-cultural, sendo que este vem a partir de uma linha de pensamento pós-fordista que irá ter influência direta nas cidades.

A narrativa do presente artigo gira em torno da influência que o capitalismo nas suas múltiplas manifestações e mutações tem nas cidades e centros urbanos. É credível afirmar que o desenvolvimento socioeconómico das regiões tem sido vinculado aos aglomerados industriais que surgem a partir da perspetiva capitalista neoliberal e dos fatores positivos que daí advêm, tais como, aumento do nível e condições de vida, cultura e instrução dos cidadãos que habitam nas cidades a partir de um desenvolvimento do chamado ambiente construído (Simões & Rodrigues, 2004; Harvey 1978). Desta forma, o pretendido é explorar os efeitos positivos que os aglomerados industriais a partir da sua lógica capitalista têm nas condições sociais e económicas das cidades e na população.

Para além da luz que se deslumbra nesta ordem social capitalista e na sua influência positiva nas cidades e meios urbanos, existem algumas contradições que ficam na penumbra, escondidas debaixo da sombra do capitalismo. A nova cultura do capitalismo, o capitalismo cognitivo cultural e o capitalismo flexível, têm intrínsecos a si a lógica do capitalismo em gerar, ou seja, a desigualdade (Kiuru, 2017). Nas cidades o capitalismo irá trazer desigualdades entre habitantes, desertificação de algumas cidades em detrimento de outras, existindo assim um desenvolvimento nas grandes cidades e centros urbanos, ao nível socioeconómico e cultural e um crescente subdesenvolvimento nas cidades menos desenvolvidas, sendo que, esta ‘bola de neve capitalista’ tenderá sempre a aumentar, beneficiando uns e prejudicando continuamente outros.

O presente artigo organiza-se da seguinte forma, primeiramente existe uma breve menção sobre o capitalismo e as suas mutações no decorrer da sua promoção como ordem social. Posteriormente, tomando partido da visão perspetiva por Allen J. Scott, existe uma concetualização do conceito de ‘cidade” de forma a que seja viável e compreensível realizar uma relação macro-social entre ‘cidades’ e ‘capitalismo’. Em terceiro lugar, vai ser abordada a relação existente entre cidades e capitalismo, sendo que, neste ponto serão abordados os pontos positivos que advêm do capitalismo nas cidades – ‘Luzes’. Na mesma linha de pensamento, existirá, de seguida os efeitos negativos que o capitalismo tem nas cidades – ‘Penumbras’. Finalmente, o artigo é findado com algumas conclusões da revisão da literatura realizada.

 

2. Capitalismo: Uma Breve Discussão

O capitalismo, desde o início da sua ascensão meteórica como ordem global, já teve várias caras, facetas e formas. Atualmente é o neoliberalismo o ingrediente chave desta ordem socioeconómica. A política neoliberal pode ser encarada como uma expressão importante para o capitalismo ao promover um ambiente favorável para a globalização, flexibilidade no mercado de trabalho e para a cultura do consumismo (Sennett, 2006).

“A onda de globalização, a introdução da flexibilidade nos processos de produção, distribuição e consumo, a polarização social como expressão de estratégias de acumulação com valor excedente absoluto e relativo, suportando por um neoliberalismo do estado, são os ingredientes do regime de acumulação flexível” (Scott, 2014, p. 571).

O neoliberalismo que é vivenciado nos dias que correm para além de proporcionar o ambiente necessário e propício para a propagação desta nova cultura do capitalismo como é mencionado por Richard Sennett na sua obra “Nova Cultura do Capitalismo”, acentua também o que pode ser chamado segundo uma visão marxista, o domínio do trabalho pelo capital. A classe capitalista comanda o processo de trabalho e organiza esse processo com o objetivo de acumulação de riqueza e obtenção de lucros (Harvey, 1978). A partir da assunção dos autores previamente citados, poderá chegar-se à conclusão de que, o mundo contemporâneo é fundado a partir de uma sociedade que tem como princípio a acumulação, geração de riqueza, produção e consumo. O autor deste artigo julga ainda ser relevante frisar a premissa de que estes pressupostos são a bandeira que sustenta o atual sistema

capitalista e era global que tem vindo a alterar-se consoante as pressões nas sociedades, mas que de certa forma, impõem sempre a sua vontade e regime de obtenção de riqueza, perpetuando as desigualdades.

Esta nova cultura capitalista de apropriação de riqueza e trabalho, de acumulação, de pensamento global (aldeia global), de descentralização poderá ter os seus pontos positivos (Sennett, 2006). Nesta nova etapa existe uma globalização do trabalho e dos fluxos do capital, que poderá ser um ponto positivo visto ter a capacidade de emancipação e oportunidades para os indivíduos, tanto ao nível laboral como no que toca à sua qualidade de vida. Existirá, portanto, uma transformação na produção, isto é, uma mudança nas instituições e burocracias para que as pessoas possam trabalhar de forma mais flexível (capitalismo flexível) e menos rígida, promovendo assim maiores e melhores oportunidade de emprego e por conseguinte aumento do nível de vida (Sennett, 2005). Por outro lado, existem alguns pontos negativos que merecem ser referenciados, que irão influenciar a vida dos indivíduos tanto de forma individual como a sua noção de coletivo e de vida em sociedade.

“O reinado socialista dos planos quinquenais e do controle económico centralizado acabou-se. E também se foi a corporação capitalista que proporcionava empregos vitalícios aos empregos, fornecendo os mesmos produtos e serviços ano após ano.” (Sennett, 2006, p. 11)

No entendimento de Sennett existiu uma fragmentação das grandes instituições deixando no que lhe concerne em estado fragmentado as vidas de muitos indivíduos. Se por um lado este novo capitalismo poderá trazer mais oportunidades e mobilidade para os indivíduos, traz também mais incerteza e precariedade, pois, com as novas exigências de trabalho e migração, a desterritorialização, mobilidade e migração tornaram-se num verdadeiro ícone da era global, desorientando a vida familiar, em comunidade e em sociedade. Em suma, o último meio século deu origem a um enorme grau de criação de riqueza para certos locais do planeta, como na Ásia e Norte Global. Porém, ao mesmo tempo, gerou mais incerteza, menos noção de sociedade, comunidade, assim como, uma maior efemeridade dos postos de trabalho e das competências dos indivíduos, tornando-os “obsoletos” cada vez mais rápido.

“O responsável por uma empresa dinâmica declarou recentemente que ninguém tem o emprego garantido em

sua organização e, particularmente, que os serviços prestados não significam garantia de perenidade para nenhum empregado” (Sennett, 2006, p. 14).

Até ao momento, foi abordado o capitalismo de uma forma mais geral, nomeadamente no que diz respeito ao ‘novo capitalismo’, foi efetuada uma breve caracterização deste como tendo influência na vida singular do individuo, tendo sido brevemente focado o conceito de comunidade. Seguidamente o artigo irá tentar focar-se numa perspetiva mais macro-social, relacionando a perspetiva capitalista com as cidades e centros urbanos.

 

3. Cidades e Centros Urbanos: O Capitalismo Como Força Motriz

 

3.1 O Que é a Cidade?

Primeiramente, é fulcral definir o que se entende por ‘cidade’, o conceito poderá ter uma panóplia de conceptualizações e significados, sociológicos, económicos e financeiros. Na perspetiva do presente artigo, tendo em conta a visão de Scott (2001) as cidades representam densas aglomerações da vida social que emergem da necessidade de proximidade quando um grande número de indivíduos estão “concentrados” em atividades mutuamente interdependentes. Dito isto, uma possível definição de cidades poderá ser: localidades marcadas por redes de relações e intercâmbios humanos, sendo que o processo urbano implica a criação de infraestruturas físicas para produção, circulação, troca e consumo (Harvey, 1978; Scott, 2001).

“Uma cidade é um lugar onde as pessoas podem aprender a viver com estranhos, A prática da democracia moderna exige que os cidadãos aprendam a entrar na experiência e nos interesses de vidas desconhecidas. A sociedade desta feita, progride, quando a experiência dos indivíduos não se limita apenas a quem se assemelha a eles. As cidades são, portanto, lugares onde se aprende a viver com estranhos” (Sennett, 2005, p. 109).

Após esta breve definição de cidade, importa saber qual o impacto do capitalismo nas cidades, ou seja, de que forma é que o capitalismo e as suas complexidades interagem com as dinâmicas e mutações das cidades desde o seu nível macro-social até ao seu nível micro-social. Torna-se importante para o seguimento do presente artigo, aprofundar mais o conceito de capitalismo de forma mais específica no que toca à sua influência nas cidades, centros urbanos e aglomerados industriais. Primeiro, importa analisar como é que o capitalismo se manifesta nas dinâmicas, manifestações, mudanças e mutações das cidades. Segundo, será adequado conhecer como é que o capitalismo forma sociedades e centros urbanos mais ou menos ricos, mais ou menos cultos, mais ou menos individualistas e mais ou menos desenvolvidos económica e socialmente.

3.2 Capitalismo, Cidades e Aglomerados industriais: A Verdade Visível (A Luz)

Uma das maiores manifestações do capitalismo nas cidades são os aglomerados industriais que por sua vão ter uma influência direta no desenvolvimento socioeconómico e cultural das cidades. Segundo Simões e Rodrigues (2004), as indústrias nas cidades e centros urbanos, são um ponto determinante para a geração de rendimentos e emprego, visando compensar as desigualdades económicas, sociais e regionais. Na perspetiva destes autores o capitalismo irá “conduzir” para as cidades os chamados aglomerados indústrias que por sua vez poderão influenciar positivamente o seu desenvolvimento socioeconómico. Corroborando o que foi dito, Marshall (1982) enumera alguns pontos positivos que estes aglomerados industriais têm para com as cidades e seus habitantes:

* Estimulam as atividades económicas de outras indústrias, empresas e firmas da região, como as atividades subsidiárias encarregadas do fornecimento de matérias-primas e da distribuição de produção;

* Propicia um mercado de oferta de mão de obra bem estruturado e especializado, facilitando, por um lado, aos trabalhadores o acesso ao emprego e, por outro, aos empregadores a contratação de mão de obra especializada e qualificada;

* O conhecimento tecnológico gerado pelos ‘spillovers’1, ou seja, pela maior disseminação de informação e de conhecimento.

 

Segundo a perspetiva dos autores citados, existem vantagens inerentes à formação de aglomerados industriais nas cidades que irão influenciar positivamente o desenvolvimento

da cidade. Sob esta perspetiva, pode ainda ser reiterado que o principal impacto decorrente da proliferação de aglomerados industriais ocorre sobre a dimensão económica do desenvolvimento, por exemplo, no que toca à pobreza, o nível de pobreza poderá reduzir via aumento dos postos de emprego e do acesso aos mais variados tipos de bens e serviços, tais como, educação, saúde e bens de conforto (Simões & Rodrigues, 2004). Desta forma, existirá um maior desenvolvimento da regiões e/ou cidades, pois, com o aumento dos rendimentos dos indivíduos, estes irão ter acesso a mais e melhorados bens e serviços, promovendo assim o desenvolvimento socioeconómico. Por outro lado, existirá ainda o desenvolvimento do setor criativo e cultural das cidades, tendo em conta a questão da criatividade e governança nas cidades de João Seixas e Pedro Costa (2011) e do desenvolvimento intrínseco que isso suscita. Em suma, existindo uma crescente massa populacional com um poder de compra superior, instrução e cultura, "exigirá" que ao "ao seu redor" sejam construídos e disseminados bens e serviços de consumo cultural e criativo (Harvey, 1978; Scott, 2014).

Este desenvolvimento socioeconómico e crescente necessidade das pessoas por mais e melhores bens e serviços, devido a uma oferta cada vez maior de empregos e consequente subida de rendimentos caracterizada pela industrialização das cidades, irá culminar no surgimento do que Harvey (1978) intitula de ‘built environment’ – ‘ambiente construído’. O ambiente construído é tudo aquilo que se constrói "à volta" dos aglomerados industriais, ou seja, é o investimento que é feito por parte das empresas, firmas, industrias e estado, para construir um ambiente propicio à propagação, disseminação e crescimento dos aglomerados industriais, assim como, para melhorar o nível de vida dos indivíduos que habitam a cidade, pois, serão eles que direta e indiretamente irão influenciar o crescimento da cidade segundo uma lógica capitalista. Alguns dos atributos que compõem o ambiente construído são: estradas, canais, docas e portos, fábricas, armazéns, esgotos, escritórios públicos, serviços, escolas, hospitais, shoppings, cinemas, teatros e lojas.

As cidades a partir da lógica capitalista da acumulação conseguem efetivamente ter um elevado grau de desenvolvimento socioeconómico, os aglomerados industriais pelo que se conseguiu constatar até agora, obedecem a esta lógica capitalista que rege o mundo, pois, geram riqueza, acumulam e monopolizam. Desta forma, pode dizer-se que o desenvolvimento social e económico das cidades, poderá, em grande parte, ser influenciado pela existência de aglomerados industriais. Estes por sua vez contribuirão para a melhoria da qualidade de vida e do setor criativo e cultural das cidades, além de influenciarem as competências dos indivíduos, favorecendo, portanto, a aprendizagem e know-how dos

mesmos, proporcionando ao mesmo tempo, um elevado grau de produtividade no trabalho, que consequentemente, levará a um maior desenvolvimento económico das regiões.

3.3 Capitalismo e as Cidades: A Verdade Escondida (A Penumbra)

Foi possível constatar até ao momento que a lógica neoliberal do capitalismo pode trazer várias consequências positivas para as cidades, a partir das suas lógicas de acumulação, produção e apropriação do trabalho, promovendo o dinamismo e desenvolvimento económico e social de uma determinada região. A questão que se levanta e a curiosidade do presente artigo é: Será que é tudo um “mar de rosas” como nos diz a gíria portuguesa, ou existirá algum senão no meio deste pseudo-paraíso? Será que para algumas cidades terem este desenvolvimento económico não existirão outras que vão sucumbir e ficar na penumbra? Será que dentro das cidades não existirão mais desigualdades e pobreza escondida/cega?

 

 

“Para alguns, surgiu uma surpresa que, além dos resultados positivos da cidade capitalista - ou seja, produtividade e inovação - a desigualdade dentro e entre as cidades é um resultado inevitável das cidades sob a atual política de desregulamentação neoliberal” (Kiuru, 2017, p. 1)

 

Na perspetiva de Scott (2014), estamos a entrar num período marcado pela chamada terceira onda distintiva de urbanização baseada no chamado ‘capitalismo cognitivo-cultural’, em contraste com uma primeira onda associada ao sistema de fabricação e oficina do século XIX e uma segunda onda de associação, com o fordismo do século XX. O conceito de capitalismo cognitivo cultural, segundo este autor vem a partir de uma evolução do fordismo para o pós-fordismo que ocorreu nos anos 80 e 90 e que tem uma forte influência na aprendizagem, criatividade e inovação.

 

“O significado substantivo preciso da ideia varia muito de um autor para outro, mas pode-se dizer que uma espécie de visão composta ideal da cidade criativa, tal como surge na literatura, inclui ingredientes como uma base de emprego que compreende indústrias bem-sucedidas da nova economia, um grupo vibrante de mão de obra talentosa e

qualificada, altos níveis de qualidade ambiental, um meio cultural dinâmico” (Scott, 2014, p. 566)

 

Segundo o autor citado, as cidades têm vindo a transformar-se segundo esta nova ordem capitalista, essas transformações irão trazer várias mudanças e mutações nas cidades tanto no seu tecido industrial como empresarial:

 

* As principais economias capitalistas concentram-se cada vez mais em produtos não padronizados em setores como: produção intensiva de tecnologia, negócios, serviços financeiros e numa ampla gama de indústrias culturais;

* Os mesmos setores exibem tendências definidas para uma ampla desintegração horizontal e vertical com grupos selecionados de empresas, sendo então recompostos em redes de produtores especializados, com fortes tendências à aglomeração, principalmente nas grandes cidades;

* O aumento das partes da produção desses setores é marcado por especificações de produtos específicos de cada empresa.

* O crescimento conspícuo da nova economia reflete-se na expansão de uma força de trabalho que é “convocada” de forma crescente para implementar as suas capacidade e competências que por sua vez têm um elevado nível de habilidade cognitiva e culturais, como capacidades de raciocínio dedutivo, visão técnica, liderança, habilidades de comunicação, conscientização cultural e imaginação visual.

 

É notável que existe uma grande evolução e desenvolvimento nas cidades com a "chegada" do capitalismo cognitivo-cultural, a questão que se levanta é se este desenvolvimento é igual para todas as cidades e regiões de um determinado local, ou se aqueles que não conseguem acompanhar este ritmo terão alguma quebra no seu desenvolvimento. O capitalismo, como é sabido, de modo geral não é homogéneo nem de todo igualitário no que toca a oportunidades de crescimento, e o pós-fordismo não veio mudar essa premissa.

Como foi possível constatar um dos benefícios que o capitalismo cognitivo-cultural tem adjacente é a instrução dos indivíduos, tornando-os mais escolarizados, cultos e preparados para um mercado de trabalho cada vez mais especializado, técnico, qualificado e

competitivo. Dito isto, pode ser questionado, será que os indivíduos com um maior nível de instrução e com as oportunidades existentes irão sujeitar-se a deslocarem-se para regiões não tão desenvolvidas? Segundo Florida (2004), as cidades para atraírem um grande número de trabalhadores criativos e qualificados terão de oferecer condições de bem-estar e de crescimento individual, somente desta forma o crescimento económico local irá ser estimulado. Posto isto, é constatável que o capitalismo atualmente promove a desterritorialização de zonas menos desenvolvidas, promovendo desta forma um gap no desenvolvimento socioeconómico, entre diferentes cidades e centros urbanos.

O gap mencionado, existe, porque, se uma determinada cidade acentar o seu desenvolvimento de forma mais acentuada numa lógica que vise o capitalismo cognitivo-cultural, irá direta e indiretamente chamar para si os indivíduos com mais formação, qualificação e cultura que podem desenvolver ainda mais essa cidade, fazendo com que as restantes cidades da região e/ou países, entrem num decréscimo do seu desenvolvimento, estagnando ou até mesmo retraindo, criando desta forma uma desigualdade entre cidades e os habitantes que nela habitam (Scott, 2001).

"Cidades com abundantes amenidades estão aptas a crescer porque a classe criativa preferencialmente migrará para essas cidades, e sua presença será refletida em explosões de dinamismo económico local” (Scott, 2014, p. 571).

Na mesma linha de pensamento Sennett (2005) mencionada a questão do capitalismo flexível, no que toca ao desapego que os indivíduos vão vivenciar para com as cidades e seus habitantes. O capitalismo flexível tem os mesmos efeitos na cidade e no local de trabalho, isto porque, como a produção flexível produz relações mais superficiais e de curto prazo no trabalho, vai criar, por sua vez, um regime de relações superficiais nas cidades e centros urbanos (Sennet, 2005). O autor quando se refere ao capitalismo flexível frisa o facto de que com a mobilidade intercidades que existe por parte dos indivíduos, para além, do subdesenvolvimento que existirá nas cidades abandonadas como alude Scott (2014), promoverá ainda um desapego das pessoas para com a cidade que habitam. Por sua vez, existirá ainda um desapego e descoletivização entre os seus habitantes, perdendo-se, desta forma, a noção de comunidade e coletivismo, surgindo então problemas de cidadania e participação cívica.

“A dialética da flexibilidade e da indiferença aparece em três formas. O primeiro é expresso em ligação física à cidade; O segundo expressa-se na padronização do meio ambiente urbano; o terceiro em relações entre trabalho familiar e urbano. A questão do apego físico ao lugar é talvez a mais evidente dos três” (Sennett, 2005, p. 116).

O desapego existente entre os indivíduos nas cidades que habitam e a sua falta de dever cívico, pode ser equiparado com o desapego e a falta de preocupação que as empresas têm para com as cidades, segundo esta lógica capitalista vigente nos dias que correm, as empresas cada vez menos se preocupam com a cidade e os seus habitantes e quais as consequências das duas ações. A economia global não está enraizada na cidade, no sentido de depender do controle da cidade como um todo, ou seja, as empresas ameaçando sair, poderão ir para qualquer lugar do mundo, tendo de ser seduzidas pelas instituições locais para tornar possível a sua permanência, aparecendo desta forma indiferentes aos locais onde se encontram (Sennett, 2005).
Ainda no que toca à influência do capitalismo nos indivíduos dentro das cidades, nas cidades onde existem grandes aglomerados industriais, também existe uma grande clivagem entre os habitantes, nomeadamente no que toca aqueles que têm empregos mais qualificados e os que têm empregos menos qualificados. Nas cidades pós-fordistas, numa lógica muito próxima do capitalismo cognitivo-cultural, há uma clivagem aparentemente endémica e aprofundada entre os gestores, profissionais e técnicos bem remunerados e os indivíduos com empregos de baixa qualidade onde o trabalho de produção é realmente baseado (Scott, 2001). Dito isto, é observável que a lógica da desigualdade capitalista é mais uma vez visível mesmo em cidades desenvolvidas economicamente e socialmente. Existe uma diferenciação de classes segundo as suas qualificações e consequente rendimento, existindo, desta forma, riscos de pobreza, exclusão social e acesso diferenciado a bens e serviços, mesmo em cidades e centros urbanos que supostamente foram construídos a partir do surgimento de aglomerados industriais e que têm um acesso mais facilitado a todo o tipo de bens e serviços devido ao seu ‘ambiente construído’ (Harvey, 1978).

Dentro desta perpectiva  do capitalismo cognitivo-cultural de Scott que foi também relacionado com o capitalismo flexível de Sennet, tornou-se possível observar que o capitalismo cria desigualdades entre os indivíduos dentro das cidades, cria falta de pertença, falta de envolvimento cívico, desapgo pela cidade, assim como, é um fator de constante desigualdade entre cidades não estar só adjacente aos talentos - "classe criativa" que estas conseguem atrair e que nela habitam devido a serem mais ou menos apelativas (Florida, 2004).  Existe, por outro lado, o nível de atração que as cidades têm para o investimento. É constatável que estas duas lógicas são intrínsecas, mas é preciso comprovar que com o capitalismo uma cidade que é apelativa para o investimento terá a tendência de continuar apelativa e por outro lado as cidades menos apelativas continuarão a ser pouco apelativas para investimentos futuros.

“Os efeitos de intensificação das atividades económicas decorrentes da concentração geográfica das firmas podem levar ao desequilíbrio económico regional. Isso ocorre porque as áreas que não se encontram no entorno dos centros de crescimento tornam-se deprimidas, devido à falta de estímulos à produção” (Simões & Rodrigues, 2004, p. 206).

Se se considerar num sentido mais lato a desigualdades como uma condição intrínseca do capitalismo, essa condição é bastante observável e constatável nas “relações” entre cidades. No entender de Hirschman (1977), as desigualdades regionais são uma condição intrínseca ao próprio processo de crescimento, pois, esse crescimento implica divergências de rendimentos e de produção, cujo resultado irá ser a divisão de um continente, país ou região em áreas dinâmicas por um lado, estagnadas e retraídas por outro. Traduzindo as palavras do autor, esta retração e estagnação por parte de umas cidades e desenvolvimento por parte de outras, ocorre porque os investimentos que posteriormente surtirão em inovações, incrementos culturais, educação, saúde, escolaridade, aumento do nível e qualidade de vida, ao estarem concentrados numa só localidade, não irão necessariamente expandir os seus benefícios para outras regiões, pelo contrário, poderão contribuir para a sua retração económica e para o aumento da pobreza e exclusão social das regiões menos desenvolvidas.

Esta tendência pode ser considerada como uma ‘bola de neve capitalista’, isto porque, se uma cidade é mais atrativa, irá chamar mais indivíduos e talentos, por sua vez, terá mais tecido empresarial e uma maior rede de stakeholders, que, por conseguinte, conseguirá trazer para si mais investimento e tenderá a formar aglomerados industriais e cidades mais desenvolvidas. Acontecendo isto, o ambiente construído de que fala Harvey (1978), também tenderá a aumentar, criando cada vez mais e melhores condições de vida aos indivíduos e as empresas, atraindo ainda mais investimento e pessoas para a cidade em detrimento de outras cidades e/ou regiões que tenderão a ser desertificadas, devido à falta de investimento que advém da sua falta de atratividade que é gradualmente intensificada devido às desigualdades que são “facultadas” direta e indiretamente pelo capitalismo. Esta tendência para as desigualdades entre cidades, regiões e países, pode ser explicada segundo a ‘o principio da causação circular cumulativa’ – este principio estabelece que as áreas mais prosperas tendem a receber mais investimentos, desenvolvendo-se ainda mais, em detrimento das áreas mais pobres, que tendem a tornar-se cada vez menos desenvolvidas devido a sua crescente falta de atratividade (Myrdal, 1960).

As grandes cidades onde estão localizados os aglomerados industriais que, por sua vez, são mais desenvolvidas por todos os fatores já enumerados, favorecem ainda um fluxo contínuo de novos métodos, produtos, estilos e cultura. Na existência e aparecimento de um centro dominante é então previsível que os custos de fornecimento e distribuição sejam baixos, ou seja, as reduções nos custos de distribuição irão aumentar o retorno económico, aumentando assim, o desenvolvimento socioeconómico da cidade.  Devido a esses custos mais baixos de produção e distribuição vão reduzir o limiar de entrada para os centros menores, causando assim uma maior desigualdade, pondo em causa a sua sobrevivência, podendo sujeitar a sua população ao desemprego, pobreza e exclusão social (Scott, 2001). Pode ser dado um exemplo bem conhecido dos países asiáticos, segundo Scott (2001) com a concorrência de produtores asiáticos mais baratos alguns distritos franceses entraram em colapso, aumentando o número de falências, diminuindo assim a atratividade dos distritos para o investimento, para migração de mão de obra qualificada, culminando na desterritorialização, desemprego e exclusão social.

 “Nos Círculos asiáticos é notavelmente forte, nomeadamente na China, onde as cidades de Pequim, Xangai, Guangzhou, Chongquin e Wuhan (para não se esquecer de Hong Kong e Macau) estão a afirmar cada vez mais suas realizações criativas e potenciais” (Scott, 2014, p. 567).

 

 

 4    Conclusão

Em suma, o presente artigo considera factível afirmar e concluir que as várias formas debatidas do capitalismo, tanto o novo espírito do capitalismo, como do capitalismo flexível mencionado Sennett ou do capitalismo cognitivo-cultural, mencionado por Scott, têm fatores que efetivamente proporcionam o desenvolvimento socioeconómico das cidades, regiões e/ou países, aumentando o nível de vida e qualificação dos seus habitantes, proporcionando um crescimento físico, cultural e social da cidade a partir do seu ambiente construído e de mais e melhores oportunidade de emprego para os seus habitantes.

 

Os aglomerados industriais que estão por detrás desta lógica capitalista, trazem efetivamente benefícios as cidades e aos seus habitantes como foi deparável durante a revisão feita. De entre os benefícios constatados, podem ser sublinhados a estimulação da atividade económica dos diferentes stakeholders, aumento da oferta de empregos e qualificação da mão de obra e maior e melhor disseminação da informação e das tecnologias entre as empresas e industriais (spillovers).

 

Por outro lado, foi igualmente constatável, que o capitalismo nas cidades ao mesmo tempo que cria desenvolvimento, também cria desigualdades socioeconómicas, entre indivíduos dentro das cidades e entre diferentes cidades. A ‘bola de neve capitalista’ que foi falada durante a revisão, tem na sua lógica a desigualdade, diferenciação e mutação, sendo estas características constatáveis nas cidades. Foi observável, que a lógica do mercado e do capital cunhado pelo neoliberalismo, influência algumas cidades de forma negativa, trazendo, descoletivização dos seus habitantes, falta de noção de comunidade e civismo, falta de pertença e apego, desemprego, risco de pobreza e exclusão social, desigualdades de rendimentos e de produção entre cidades, desterritorialização, centralização dos bens e serviços, assim como, uma competitividade desleal e injusta.


 

 

Referências:

 

Florida, R. (2004). Cities and the Creative Class. Routledge. London: Routledge.

 

Harvey, D. (1978). The urban process under capitalism: a framework for analysis Authors . Internacional Journal of Urban and Regional Research , 2 (1-3), 101-131.

 

Hirschman, A. (1977). Transmissão inter-regional e internacional do crescimento económico. In J. (. Schwartzman, Economia regional: textos escolhidos (pp. 35-52). Belo Horizonte: CEDEPLAR.

 

Kiuru, J. (2017). Cities in global capitalism. International Review of Sociology , 1-3.

 

Marshall, A. (1982). Organização industrial: concentração de indústrias especializadas em certas localidades. In A. Marshall, Princípios de economia: tratado introdutório (pp. 231-238). São Paulo: Abril Cultural.

 

Myrdal, G. (1960). O princípio da causação circular cumulativa. In G. Myrdal, Teoria Economica e Regioes Subdesenvolvidas (pp. 26-38). Rio de Janeiro:ISEB.

 

Scott, A. J. (2014). Beyond the Creative City: Cognitive–Cultural Capitalism and the New Urbanism. Regional Studies , 48 (4), 565-578.

 

Scott, A. J. (2001). Capitalism, cities, and the production of symbolic forms. Transactions of the Institute of British Geographers , 26 (1), 11-23.

 

Sennett, R. (2005). Capitalism and the City: Globalization, Flexibility, and Indifference. In Y. Kazepov, CITIES OF EUROPE - Changing contexts, local arrangements, and the challenge to urban cohesion. .: Blackwell Publishing.

 

Sennett, R. (2006). Capitalismo, A Cultura do Novo. (E. Record, Ed.) Rio de Janeiro.

 

Simões, R., & Rodrigues, C. (2004). Aglomerados industriais e desenvolvimento socioeconômico: uma análise multivariada para Minas Gerais. Ensaios FEE , 25 (1), 203-232.

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