29/11/1955
Luzes e Penumbras entre Capitalismo e Cidade: Uma Revisão de Literatura
Fábio Sampaio
Investigador Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES, Estudante do Doutoramento em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Resumo: Desde a emergência do capitalismo industrial até ao capitalismo moderno e monopolista atual, que existem desigualdades entre os indivíduos devido à propagação da lógica capitalista que visa a acumulação de riqueza e a desigualdade entre classes. Muita literatura recente tem-se debruçado sobre os impactos do capitalismo na vida dos indivíduos nas cidades, particularmente no que toca aos efeitos dos centros urbanos na vida dos indivíduos e dos aglomerados industriais nas cidades. O presente artigo faz uma revisão sobre os impactos do capitalismo – analisando conceitos como, novo espírito do capitalismo, capitalismo flexível e capitalismo cognitivo-cultural nas cidades. A intenção é saber que contributo tem afinal o capitalismo no desenvolvimento socioeconómico das cidades, tanto do indivíduo como pessoa singular dentro da cidade, assim como, na cidade em sentido mais amplo. Desta forma, é imperativo tentar perceber impactos positivos e desenvolvimento socioeconómico que advêm da presença do capitalismo nas cidades, mas será também relevante descortinar e esmiuçar as desvantagens e desigualdades que poderão ocorrer nas cidades.
Palavras Chave: Capitalismo; Capitalismo Cognitivo-Cultural; Capitalismo Flexível; Cidades; Centros Urbanos; Aglomerados Industriais.
A discussão em torno do capitalismo e da sua influência na sociedade é algo que tem vindo a ser muito debatido pela literatura desde o início da sua ascensão como ordem social e económica. O presente artigo irá descortinar o conceito de capitalismo num sentido mais lato, tendo como referência autores como Richard Sennett, no que toca à sua perspetiva em torno da nova cultura do capitalismo e do capitalismo flexível. O capitalismo exerceu uma transformação na produção, isto é, uma mudança nas instituições e burocracias para que as pessoas possam trabalhar de forma mais flexível (o chamado capitalismo flexível) e menos rígida, promovendo assim maiores e melhores oportunidade de emprego e de vida (Sennett, 2005). Por outro lado existem outras manifestações e exteriorizações do capitalismo como nos tem falado Scott (2014), focando a sua obra no capitalismo cognitivo-cultural, sendo que este vem a partir de uma linha de pensamento pós-fordista que irá ter influência direta nas cidades.
A narrativa do presente artigo gira em torno da influência que o capitalismo nas suas múltiplas manifestações e mutações tem nas cidades e centros urbanos. É credível afirmar que o desenvolvimento socioeconómico das regiões tem sido vinculado aos aglomerados industriais que surgem a partir da perspetiva capitalista neoliberal e dos fatores positivos que daí advêm, tais como, aumento do nível e condições de vida, cultura e instrução dos cidadãos que habitam nas cidades a partir de um desenvolvimento do chamado ambiente construído (Simões & Rodrigues, 2004; Harvey 1978). Desta forma, o pretendido é explorar os efeitos positivos que os aglomerados industriais a partir da sua lógica capitalista têm nas condições sociais e económicas das cidades e na população.
Para além da luz que se deslumbra nesta ordem social capitalista e na sua influência positiva nas cidades e meios urbanos, existem algumas contradições que ficam na penumbra, escondidas debaixo da sombra do capitalismo. A nova cultura do capitalismo, o capitalismo cognitivo cultural e o capitalismo flexível, têm intrínsecos a si a lógica do capitalismo em gerar, ou seja, a desigualdade (Kiuru, 2017). Nas cidades o capitalismo irá trazer desigualdades entre habitantes, desertificação de algumas cidades em detrimento de outras, existindo assim um desenvolvimento nas grandes cidades e centros urbanos, ao nível socioeconómico e cultural e um crescente subdesenvolvimento nas cidades menos desenvolvidas, sendo que, esta “bola de neve capitalista” tenderá sempre a aumentar, beneficiando uns e prejudicando continuamente outros.
O presente artigo organiza-se da seguinte forma, primeiramente existe uma breve menção sobre o capitalismo e as suas mutações no decorrer da sua promoção como ordem social. Posteriormente, tomando partido da visão perspetiva por Allen J. Scott, existe uma concetualização do conceito de “cidade” de forma a que seja viável e compreensível realizar uma relação macro-social entre “cidades” e ‘capitalismo”. Em terceiro lugar, vai ser abordada a relação existente entre cidades e capitalismo, sendo que, neste ponto serão abordados os pontos positivos que advêm do capitalismo nas cidades – “Luzes”. Na mesma linha de pensamento, existirá, de seguida os efeitos negativos que o capitalismo tem nas cidades – ‘Penumbras’. Finalmente, o artigo é findado com algumas conclusões da revisão da literatura realizada.
O capitalismo, desde o início da sua ascensão meteórica como ordem global, já teve várias caras, facetas e formas. Atualmente é o neoliberalismo o ingrediente chave desta ordem socioeconómica. A política neoliberal pode ser encarada como uma expressão importante para o capitalismo ao promover um ambiente favorável para a globalização, flexibilidade no mercado de trabalho e para a cultura do consumismo (Sennett, 2006).
“A onda de globalização, a introdução da flexibilidade nos processos de produção, distribuição e consumo, a polarização social como expressão de estratégias de acumulação com valor excedente absoluto e relativo, suportando por um neoliberalismo do estado, são os ingredientes do regime de acumulação flexível” (Scott, 2014, p. 571).
O neoliberalismo que é vivenciado nos dias que correm para além de proporcionar o ambiente necessário e propício para a propagação desta nova cultura do capitalismo como é mencionado por Richard Sennett na sua obra “Nova Cultura do Capitalismo”, acentua também o que pode ser chamado segundo uma visão marxista, o domínio do trabalho pelo capital. A classe capitalista comanda o processo de trabalho e organiza esse processo com o objetivo de acumulação de riqueza e obtenção de lucros (Harvey, 1978). A partir da assunção dos autores previamente citados, poderá chegar-se à conclusão de que, o mundo contemporâneo é fundado a partir de uma sociedade que tem como princípio a acumulação, geração de riqueza, produção e consumo. O autor deste artigo julga ainda ser relevante frisar a premissa de que estes pressupostos são a bandeira que sustenta o atual sistema capitalista e era global que tem vindo a alterar-se consoante as pressões nas sociedades, mas que de certa forma, impõem sempre a sua vontade e regime de obtenção de riqueza, perpetuando as desigualdades.
Esta nova cultura capitalista de apropriação de riqueza e trabalho, de acumulação, de pensamento global (aldeia global), de descentralização poderá ter os seus pontos positivos (Sennett, 2006). Nesta nova etapa existe uma globalização do trabalho e dos fluxos do capital, que poderá ser um ponto positivo visto ter a capacidade de emancipação e oportunidades para os indivíduos, tanto ao nível laboral como no que toca à sua qualidade de vida. Existirá, portanto, uma transformação na produção, isto é, uma mudança nas instituições e burocracias para que as pessoas possam trabalhar de forma mais flexível (capitalismo flexível) e menos rígida, promovendo assim maiores e melhores oportunidade de emprego e por conseguinte aumento do nível de vida (Sennett, 2005). Por outro lado, existem alguns pontos negativos que merecem ser referenciados, que irão influenciar a vida dos indivíduos tanto de forma individual como a sua noção de coletivo e de vida em sociedade.
“O reinado socialista dos planos quinquenais e do controle económico centralizado acabou-se. E também se foi a corporação capitalista que proporcionava empregos vitalícios aos empregos, fornecendo os mesmos produtos e serviços ano após ano.” (Sennett, 2006, p. 11)
No entendimento de Sennett existiu uma fragmentação das grandes instituições deixando no que lhe concerne em estado fragmentado as vidas de muitos indivíduos. Se por um lado este novo capitalismo poderá trazer mais oportunidades e mobilidade para os indivíduos, traz também mais incerteza e precariedade, pois, com as novas exigências de trabalho e migração, a desterritorialização, mobilidade e migração tornaram-se num verdadeiro ícone da era global, desorientando a vida familiar, em comunidade e em sociedade. Em suma, o último meio século deu origem a um enorme grau de criação de riqueza para certos locais do planeta, como na Ásia e Norte Global. Porém, ao mesmo tempo, gerou mais incerteza, menos noção de sociedade, comunidade, assim como, uma maior efemeridade dos postos de trabalho e das competências dos indivíduos, tornando-os “obsoletos” cada vez mais rápido.
“O responsável por uma empresa dinâmica declarou recentemente que ninguém tem o emprego garantido em sua organização e, particularmente, que os serviços prestados não significam garantia de perenidade para nenhum empregado” (Sennett, 2006, p. 14).
Até ao momento, foi abordado o capitalismo de uma forma mais geral, nomeadamente no que diz respeito ao “novo capitalismo”, foi efetuada uma breve caracterização deste como tendo influência na vida singular do individuo, tendo sido brevemente focado o conceito de comunidade. Seguidamente o artigo irá tentar focar-se numa perspetiva mais macro-social, relacionando a perspetiva capitalista com as cidades e centros urbanos.
3.1 O Que é a Cidade?
Primeiramente, é fulcral definir o que se entende por “cidade”, o conceito poderá ter uma panóplia de conceptualizações e significados, sociológicos, económicos e financeiros. Na perspetiva do presente artigo, tendo em conta a visão de Scott (2001) as cidades representam densas aglomerações da vida social que emergem da necessidade de proximidade quando um grande número de indivíduos estão “concentrados” em atividades mutuamente interdependentes. Dito isto, uma possível definição de cidades poderá ser: localidades marcadas por redes de relações e intercâmbios humanos, sendo que o processo urbano implica a criação de infraestruturas físicas para produção, circulação, troca e consumo (Harvey, 1978; Scott, 2001).
“Uma cidade é um lugar onde as pessoas podem aprender a viver com estranhos, A prática da democracia moderna exige que os cidadãos aprendam a entrar na experiência e nos interesses de vidas desconhecidas. A sociedade desta feita, progride, quando a experiência dos indivíduos não se limita apenas a quem se assemelha a eles. As cidades são, portanto, lugares onde se aprende a viver com estranhos” (Sennett, 2005, p. 109).
Após esta breve definição de cidade, importa saber qual o impacto do capitalismo nas cidades, ou seja, de que forma é que o capitalismo e as suas complexidades interagem com as dinâmicas e mutações das cidades desde o seu nível macro-social até ao seu nível micro-social. Torna-se importante para o seguimento do presente artigo, aprofundar mais o conceito de capitalismo de forma mais específica no que toca à sua influência nas cidades, centros urbanos e aglomerados industriais. Primeiro, importa analisar como é que o capitalismo se manifesta nas dinâmicas, manifestações, mudanças e mutações das cidades. Segundo, será adequado conhecer como é que o capitalismo forma sociedades e centros urbanos mais ou menos ricos, mais ou menos cultos, mais ou menos individualistas e mais ou menos desenvolvidos económica e socialmente.
3.2 Capitalismo, Cidades e Aglomerados industriais: A Verdade Visível (A Luz)
Uma das maiores manifestações do capitalismo nas cidades são os aglomerados industriais que por sua vão ter uma influência direta no desenvolvimento socioeconómico e cultural das cidades. Segundo Simões e Rodrigues (2004), as indústrias nas cidades e centros urbanos, são um ponto determinante para a geração de rendimentos e emprego, visando compensar as desigualdades económicas, sociais e regionais. Na perspetiva destes autores o capitalismo irá “conduzir” para as cidades os chamados aglomerados indústrias que por sua vez poderão influenciar positivamente o seu desenvolvimento socioeconómico. Corroborando o que foi dito, Marshall (1982) enumera alguns pontos positivos que estes aglomerados industriais têm para com as cidades e seus habitantes:
Segundo a perspetiva dos autores citados, existem vantagens inerentes à formação de aglomerados industriais nas cidades que irão influenciar positivamente o desenvolvimento da cidade. Sob esta perspetiva, pode ainda ser reiterado que o principal impacto decorrente da proliferação de aglomerados industriais ocorre sobre a dimensão económica do desenvolvimento, por exemplo, no que toca à pobreza, o nível de pobreza poderá reduzir via aumento dos postos de emprego e do acesso aos mais variados tipos de bens e serviços, tais como, educação, saúde e bens de conforto (Simões & Rodrigues, 2004). Desta forma, existirá um maior desenvolvimento da regiões e/ou cidades, pois, com o aumento dos rendimentos dos indivíduos, estes irão ter acesso a mais e melhorados bens e serviços, promovendo assim o desenvolvimento socioeconómico. Por outro lado, existirá ainda o desenvolvimento do setor criativo e cultural das cidades, tendo em conta a questão da criatividade e governança nas cidades de João Seixas e Pedro Costa (2011) e do desenvolvimento intrínseco que isso suscita. Em suma, existindo uma crescente massa populacional com um poder de compra superior, instrução e cultura, "exigirá" que ao "ao seu redor" sejam construídos e disseminados bens e serviços de consumo cultural e criativo (Harvey, 1978; Scott, 2014).
Este desenvolvimento socioeconómico e crescente necessidade das pessoas por mais e melhores bens e serviços, devido a uma oferta cada vez maior de empregos e consequente subida de rendimentos caracterizada pela industrialização das cidades, irá culminar no surgimento do que Harvey (1978) intitula de “built environment” – “ambiente construído”. O ambiente construído é tudo aquilo que se constrói "à volta" dos aglomerados industriais, ou seja, é o investimento que é feito por parte das empresas, firmas, industrias e estado, para construir um ambiente propicio à propagação, disseminação e crescimento dos aglomerados industriais, assim como, para melhorar o nível de vida dos indivíduos que habitam a cidade, pois, serão eles que direta e indiretamente irão influenciar o crescimento da cidade segundo uma lógica capitalista. Alguns dos atributos que compõem o ambiente construído são: estradas, canais, docas e portos, fábricas, armazéns, esgotos, escritórios públicos, serviços, escolas, hospitais, shoppings, cinemas, teatros e lojas.
As cidades a partir da lógica capitalista da acumulação conseguem efetivamente ter um elevado grau de desenvolvimento socioeconómico, os aglomerados industriais pelo que se conseguiu constatar até agora, obedecem a esta lógica capitalista que rege o mundo, pois, geram riqueza, acumulam e monopolizam. Desta forma, pode dizer-se que o desenvolvimento social e económico das cidades, poderá, em grande parte, ser influenciado pela existência de aglomerados industriais. Estes por sua vez contribuirão para a melhoria da qualidade de vida e do setor criativo e cultural das cidades, além de influenciarem as competências dos indivíduos, favorecendo, portanto, a aprendizagem e know-how dos mesmos, proporcionando ao mesmo tempo, um elevado grau de produtividade no trabalho, que consequentemente, levará a um maior desenvolvimento económico das regiões.
3.3 Capitalismo e as Cidades: A Verdade Escondida (A Penumbra)
Foi possível constatar até ao momento que a lógica neoliberal do capitalismo pode trazer várias consequências positivas para as cidades, a partir das suas lógicas de acumulação, produção e apropriação do trabalho, promovendo o dinamismo e desenvolvimento económico e social de uma determinada região. A questão que se levanta e a curiosidade do presente artigo é: Será que é tudo um “mar de rosas” como nos diz a gíria portuguesa, ou existirá algum senão no meio deste pseudo-paraíso? Será que para algumas cidades terem este desenvolvimento económico não existirão outras que vão sucumbir e ficar na penumbra? Será que dentro das cidades não existirão mais desigualdades e pobreza escondida/cega?
“Para alguns, surgiu uma surpresa que, além dos resultados positivos da cidade capitalista - ou seja, produtividade e inovação - a desigualdade dentro e entre as cidades é um resultado inevitável das cidades sob a atual política de desregulamentação neoliberal” (Kiuru, 2017, p. 1)
Na perspetiva de Scott (2014), estamos a entrar num período marcado pela chamada terceira onda distintiva de urbanização baseada no chamado “capitalismo cognitivo-cultural”, em contraste com uma primeira onda associada ao sistema de fabricação e oficina do século XIX e uma segunda onda de associação, com o fordismo do século XX. O conceito de capitalismo cognitivo cultural, segundo este autor vem a partir de uma evolução do fordismo para o pós-fordismo que ocorreu nos anos 80 e 90 e que tem uma forte influência na aprendizagem, criatividade e inovação.
“O significado substantivo preciso da ideia varia muito de um autor para outro, mas pode-se dizer que uma espécie de visão composta ideal da cidade criativa, tal como surge na literatura, inclui ingredientes como uma base de emprego que compreende indústrias bem-sucedidas da nova economia, um grupo vibrante de mão de obra talentosa e qualificada, altos níveis de qualidade ambiental, um meio cultural dinâmico” (Scott, 2014, p. 566)
Segundo o autor citado, as cidades têm vindo a transformar-se segundo esta nova ordem capitalista, essas transformações irão trazer várias mudanças e mutações nas cidades tanto no seu tecido industrial como empresarial:
É notável que existe uma grande evolução e desenvolvimento nas cidades com a "chegada" do capitalismo cognitivo-cultural, a questão que se levanta é se este desenvolvimento é igual para todas as cidades e regiões de um determinado local, ou se aqueles que não conseguem acompanhar este ritmo terão alguma quebra no seu desenvolvimento. O capitalismo, como é sabido, de modo geral não é homogéneo nem de todo igualitário no que toca a oportunidades de crescimento, e o pós-fordismo não veio mudar essa premissa.
Como foi possível constatar um dos benefícios que o capitalismo cognitivo-cultural tem adjacente é a instrução dos indivíduos, tornando-os mais escolarizados, cultos e preparados para um mercado de trabalho cada vez mais especializado, técnico, qualificado e competitivo. Dito isto, pode ser questionado, será que os indivíduos com um maior nível de instrução e com as oportunidades existentes irão sujeitar-se a deslocarem-se para regiões não tão desenvolvidas? Segundo Florida (2004), as cidades para atraírem um grande número de trabalhadores criativos e qualificados terão de oferecer condições de bem-estar e de crescimento individual, somente desta forma o crescimento económico local irá ser estimulado. Posto isto, é constatável que o capitalismo atualmente promove a desterritorialização de zonas menos desenvolvidas, promovendo desta forma um gap no desenvolvimento socioeconómico, entre diferentes cidades e centros urbanos.
O gap mencionado, existe, porque, se uma determinada cidade acentar o seu desenvolvimento de forma mais acentuada numa lógica que vise o capitalismo cognitivo-cultural, irá direta e indiretamente chamar para si os indivíduos com mais formação, qualificação e cultura que podem desenvolver ainda mais essa cidade, fazendo com que as restantes cidades da região e/ou países, entrem num decréscimo do seu desenvolvimento, estagnando ou até mesmo retraindo, criando desta forma uma desigualdade entre cidades e os habitantes que nela habitam (Scott, 2001).
"Cidades com abundantes amenidades estão aptas a crescer porque a classe criativa preferencialmente migrará para essas cidades, e sua presença será refletida em explosões de dinamismo económico local” (Scott, 2014, p. 571).
Na mesma linha de pensamento Sennett (2005) mencionada a questão do capitalismo flexível, no que toca ao desapego que os indivíduos vão vivenciar para com as cidades e seus habitantes. O capitalismo flexível tem os mesmos efeitos na cidade e no local de trabalho, isto porque, como a produção flexível produz relações mais superficiais e de curto prazo no trabalho, vai criar, por sua vez, um regime de relações superficiais nas cidades e centros urbanos (Sennet, 2005). O autor quando se refere ao capitalismo flexível frisa o facto de que com a mobilidade intercidades que existe por parte dos indivíduos, para além, do subdesenvolvimento que existirá nas cidades abandonadas como alude Scott (2014), promoverá ainda um desapego das pessoas para com a cidade que habitam. Por sua vez, existirá ainda um desapego e descoletivização entre os seus habitantes, perdendo-se, desta forma, a noção de comunidade e coletivismo, surgindo então problemas de cidadania e participação cívica.
“A dialética da flexibilidade e da indiferença aparece em três formas. O primeiro é expresso em ligação física à cidade; O segundo expressa-se na padronização do meio ambiente urbano; o terceiro em relações entre trabalho familiar e urbano. A questão do apego físico ao lugar é talvez a mais evidente dos três” (Sennett, 2005, p. 116).
O desapego existente entre os indivíduos nas cidades que habitam e a sua falta de dever cívico, pode ser equiparado com o desapego e a falta de preocupação que as empresas têm para com as cidades, segundo esta lógica capitalista vigente nos dias que correm, as empresas cada vez menos se preocupam com a cidade e os seus habitantes e quais as consequências das duas ações. A economia global não está enraizada na cidade, no sentido de depender do controle da cidade como um todo, ou seja, as empresas ameaçando sair, poderão ir para qualquer lugar do mundo, tendo de ser seduzidas pelas instituições locais para tornar possível a sua permanência, aparecendo desta forma indiferentes aos locais onde se encontram (Sennett, 2005).
Ainda no que toca à influência do capitalismo nos indivíduos dentro das cidades, nas cidades onde existem grandes aglomerados industriais, também existe uma grande clivagem entre os habitantes, nomeadamente no que toca aqueles que têm empregos mais qualificados e os que têm empregos menos qualificados. Nas cidades pós-fordistas, numa lógica muito próxima do capitalismo cognitivo-cultural, há uma clivagem aparentemente endémica e aprofundada entre os gestores, profissionais e técnicos bem remunerados e os indivíduos com empregos de baixa qualidade onde o trabalho de produção é realmente baseado (Scott, 2001). Dito isto, é observável que a lógica da desigualdade capitalista é mais uma vez visível mesmo em cidades desenvolvidas economicamente e socialmente. Existe uma diferenciação de classes segundo as suas qualificações e consequente rendimento, existindo, desta forma, riscos de pobreza, exclusão social e acesso diferenciado a bens e serviços, mesmo em cidades e centros urbanos que supostamente foram construídos a partir do surgimento de aglomerados industriais e que têm um acesso mais facilitado a todo o tipo de bens e serviços devido ao seu “ambiente construído” (Harvey, 1978).
Dentro desta perspetiva do capitalismo cognitivo-cultural de Scott que foi também relacionado com o capitalismo flexível de Sennett, tornou-se possível observar que o capitalismo cria desigualdades entre os indivíduos dentro das cidades, cria falta de pertença, falta de envolvimento cívico, desapego pela cidade, assim como, é um fator de constante desigualdade entre cidades e regiões. Outro aspeto que deverá ser frisado relativamente à desigualdade entre cidades no presente artigo, será o facto do desenvolvimento socioeconómico das cidades não estar só adjacente aos talentos – “classe criativa” que estas conseguem atrair e que nela habitam devido a serem mais ou menos apelativas (Florida, 2004). Existe, por outro lado, o nível de atração que as cidades têm para o investimento. É constatável que estas duas lógicas são intrínsecas, mas é preciso comprovar que com o capitalismo uma cidade que é apelativa para o investimento terá a tendência de continuar apelativa e por outro lado as cidades menos apelativas continuarão a ser pouco apelativas para investimentos futuros.
“Os efeitos de intensificação das atividades económicas decorrentes da concentração geográfica das firmas podem levar ao desequilíbrio económico regional. Isso ocorre porque as áreas que não se encontram no entorno dos centros de crescimento tornam-se deprimidas, devido à falta de estímulos à produção” (Simões & Rodrigues, 2004, p. 206).
Se se considerar num sentido mais lato a desigualdades como uma condição intrínseca do capitalismo, essa condição é bastante observável e constatável nas “relações” entre cidades. No entender de Hirschman (1977), as desigualdades regionais são uma condição intrínseca ao próprio processo de crescimento, pois, esse crescimento implica divergências de rendimentos e de produção, cujo resultado irá ser a divisão de um continente, país ou região em áreas dinâmicas por um lado, estagnadas e retraídas por outro. Traduzindo as palavras do autor, esta retração e estagnação por parte de umas cidades e desenvolvimento por parte de outras, ocorre porque os investimentos que posteriormente surtirão em inovações, incrementos culturais, educação, saúde, escolaridade, aumento do nível e qualidade de vida, ao estarem concentrados numa só localidade, não irão necessariamente expandir os seus benefícios para outras regiões, pelo contrário, poderão contribuir para a sua retração económica e para o aumento da pobreza e exclusão social das regiões menos desenvolvidas.
Esta tendência pode ser considerada como uma “bola de neve capitalista”, isto porque, se uma cidade é mais atrativa, irá chamar mais indivíduos e talentos, por sua vez, terá mais tecido empresarial e uma maior rede de stakeholders, que, por conseguinte, conseguirá trazer para si mais investimento e tenderá a formar aglomerados industriais e cidades mais desenvolvidas. Acontecendo isto, o ambiente construído de que fala Harvey (1978), também tenderá a aumentar, criando cada vez mais e melhores condições de vida aos indivíduos e as empresas, atraindo ainda mais investimento e pessoas para a cidade em detrimento de outras cidades e/ou regiões que tenderão a ser desertificadas, devido à falta de investimento que advém da sua falta de atratividade que é gradualmente intensificada devido às desigualdades que são “facultadas” direta e indiretamente pelo capitalismo. Esta tendência para as desigualdades entre cidades, regiões e países, pode ser explicada segundo a “o principio da causação circular cumulativa” – este principio estabelece que as áreas mais prosperas tendem a receber mais investimentos, desenvolvendo-se ainda mais, em detrimento das áreas mais pobres, que tendem a tornar-se cada vez menos desenvolvidas devido a sua crescente falta de atratividade (Myrdal, 1960).
As grandes cidades onde estão localizados os aglomerados industriais que, por sua vez, são mais desenvolvidas por todos os fatores já enumerados, favorecem ainda um fluxo contínuo de novos métodos, produtos, estilos e cultura. Na existência e aparecimento de um centro dominante é então previsível que os custos de fornecimento e distribuição sejam baixos, ou seja, as reduções nos custos de distribuição irão aumentar o retorno económico, aumentando assim, o desenvolvimento socioeconómico da cidade. Devido a esses custos mais baixos de produção e distribuição vão reduzir o limiar de entrada para os centros menores, causando assim uma maior desigualdade, pondo em causa a sua sobrevivência, podendo sujeitar a sua população ao desemprego, pobreza e exclusão social (Scott, 2001). Pode ser dado um exemplo bem conhecido dos países asiáticos, segundo Scott (2001) com a concorrência de produtores asiáticos mais baratos alguns distritos franceses entraram em colapso, aumentando o número de falências, diminuindo assim a atratividade dos distritos para o investimento, para migração de mão de obra qualificada, culminando na desterritorialização, desemprego e exclusão social.
“Nos Círculos asiáticos é notavelmente forte, nomeadamente na China, onde as cidades de Pequim, Xangai, Guangzhou, Chongquin e Wuhan (para não se esquecer de Hong Kong e Macau) estão a afirmar cada vez mais suas realizações criativas e potenciais” (Scott, 2014, p. 567).
Em suma, o presente artigo considera factível afirmar e concluir que as várias formas debatidas do capitalismo, tanto o novo espírito do capitalismo, como do capitalismo flexível mencionado Sennett ou do capitalismo cognitivo-cultural, mencionado por Scott, têm fatores que efetivamente proporcionam o desenvolvimento socioeconómico das cidades, regiões e/ou países, aumentando o nível de vida e qualificação dos seus habitantes, proporcionando um crescimento físico, cultural e social da cidade a partir do seu ambiente construído e de mais e melhores oportunidade de emprego para os seus habitantes.
Os aglomerados industriais que estão por detrás desta lógica capitalista, trazem efetivamente benefícios as cidades e aos seus habitantes como foi deparável durante a revisão feita. De entre os benefícios constatados, podem ser sublinhados a estimulação da atividade económica dos diferentes stakeholders, aumento da oferta de empregos e qualificação da mão de obra e maior e melhor disseminação da informação e das tecnologias entre as empresas e industriais (spillovers).
Por outro lado, foi igualmente constatável, que o capitalismo nas cidades ao mesmo tempo que cria desenvolvimento, também cria desigualdades socioeconómicas, entre indivíduos dentro das cidades e entre diferentes cidades. A “bola de neve capitalista” que foi falada durante a revisão, tem na sua lógica a desigualdade, diferenciação e mutação, sendo estas características constatáveis nas cidades. Foi observável, que a lógica do mercado e do capital cunhado pelo neoliberalismo, influência algumas cidades de forma negativa, trazendo, descoletivização dos seus habitantes, falta de noção de comunidade e civismo, falta de pertença e apego, desemprego, risco de pobreza e exclusão social, desigualdades de rendimentos e de produção entre cidades, desterritorialização, centralização dos bens e serviços, assim como, uma competitividade desleal e injusta.
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[1] Tradução do termo em Português ficaria “Transbordamentos”, visto não ser muito correto, o presente artigo preferiu utilizar o estrangeirismo.