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Chão Urbano

Chão Urbano ANO XVIII – N° 2 MARÇO/ABRIL 2018

23/05/2018

Integra:

ANO XVIII – N° 2 MARÇO/ABRIL  2018

 

Editor

Mauro Kleiman

 

Publicação On-line

Bimestral

 

Comitê Editorial

Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann (Dra. em Planejamento Urbano e Regional)

Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. em Planejamento Urbano e Regional) - UFF

Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)

Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)

Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Hugo Pinto (Dr. em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

André Luiz Bezerra da Silva (Prof. do Instituto Benjamin Constant)

 

Editores Assistentes Júnior

João Gabriel Caciano e Letícia Rosa da Silva

 

IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

 

LABORATÓRIO REDES URBANAS

LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

 

Coordenador Mauro Kleiman

 

Equipe

 João Gabriel Caciano e Letícia Rosa da Silva.

 

Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares.

 

 

ÍNDICE

 

Transporte e Território: uma discussão para uma efetiva interlocução entre as políticas de transporte e de planejamento

Transport and Territory: a discussion for an effective interlocution between transport and planning policies

 

Mauro Kleiman; André Silva ......................................................................................p. 03

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Transporte e Território: uma discussão para uma efetiva interlocução entre as políticas de transporte e de planejamento  

Transport and Territory: a discussion for an effective interlocution between transport and planning policies 

 

 

KLEIMAN, MAURO¹

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

Av Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária

21941-485, Rio de Janeiro, Brasil.

Kleiman@ippur.ufrj.br

¹ Professor Titular da UFRJ

 

SILVA, ANDRɲ

Instituto Benjamin Constant

Coordenação de Geografia

Av. Pasteur, 350/368, Urca 

22290-240, Rio de Janeiro, Brasil.

andrelubs@hotmail.com

² O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-Brasil ao projeto de pesquisa de Pós Doutorado Junior nº 150864/2017-5

 

 

 

 

 

Resumo

Neste artigo buscamos repensar algumas análises sobre a forma restrita a técnica e limitada a enfoques setoriais como são pensados os transportes e suas políticas no Brasil, refletindo sobre sua separação como recurso de política urbano-metropolitana do ordenamento, desenvolvimento e uso do solo e do planejamento do território. O transporte, apresentando-se apenas como racionalidade técnica, encobre seu envolvimento por matrizes conceituais expressas em modelos de planejamento que procuramos evidenciar no de base racional-funcionalista, onde se coloca a separação entre as estruturas de transportes, tomada apenas como engenharia, apartada do ambiente construído e sua configuração territorial, esvaziadas de sua função social.

Palavras-chave: Transportes; Território; Planejamento; Políticas; Brasil.

Abstract

In this article we seek to rethink some analysis on the restricted form of the technique and limited to sectorial approaches such as transport and its policies in Brazil, reflecting on its separation as an urban-metropolitan policy resource of land use planning and development and planning of the territory. Transport, presenting only as a technical rationality, conceals its involvement by conceptual matrices expressed in planning models that we seek to show in the rational-functionalist basis, where the separation between transport structures, taken only as engineering, is separated from the built environment and its territorial configuration, deprived of its social function.

Keywords: Transports; Territory; Planning; Policies; Brazil

 

 

1. INTRODUÇÃO: O transporte pensado e tratado em separado do território

    Este artigo faz parte de um estudo exploratório, na forma de um ensaio, que busca trazer elementos contributivos a avanços na discussão de desfazer a fragmentação dos lugares por uma interlocução e integração entre políticas de transporte com o planejamento       urbano-territorial. Para tal, primeiro situa e repensa abordagens conceituais e perspectivas no contexto em processo de transição entre o modelo racional-funcionalista para o    estratégico-flexível e traços do “novo urbanismo”. Num segundo momento busca-se dialogar com alguns autores ligados à temática das Políticas de transporte e sua relação (ou não) com o planejamento urbano-territorial, repensando algumas propostas e limites dessas abordagens. Em seguida refletimos sobre ações e perspectivas no caso brasileiro nas últimas décadas do século XX e iniciais do século XXI, onde as políticas de transporte ainda não tem articulação com as do planejamento urbano-territorial. Ainda assim faz-se um esforço em apontar ações pontuais em algumas cidades, articulando transportes e investimentos imobiliários comerciais, residenciais e de serviços. Aborda-se também mudanças no âmbito jurídico-político, que tem buscado desencadear determinados avanços normativos e legislativos com a previsão de direitos mais igualitários, diretrizes para integração dos transportes com o desenvolvimento urbano e priorização ao transporte coletivo, e até mesmo uma ampliação da noção de transporte como recurso social, entendida a mobilidade enquanto condição de pertencimento ao mundo urbano-metropolitano-territorial, anotando-se, contudo os limites que podemos verificar nessa dinâmica jurídico-política. Como fecho do artigo trazemos uma discussão sobre novos caminhos e perspectivas para a problemática da relação entre transporte e planejamento urbano-territorial, como contribuição para a superação dos modelos e seus conceitos que ainda separam transporte e ordenamento do território, e sobre como no Brasil se fazem leis mas não se têm claro quais seriam os conceitos que lhe dão base, e os métodos deles consequentes, que transpassem a ótica da técnica.

   Estamos em face da intensificação, superposições e interações cada vez mais acentuadas dos movimentos inerentes a circulação do Capital na sua fase atual do processo de transformações produtivo-econômicas, com rebatimentos na sociedade. Assim sendo, o papel dos meios de transportes são fundamentais como elo funcional entre os múltiplos pontos e atividades do território. Munford (1998) já apontava em sua análise sobre as metrópoles, que a cada momento do processo produtivo se tem mais deslocamentos necessários e obrigatórios, e uma economia em expansão e transformação tem conduzido a territórios com mais população e maior extensão, exigindo a contínua construção de novas linhas e fluxos de transportes e a aceleração de suas velocidades. Harvey (2004), por seu turno, anota no seu estudo sobre os processos de transformação da economia capitalista como esta teve que se dedicar a construir um território próprio com fluxos dados por transportes e comunicações, infra-estruturas para dar base a cada fase de sua trajetória de ciclos de acumulação, desconstruindo-o e o recompondo a cada momento para fazer um crescente de acumulação em momentos seguintes.

    Nas grandes cidades e metrópoles do mundo ocidental se buscou relacionar o ordenamento do território e sua expansão integrando o planejamento dos transportes com o planejamento do território e o uso do solo urbano.

      Na muito forte e acelerada urbanização brasileira, a partir do final da década de 1930, as cidades e metrópoles se expandiram, a separação entre moradia e trabalho se consolidou e os movimentos de deslocamentos se ampliaram substancialmente. Apesar de inúmeros planos pra sua ordenação e crescimento, estes se restringiram a ideia de "plano-discurso" (VILLAÇA, 1998), ficando na retórica de suas várias ideologias. Não se desenvolveu de fato uma política de ações visando a configurar o território a avanços na acumulação do Capital, e muito menos, ou nada se teve, que se pudesse denominar de um pensamento ou política de transportes articulada ao planejamento do território.

    A maneira de atuar do Estado brasileiro em todos os níveis de governo e questões configurou-se sempre através de ações setoriais, estanques uma das outras, não fugindo à esta regra no tocante a infra-estruturas incluso quanto aos transportes. Estes foram tratados setorialmente até no seu interior, com pensamentos, projetos e ações tratando cada modal em separado, e privilegiando-se, a partir, principalmente, de meados da segunda década do século XX, o modal automotivo, e neste o automóvel particular-individual, em detrimento dos modais metro-ferroviários de alta capacidade.

     O tratamento setorial-estanque de todas as ações de Estado e aquelas referentes aos transportes, com tratamento em separado no interior de sua problemática, e em separado do planejamento do território, tem sua origem na base conceitual do modelo racional-funcionalista. Tal modelo separa as diferentes funções e atividades urbanas em áreas de especificidades, com perímetros rígidos pré-determinados, resolvidos por técnicos sem consulta à população: lugares para habitação; lugares para o trabalho; lugares para centros cívicos; lugares para o lazer; que serão denominados de setor, cada qual por sua vez divididos em subcategorias (setor bancário, setor de hotéis, setor de prédios administrativos, setor de diversão; setor de habitação unifamiliar ou multifamiliar, setor universitário entre outros, como bem pode se notar no caso de Brasília, cujo Plano Piloto leva ao auge a aplicação desse modelo).

      Ao separar de forma estanque atividades e funções cotidianas na vida e na cidade, o modelo colocou o problema de como articular partes agora fragmentadas. Isto foi resolvido pela utilização dos veículos rodoviários (automóveis particulares e ônibus) dado sua flexibilidade face a rotas, pontos de paradas e horários, ao contrário dos trens, metrôs e os bondes, que têm rede fixa, paradas fixas e grade horária. Autonomia e velocidade  tornaram-se o elo funcional entre os setores de especificidades, como lugares estanques uns dos outros.

      A circulação, embora inclusa no modelo como uma das funções básicas dos homens,  será, contudo, concebida como função separada das demais, não levando em conta toda edificação e contexto onde se insere, literalmente “atravessando a cidade”, substituindo-se as ruas por vias expressas (“nenhuma destas vias teria calçadas ou portas de casas ou edifícios abrindo-se a elas”- Le CORBUSIER, 1946). Choay (1979) chega a afirmar que "a consequência maior é a abolição da rua, estigmatizada como vestígio de barbárie, um anacronismo revoltante". O fluxo de veículos automotivos será assim “canalizado” para vias principais ou eixos que se cruzam em determinados pontos centrais em níveis diferenciados por viadutos ou passagens subterrâneas, no máximo possível em linhas retas para possibilitar maiores velocidades. Para articular essas vias-eixos principais com o interior dos setores especializados concebeu-se uma hierarquia de tipos de vias: rua comercial do setor; rua para conduzir veículos e pedestres à proximidade das edificações; via para áreas de lazer, esporte e educação; vias para bicicletas; e assim por diante, distribuindo a circulação de veículos para cada setor pré-estabelecido, todas partindo das vias expressas canalizadoras dos fluxos automotivos.

      O modelo foi adotado no mundo inteiro, independentemente de diferenças               sócio-culturais-econômicas, e mesmo que tenham sido poucos os planos efetivados que aplicassem todos seus cânones, no que tange a questão da circulação a ideia de “canalizar” os veículos para vias-eixos expressos encontra-se presente em todas as cidades e metrópoles, separando-se os transportes do seu contexto territorial. Desde então as dificuldades de pensamento, projetos e ações trabalham transportes de forma isolada, tanto entre seus modais, interessando-se primordialmente pelo que é seu elo funcional - o modal automotivo. Como a circulação é pensada em separado das demais funções urbano-metropolitanas, se tem um “silêncio” ou “negligência” quanto à sua relação com o território. No máximo, se tende a resolver esta relação por medidas técnicas-aritméticas ou geométricas sem atentar para sua dimensão social.

     A passagem do modelo racional-funcionalista para novos modelos de ordenamento do território, que acompanham a introdução do método flexível de produção no lugar do Fordismo (como o modelo do planejamento estratégico ou o “novo urbanismo”) tem trazido ao debate a superação do tratamento fragmentado do território urbano-metropolitano, incluindo os transportes no interior da problemática territorial. Mas não se observa ainda a plena substituição do modelo racional-funcionalista por outro, e nem que isso esteja ocorrendo de forma semelhante entre as cidades e metrópoles no mundo. No caso brasileiro, o esgotamento do modelo racional-funcionalista, consolidado incluso juridicamente e ainda muito presente na forma de operação do Estado, não permitiu ainda uma concretização plena de novos modelos de planejamento do território, e menos ainda da sua relação integrada com os transportes.  

 

2. Políticas de transporte na relação com o planejamento      urbano-territorial: repensando algumas abordagens e perspectivas

     Como sinalizamos na seção anterior, as três últimas décadas do século XX foram marcadas no campo do planejamento urbano-territorial por um momento de transição, que em alguns casos se estende até os dias atuais. De um pensamento racional-funcionalista, próprio do período econômico chamado fordista, que entendia a cidade de uma forma parcelar e setorizada, passou-se, ou ainda passa-se, para um pensamento que vê a cidade a partir de um viés de incertezas, multiplicidades de atores, desejos, formas e possibilidades de relações diversas, que ficou conhecido como planejamento flexível. Esta última forma de tratar a cidade resultou de mudanças econômicas, culturais e tecnológicas, onde paulatinamente a lógica industrial fordista foi perdendo preponderância para uma lógica financeira, ensejando novos pensamentos, estratégias, ações, olhares e consumos no/do território. Áreas do planejamento que antes eram tratadas de forma muita setorizada, desconectas do contexto territorial ao qual pertenciam, foram e ainda são revisitadas, gerando inúmeros debates epistemológicos e conceituais, que terminam por reorientar paradigmas, metodologias e objetivos. Os transportes públicos não ficaram imunes à esses debates, notadamente no que tange à recente discussão acerca do seu papel como um recurso social, obscurecido durante muito tempo por uma abordagem que o tratava de forma unicamente técnica e parcelar, quase sem nenhuma conexão com outros campos do planejamento, limitando suas possibilidades de atuação na dinâmica urbana-territorial.

       Owen (1975, apud GALINDO, 2009) já alertava para a forma limitada como era tratada a questão dos transportes. Segundo ele, o transporte “ é uma necessária, porém, não suficiente, condição para o desenvolvimento”. Assevera que o desenvolvimento dos outros setores é parcialmente dependente da mobilidade e acessibilidade que o setor de transporte disponibiliza, pelo que critica a falta de análise desse papel preponderante do setor na literatura de então. O que é marcante na abordagem de Owen é que ele busca nos passar a ideia segundo a qual o que importa não é saber a importância do setor frente a outros setores, mas saber em que situações sua existência e estruturação pode ser crucial para o desenvolvimento econômico e social.

     Santos (1977), em sua análise sobre a temática dos transportes, apresenta duas vertentes normalmente trabalhadas sobre o assunto. Uma delas é a que considera o transporte como um grande indutor de desenvolvimento urbano e a outra que enxerga os sistemas de transporte como uma maneira de assegurar a reprodução da força de trabalho. Tais visões não são excludentes, na medida em que muitos consideram como desenvolvimento urbano a adequada implantação de uma estrutura que viabilize a reprodução do modo de produção capitalista, incluindo-se aí a reprodução das relações sociais de produção, inclusive a força de trabalho. Entende-se que compreender os transportes como indutores do desenvolvimento é uma tarefa válida, porém não deve ser vista como absoluta, principalmente quando não se tem uma definição clara do termo desenvolvimento, e também quem se beneficia dele.

     Os estudos de Barat (1978) apontam o sistema de  transporte como um dos  elementos que estruturam uma ordem Geoeconômica-Social, influenciando no desenvolvimento urbano e na reestruturação do espaço através dos agentes. Primeiramente porque, segundo ele, a disponibilidade de serviços de transportes pode favorecer o processo e os padrões de expansão das áreas urbanas e metropolitanas, reorientando, em alguns casos,os padrões de uso do solo. Em seguida porque, além de se constituir em condicionante de opções locacionais, um sistema de transporte racionalmente concebido constitui também um importante instrumento de redistribuição de renda. Ainda que percebendo uma ligeira aproximação dos sistemas de transporte com o planejamento territorial mais amplo, os trabalhos de Barat abordam o termo desenvolvimento urbano como uma mera expansão da área urbanizada, acompanhado por uma certa modernização de suas formas e objetos, atendendo aos paradigmas do modo de produção. Pensa-se, contudo, que no planejamento territorial o  desenvolvimento urbano deva ser algo mais abrangente, para além da ideia de quantidade de formas e objetos, incluindo também a ideia de como essas formas e objetos estão presentes nos diversos contextos territoriais, assim como o usufruto mais equânime dos equipamentos, serviços e atividades produzidos socialmente.

     É neste sentido que Manheim (1979, apud GALINDO, op cit.), mesmo sem fazer uma alusão direta ao planejamento territorial, considera que o desafio da análise dos sistemas de transporte é intervir sutilmente e deliberadamente na sociedade para usar o transporte efetivamente em coordenação com outras ações públicas e privadas, buscando  alcançar objetivos e metas que favoreçam a constituição de uma sociedade mais justa. Coloca-se assim um importante desafio metodológico para a realização de uma análise sistemática em uma situação particular que seja válida, prática e relevante e que esclareça os assuntos a serem debatidos.

     Castells (1983) chama atenção para esse aspecto ao dizer que o estudo do sistema de circulação e transporte só pode ser compreendido como uma especificação de uma teoria mais geral da troca entre os componentes do sistema urbano. Por isto, Corrêa (1997) entende que o sistema de circulação e transportes urbanos ao influenciar ou ser influenciado por essa teoria mais geral, participa efetivamente de sua viabilização, podendo vir assumir assim, o que se pode chamar de um papel definido no interior de um planejamento territorial. Depreende-se que as colocações de ambos autores colocam em relevo o fato de que o sistema de transporte e circulação (com todos seus equipamentos e sub-sistemas) precisa ser compreendido e pensado como um sistema que só existe em relação com o ambiente urbano (conjunto de fatores exteriores ao sistema que tanto o influencia quanto é por ele influenciado) e não simplesmente dentro dele, donde a definição dessa interface sistema de transporte - ambiente urbano torna-se o ponto desafiador, e que pode fazer toda diferença e ser decisivo numa política de planejamento do território. 

          Nesta perspectiva de análise, Banister e Berechman (2000) defendem que os principais objetivos dos investimentos em transportes devem ser identificar situações em que os fatores econômicos, sociais, ambientais e eqüitativos apontem para a mesma direção. Banister e Berechman acreditam ser este um desafio político, relacionado a investimentos em oportunidades que conduzam ao desenvolvimento econômico com distribuição mais eqüitativa de atividades, serviços e benefícios ambientais. O que os autores  apresentam na verdade é uma visão modificada da estrutura tradicional dos efeitos dos investimentos em infra-estrutura de transporte, por entenderem a necessidade de corrigir alguns entendimentos. Nessa estrutura proposta por eles relaciona-se o crescimento econômico gerado por investimentos em transporte com a presença de externalidades alocativas. Para os autores a redistribuição espacial de atividades e serviços também pode levar ao crescimento econômico e social, sendo prioridade para os projetos. Eles afirmam que o ponto chave é o entendimento de que os benefícios de um projeto de investimentos sem a presença de externalidades alocativas na economia local, ficam restringidos aos benefícios relacionados ao transporte propriamente dito ou acessibilidade. Apesar de Banister e Berechman (op cit.) considerarem que as decisões de investimentos em infra-estrutura de transporte não são isoladas e que, portanto, a sua natureza, incluindo seu lugar na rede, é uma das condições necessárias a ser considerada, revelando assim seu caráter primordial no planejamento territorial, tal perspectiva não é trabalhada por eles. Os autores reafirmam que investimentos de capital em transportes, não necessariamente geram benefícios de crescimento econômico e social, ou seja, o benefício primordial desse tipo de investimento é a melhoria na acessibilidade, e os outros benefícios deverão emanar desse principal.

       Esse é um tipo de abordagem sobre as políticas de transporte para a qual, segundo Gottdiener e Feagin (1989), ainda não surgiu um paradigma unificado que una todas as questões envolvidas nessa temática. A construção desse conhecimento ainda estaria sendo feita. Uma das linhas de pensamento que vendo seguida é aquela que centra suas análises em questões como processos de produção e reprodução, circulação do capital, as formas de uso do solo, a ação do Estado e os agentes participantes nas decisões das políticas públicas, tratados esses aspectos muitas vezes de forma isolada. Dear e Scott (1981) já debatiam que na cidade se materializa um sistema espacial complexo, compreendendo um misto interdependente de áreas funcionais (privadas e públicas). Estas, para os autores,  podem ser denominadas tanto como espaço de produção (no qual processo de acumulação ocorre) ou de reprodução (no qual a recuperação da força de trabalho ocorre), embora algumas vezes possam estar tais funções reunidas num mesmo lugar. Ambos os espaços seriam mediados, para Dear e Scott (op. cit.), por um terceiro espaço, dedicado às necessidades da circulação. O ambiente construído englobaria assim as estruturas de produção, reprodução e circulação, o que, embora possa revelar um certa natureza relacional e complexa no tratamento das questões de transportes, sempre tendeu durante a análise à uma separação funcional dessas estruturas.

     Essa tendência foi relativizada um pouco nas abordagens de Vasconcellos (1999, 2001), que nos chamou atenção para o fato de que a combinação entre um sistema de circulação e o ambiente construído pode resultar no que ele chama de um "ambiente de circulação". Na prática, segundo Vasconcellos, desenvolve-se nesse ambiente de circulação um conjunto de ações, realizadas direta e indiretamente por meio de três técnicas específicas de intervenção espacial: Planejamento Urbano, Planejamento de Transportes e Planejamento da Circulação, os quais podem ser identificados com três objetos de intervenção: o solo, a estrutura e os meios de circulação e os padrões de circulação. Apesar de mais arejada, essa perspectiva apontada por Vasconcellos tem sido por vezes mal interpretada. O planejamento dos transportes é abordado quase sempre como sendo “um processo através do qual será concebido e desenvolvido um sistema com a finalidade de deslocar pessoas e produtos de maneira eficaz, dentro de um sistema produtivo e reprodutivo estabelecido, apartado do território e sem considerar este enquanto um recurso,  capaz de ajudar a superar necessidades, desigualdades e limites, aproveitando possibilidades que porventura existam.

         A contribuição de Milton Santos (1996) também nos é muito cara quando tratamos sobre transporte urbano. Para o autor, os sistemas de objetos e os sistemas de ações não se separam. A interligação entre ação e objeto torna-se tão consolidada que é impossível desconectar um conceito do outro dentro de uma análise territorial. O território é produto dessa combinação entre objetos e ações, ambos agindo sistemática e não aleatoriamente, nunca independente, formando um mosaico onde o fato social se faz. Não só os objetos dispostos na organização territorial, como também as ações que se estabelecem sobre eles, são elementos essenciais de apreensão quando se trata de realizar uma análise territorial. No nosso entendimento, os transportes não fogem a esta regra. Não podemos tratar de uma política de transporte, esta entendida como um sistema de objetos, sem compreender o sistema de ações que a engendra.

       À abordagem feita por Villaça (2001), para quem os transportes públicos são os maiores determinantes das transformações dos pontos, com as vias de transportes influenciando não só no arranjo interno da cidade, mas também sobre os diferenciais de expansão urbana, acrescenta-se, no nosso entendimento, a discussão segundo a qual políticas de transporte público significam não apenas otimizações técnicas de circulação e renovação de áreas, mas também as transformações sócioterritoriais que essa circulação e renovação podem produzir.  Para além da proposta trazida por Villaça (op.cit.), onde as políticas de transportes funcionariam para atender à vontade de uma sociedade urbana que transforma seletivamente os lugares, afeiçoando-os às suas exigências funcionais, tornando certos pontos mais acessíveis, certas artérias mais atrativas e também uns e outros mais valorizados, entende-se também, ao nosso ver, que transporte deve estar sempre atrelado à uma ideia de desenvolvimento que, em termos mais simples, seria um processo de mudança para melhor, um processo incessante de busca de mais justiça social e melhor qualidade de vida para o maior número possível de pessoas, sobretudo as mais desfavorecidas. Isso exige, tanto em matéria de análise de problemas quanto de formulação de estratégias para a superação desses problemas, não somente a consideração das várias dimensões que compõem as relações sociais, mas também uma visão de como essas relações podem se concretizarem no espaço a partir do planejamento territorial.

       Essa abordagem do transporte público como elemento integrante de um processo territorial mais amplo também foi discutida por Grotta (2005). Para esse autor, a singularidade que caracteriza o setor de transporte não o capacita a ser pensado e separado do todo, pois é somente com o todo que ele se identifica e consegue prestar o serviço, contribuindo assim para novas totalidades. Reconhece-se aqui que esta integração é o que de fato envolve e justifica a atuação de todos os demais tipos de integração, afirmando a importância do transporte no bojo do planejamento do território.

       A política de transporte guarda assim, pela análise dos autores relacionados, uma lacuna ainda pouco explorada, qual seja a que a reconhece como uma questão não apenas técnica, mas social e principalmente territorial. À medida que essa percepção sócioterritorial do papel do sistema de transporte aumenta, as possibilidades no processo de planejamento territorial se diversificam e se tornam mais claras e amplas.

       Reconhecendo a importância sócioterritorial do transporte, acredita-se que a função deste, enquanto um recurso social, muda e também eleva-se, onde seu planejamento passa a ocupar um lugar certo e diferenciado dentro de contextos diversos do território, o que justifica e torna válida uma análise voltada para essa questão dos transportes no planejamento territorial contemporâneo.

 

 

3. Planejamento urbano-territorial e políticas de transporte no Brasil: limites, ações e perspectivas

       No Brasil são grandes as dificuldades envolvendo políticas de transporte e planejamento urbano-territorial, com diversas questões que ainda não são tratadas de forma integrada, em virtude principalmente da ausência por décadas de políticas urbanas dessa natureza. Isso contudo não impede que se reconheçam algumas perspectivas e possibilidades que vêm se abrindo nos últimos anos, fomentando a realização de projetos e o desenvolvimento de leis e políticas que integrem o planejamento do território ao preceitos do desenvolvimento orientado pelo transporte, caminhando assim, espera-se, para se pensar na possibilidade de contextos urbanos mais coesos e menos desiguais.

      Mesmo sabendo que não são especificamente os meios de transporte em si que produzem transformações no espaço urbano-territorial, o efeito espaço-temporal que resulta da sua implantação, criando acessibilidade a partir de seus equipamentos e relativizando o binômio distância-tempo, vem tornando-se algo bastante desejado e valorizado na cidade e nas relações sociais contemporâneas, aproveitado pelo mercado, pelo poder público e pela sociedade nas ações de (re)localização de atividades e funções urbanas, num período de tempo que pode permitir o reconhecimento de transformações urbanas.

        Exemplos exitosos podem ser encontrados em cidades como Porto, Madrid, Lisboa, Toronto, Cleveland, Bogotá, dentre outras. Nesses locais a utilização sistemática do espaço envolvente dos equipamentos de interface dos sistema de transporte público tem sido uma das bases dos processos de renovação urbana, buscando-se viabilizar estratégias e projetos de reordenamento do espaço urbano-territorial. A distribuição espacial das atividades e funções urbanas, tanto pré-existentes como recém planejadas, e sua articulação/integração através dos espaços canais (espaços de ligação), tem sido essencial nas tomadas de decisões quanto à localização de atividades e investimentos associados, criando possibilidades para uma distribuição mais democrática de atividades e serviços pela cidade.

     Ao contrário do que vem se desenvolvendo em outros países, as políticas de transporte público no Brasil ainda são tratadas como algo apartado do planejamento de escala mais ampla, concentradas majoritariamente nos deslocamentos com origem e destino pré-definidos e nas ações oportunistas de pequenos nichos comerciais. Apesar dessa característica geral e ainda presente, algumas ações isoladas vêm sendo realizadas principalmente partir da segunda metade da década de 1990. Alguns projetos envolvendo investimentos imobiliários, comerciais, culturais e residenciais perto ou junto aos nós e equipamentos de transporte público coletivo, vêm revelando, além de algumas vantagens e possibilidades de ações em áreas consideradas mais periféricas e com proximidade aos equipamentos de circulação e transporte público, um outro e mais amplo e relevante papel dos transportes, até então ausente nas políticas urbanas brasileiras.

       Curitiba, capital do Estado do Paraná, vem desenvolvendo nas duas últimas décadas  diversas unidades de serviços chamadas "Ruas da Cidadania", sedes das Administrações Regionais que coordenam a atuação de secretarias e outros órgãos municipais nos bairros, incentivando o desenvolvimento de parcerias entre a comunidade e o poder público e privado, oferecendo à população dos bairros serviços dos mais diversificados, além de serviços das esferas municipal, estadual e federal. A primeira Rua da Cidadania, com uma área de 20 mil m², foi inaugurada em 29 de março de 1995, contando a cidade atualmente com nove unidades idênticas. Localizadas no espaço envolvente dos equipamentos de interface e nós do sistema de transporte urbano, oferecem diversos serviços nas áreas de saúde, justiça, policiamento, educação, cultura, esporte, habitação, meio ambiente, urbanismo, serviço social e abastecimento, entre outros. Existem também espaços destinados a pequenos estabelecimentos comerciais e cafés. Nos últimos anos têm sido consideradas como um importante símbolo de descentralização administrativa e ponto de referência e encontro para os usuários dos serviços de transportes públicos, atendendo às necessidades e aos direitos do cidadão em vários setores.

       Em Brasília, capital do país, decorre desde o início deste século um leque de oportunidades para o desenvolvimento de atividades e serviços decorrentes da expansão da linha verde do Metrô do Distrito Federal. O Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal, propôs em 2007 a estratégia de dinamização de áreas urbanas atendidas pelo transporte metroviário, buscando distribuir e incentivar a instalação de equipamentos e serviços variados (lazer, cultura, educação, saúde, habitação, segurança, tecnologia etc), de maneira mais equânime pelo território do Distrito Federal, reforçando a oferta de emprego fora da área do Plano Piloto.  Dentre os objetivos da intervenção elencados no plano encontra-se a requalificação de alguns espaços urbanos, a diversificação das atividades e a renovação de áreas obsoletas e degradadas, a partir de um programa que coloca a sua ênfase na habitação e na promoção da multifuncionalidade (SEDUMA, Documento Técnico do Plano Diretor de Ordenamento Territorial, 2007).

       São Paulo é outra cidade brasileira que vem desde o fim da década de 1990, através de concessões à iniciativa privada, estabelecendo algumas ações e projetos visando a implantação de empreendimentos comerciais e de serviços no entorno dos equipamentos de interface do seu sistema metroferroviário. São os chamados "Shoppings Metrô", que buscam uma forma de assegurar uma rentabilidade que não esteja atrelada diretamente à tarifa, com participação nos lucros de alguns dos empreendimentos. Nos últimos vinte anos seis shoppings se instalaram na área envolvente dos equipamentos de interface do metrô. Esses empreendimentos atraem pelo menos trezentas mil pessoas todos os dias, segundo dados do Jornal Folha de São Paulo. Articulados com a rede metro-ferroviária e rodoviária, interligam várias áreas urbanas e diversos pontos da cidade. Atualmente estão em avaliação outros sete empreendimentos para a cidade. Vários debates têm levantado críticas e sugestões para a presença de atividades mais diversificadas nos novos empreendimentos, incluindo unidades de saúde e assistência médica, centros de ensino e formação profissional, balcões de emprego e equipamentos do Estado de atendimento à população. Outro ponto que vem sendo discutido é que os novos projetos sejam acompanhados de um estudo que identifique as carências e principais necessidades da população de áreas adjacentes, rompendo com a ideia de um empreendimento fechado que segrega a cidade. Em 2016 a Companhia do Metropolitano Paulista declarou que doravante os projetos incluiriam não apenas a construção de shoppings centers, mas também espaços públicos abertos de lazer, hospitais e equipamentos de educação e formação profissional, dos setores público e privado.

       Essas experiências apresentadas, além de muito pontuais, não devem ser compreendidas como um receituário ou modelo pronto para ser empregado indiscriminadamente nos mais diversos contextos urbanos brasileiros, nem tampouco como uma prática comum no país como um todo. Reconhece-se, contudo, que, mesmo que não sejam unanimamente entendidas como algo favorável e proveitoso à população em geral, tais experiências podem ensejar outros olhares que permitam repensar alguns aspectos da relação entre transporte e planejamento urbano-territorial no Brasil, contribuindo para uma melhor compreensão de cada situação e para a adoção de soluções mais adequadas e justas.

       O que se pensa e acredita é que tais práticas podem ajudar na ponderação sobre políticas que conjuguem transporte público e planejamento urbano-territorial, com leis e regulamentações específicas, permitindo que a médio e longo prazo o transporte público seja pensado mais como um recurso social e menos como um objeto técnico de deslocamento”, ajudando a amenizar desigualdades de acessibilidade e mobilidade urbanas e proporcionando uma distribuição mais equânime de atividades e serviços na cidade, garantindo que a população de menor renda permaneça e usufrua desses serviços e atividades. Nesse sentido, acredita-se que a generalidade das experiências mais recentes recomendam que o planejamento urbano-territorial tenham na base da sua concepção inicial o aperfeiçoamento e aproveitamento da infra-estrutura de circulação e transporte, tendo em vista garantir que esses projetos sejam realmente sinônimo de melhoria para o conjunto da cidade na sua totalidade.

       Tal perspectiva encontra amparo já no Estatuto da Cidade, cujas diretrizes exigem a melhoria da acessibilidade à equipamentos e serviços urbanos. A criação do Ministério das Cidades, em janeiro de 2003, veio com o objetivo de colocar em práticas as diretrizes do referido estatuto, com a elaboração de políticas públicas de desenvolvimento urbano, de habitação e de transporte urbano, visando combater as desigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais humanizados, ampliando o acesso da população aos serviços e equipamentos urbanos.

        Mais recentemente, em 2012, foi criada a Política Nacional de Mobilidade Urbana, a fim contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana. Como um de seus princípios, tem-se o desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais. Dentre seus objetivos busca-se: I - reduzir as desigualdades e promover a inclusão social; e II - promover o acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais. Dentre as principais diretrizes estabelecidas pela Lei da Mobilidade Urbana, destacam-se: 1) integração com a política de desenvolvimento urbano e respectivas políticas setoriais; 2) priorização de projetos de transporte público coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado.

         Tem-se assim, talvez, a primeira oportunidade no Brasil de um tratamento mais efetivo das interfaces e das complementaridades entre os projetos de transporte público e o planejamento urbano-territorial mais amplo, onde as relações entre estes são tão importantes quanto as interações entre os modos de transporte. Sobre isto o próprio Ministério das Cidades diz:

(...) este conceito tem como ponto de partida a percepção de que transporte não é um fim em si mesmo, mas uma forma da população acessar os destinos desejados na cidade. Desta forma, o sistema de mobilidade urbana pode ser considerado como um conjunto estruturado de modos, redes e infra-estruturas que garante o deslocamento das pessoas na cidade e que mantém fortes interações com as demais políticas urbanas. Considerando que a característica essencial de um sistema é a interação de suas partes e não as performances dos seus componentes tomadas em separado, um fator determinante na performance de todo o sistema é exatamente como as suas partes se encaixam, o que é diretamente relacionado com o nível de interação e compatibilidade entre agentes e processos intervenientes no sistema (MACÁRIO, 2003, apud Ministério das Cidades, 2005).

         Apesar dos avanços que possa representar a recente Lei da Mobilidade Urbana, uma de suas fragilidades pode ser identificada na ausência de explicitação sobre a importância de algumas partes do sistema de transporte público, como por exemplo os equipamentos de interface e pontos de nodalidades no planejamento urbano territorial. Entretanto isto não pode ser utilizado como argumento para o não tratamento dessa questão, considerando que a referida lei, além de estabelecer diretrizes, determinou, na época que foi sancionada, que todos os municípios com mais de 20 mil habitantes (cerca de 30% das cidades brasileiras), possuam um Plano de Mobilidade Urbana (PMU), sob pena de não receberem investimentos federais para o setor. Sabe-se que essa ideia de fazer com que os municípios brasileiros realizem um planejamento ordenado do setor de transporte não é nova. Em 2001, o Estatuto das Cidades instituiu a obrigatoriedade do Plano Diretor, determinando que todas as cidades com mais de 500 mil habitantes elaborassem seu Plano de Transportes.

        Além dessa diferença de denominação apontada acima (mudança no termo de transporte para mobilidade), à obrigatoriedade de elaboração do PMU soma-se a ampliação de seu universo de abrangência,  o que permite que a sociedade vislumbre outros aspectos ligados aos transportes públicos. O próprio conceito de mobilidade é ampliado, entendido agora como uma condição de participação no mundo urbano-territorial, que para efetivar-se precisa de um conjunto de fatores, um recurso social importante e integrante da sociedade, relacionado ao direito de deslocar-se entre diferentes contextos sócio-espaciais.

       Com a ampliação da noção de mobilidade, na forma dos PMU, muda-se o olhar e o tratamento voltados aos sistemas de transportes públicos, que agora mais do que deslocar pessoas entre origem e destino, passa a ter como uma de suas funções específicas promover e democratizar uma diversidade de usos e de atividades, facilitar o desenvolvimento urbano, social e econômico, compreendendo a reutilização de edificações ociosas, de áreas vazias ou abandonadas, subutilizadas ou insalubres, bem como a melhoria da infra-estrutura, dos equipamentos e dos serviços urbanos.

       Neste viés de maior abrangência, é que acreditamos residir a possibilidade de que o sistema de transporte público (equipamentos de circulação, equipamentos de interface, nodalidades, sistemas operacionais, sistemas tarifários etc) passe a ser entendido como um importante recurso social ao planejamento urbano-territorial, estreitando a relação e mesmo possibilitando a realização mais eficaz e harmônica de outras políticas, como a ambiental, cultural, habitacional, educacional, segurança, lazer, geração de empregos, renovação de áreas urbanas, podendo contribuir talvez para cidades com mais equidade e coesão urbana.

       Enquanto um recurso social voltado ao planejamento urbano-territorial, espera-se que o sistema de transporte público possa atuar no sentido de promover a dinamização de algumas áreas e tecidos mais carentes em alguns setores, mas com tendência de reunir pessoas, atividades e serviços diversos, com a vantagem de poder interligá-los a outros pontos da cidade, na forma de espaços mais abertos e acessíveis por um meio de transporte coletivo, contrário a um modelo marcado por empreendimentos isolados e pouco acessíveis por transporte coletivo. Ressalta-se que em alguns casos, para a produção de um efetiva acessibilidade, faz-se necessária uma melhoria também nos próprios meios de transportes, a fim de propiciar uma melhor situação em termos de conforto, segurança, operacionalidade e eficiência dos mesmos, condição para o sucesso dos projetos e ações, relembrando assim a importância de não negligenciar as questões técnicas, mas apenas evitar a exclusividade muitas vezes a elas devotadas.

       Pensado como um recurso social para um planejamento urbano-territorial mais equânime e coeso, pode o sistema de transporte público, como parte efetiva dos Planos de Mobilidade Urbana, cuja sistemática de avaliação, revisão e atualização periódica não pode ser superior a dez anos, passar, caso necessário, por pequenas adaptações e mudanças, de acordo com a próprio ritmo da dinâmica urbano-territorial, retroalimentando de forma permanente novos processos e ações.

 

4. CONCLUSÕES: alguns caminhos e perspectivas para superar a separação entre política de transportes e planejamento do território

        No escopo deste artigo buscamos repensar algumas análises sobre a forma restrita a técnica e limitada a enfoques setoriais como são pensados os transportes e suas políticas, refletindo sobre sua separação como recurso de política urbano-metropolitana do ordenamento, desenvolvimento e uso do solo e do planejamento do território. O transporte, apresentando-se apenas como racionalidade técnica, encobre seu envolvimento por matrizes conceituais expressas em modelos de planejamento que procuramos evidenciar no de base racional-funcionalista, onde se coloca a separação entre as estruturas de transportes, tomada apenas como engenharia, apartada do ambiente construído e sua configuração territorial. Ao se reconhecer apenas como engenharia, fica o papel social dos transportes obscurecido na dinâmica territorial, e portanto dificulta sua inserção em algum tipo de planejamento do mesmo.

        Ainda que na passagem em curso para novos modelos de planejamento, aqueles movidos pela estratégia ou canônes do "novo urbanismo", as intervenções por meio de projetos de redesenho, requalificação, refuncionalização ou criação de zonas mistas, que tem incluído modais de transporte, como os Veículos Leves sobre Trilhos (VLT) e os Sistemas de ônibus Articulados (BRT), não se tem elementos que confirmem sua introdução pensada de forma integrada a um plano ou planejamento do território enquanto pensamento de coordenação de funções intersetoriais, mas mais como equipamento de atratividade para a intervenção, ou ainda apartadas do âmbito onde se inserem (caso mais explícito das linhas de BRT no Rio de Janeiro, que foram pensadas totalmente em separado do território).

        Com respeito aos avanços normativos-jurídicos expressos tanto no Estatuto das Cidades, como na criação do Ministério das Cidades e da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) e sua Lei de Mobilidade Urbana, cabe anotar seus paradoxos com a realidade encontrada nos territórios urbano-metropolitanos brasileiros. Ainda que a superação da separação intermodalidades de transporte e sua configuração apartada do território tenham nestas leis e políticas instrumentos que representam avanços no pensamento sobre a problemática, e tragam mesmo diretrizes que implicam em direitos mais ampliados a mobilidade da população, integração intermodal de transportes e sua inclusão como elemento do planejamento integrado do território não se faz por decreto. Embora o Estatuto da Cidade aponte para “melhorias da acessibilidade à equipamentos públicos e serviços urbanos” a realidade encontrada mostra constrangimentos muito fortes pela maioria da população a acessibilidade à tais elementos, dado a consolidação da segregação sócio-espacial. Embora o Ministério das Cidades tenha sido criado para dar conta do referido estatuto com concepção de uma estrutura de integração entre políticas de desenvolvimento urbano, incluso a de transportes, na prática seguiu a forma operativa funcionalista do Estado brasileiro, sendo fatiado em secretarias separadas por temas (saneamento, habitação, acessibilidade e programas urbanos-como regularização fundiária e Planos Diretores, e transportes), com cada parte ainda subdividida em departamentos ou programas, com estrutura própria. Desta forma, acabou na verdade configurando uma consolidação da divisão da questão urbana em diferentes setores, segundo divisão de competências. Já a PNMU e a Lei de Mobilidade Urbana, que normatizam diretrizes e direitos ao acesso universal a cidade e a integração com a política de desenvolvimento urbano e priorizam projetos de transporte público como estruturadores do território e se pretende indutor de desenvolvimento urbano integrado, se veem face a realidade tanto do já mencionado constrangimento ao acesso universal a cidade pela forte e crescente segregação sócio-espacial e processos de gentrificação, assim como à permanência da maioria dos deslocamentos serem efetuados através do modal automotivo particular, ônibus, vans e motos (sendo que a maioria da população só consegue se movimentar pela cidade por meio de ônibus, vans e motos, já que automóveis particulares se destinam a camada de maior renda), de baixa capacidade e qualidade, sendo submetidas a longas e desconfortáveis viagens que tomam grande parte de seus tempo; e além destes aspectos pode-se combinar àqueles dos interesses da indústria automobilística.

       Seria preciso, assim sendo, pensar para além das normativas jurídicas, priorizando  ações e práticas, assim como os conceitos que embasem essas normas, e que possam se reproduzir ao longo do tempo, tomando em conta contextos sócio-culturais e econômicos particulares.

       Neste sentido, pensamos em alguns caminhos e ideias que talvez possam contribuir para avanços na temática, quais sejam: a) quanto ao planejamento dos transportes este deve transpassar sua concepção meramente restrita a técnica e os métodos de engenharia de tráfego daí resultantes, envolvendo sua dimensão e função sociais; b) ultrapassar a setorialização e estanqueidade como são tratados os diferentes modais de transporte, apontando para uma cooperação intersetorial e integração urbanística e tarifária, e não apenas proximidades físicas entre os modais; c) pensar o  conceito de mobilidade não como sinônimo de transporte. Mobilidade não se faz sem transporte, mas existem modalidades de transporte que constrangem ou dificultam a mobilidade. Transportes remetem à  deslocamentos no espaço físico-geográfico, enquanto mobilidade diz respeito mais a capacidade dos indivíduos, segundo sua posição social, de transitar e ultrapassar as barreiras sócio-hierárquicas dos territórios; d) ultrapassar a premissa da ideia de viagens com um só propósito em determinados horários fixos, pela manhã e tarde, dentro do pensamento pendular, centrando-se apenas no problema dos congestionamentos e na previsão do nível futuro destes, sem compreender e perceber que a dispersão das áreas de moradia da população, de empregos, de comércio e serviços, de atividades educacionais e de saúde, turísticas e as de lazer e esporte, conduzem à necessidade de uma multiplicidade de deslocamentos em diferentes horários, que se conjuga ao fenômeno da configuração das cidades e metrópoles brasileiras espraiadas-estendidas, aliada a um núcleo central histórico que permanece forte, e vários sub-centros importantes, com formas polinucleares e mais difusas; e) esta configuração territorial acentua que a natureza do transporte e mobilidade ultrapassam barreiras e limites políticos-administrativos, o que deveria conduzir a pensá-los nas suas variadas interescalaridades. Isto suporia cooperações e ações supra-municipais, supondo a capacidade dos atores políticos locais em ultrapassarem clivagens         ideológico-partidárias e instituírem novas formas cooperativas; e f) pensar na passagem completa do planejamento do território do modelo racional-funcionalista, composto do zoneamento de áreas de especificidades com perímetros rígidos e segmentados por funções e atividades especializadas, para uma ideia através da concepção de cooperação entre os diferentes níveis e entes de governo e lógica intersetorial, com o transporte pensado como integrante do território por sua função social, não mais apenas o “atravessando” a partir somente de parâmetros matemáticos e de forma apartada do contexto onde está inserido.

     Entende-se asssim que, enquanto um importante recurso ao planejamento             urbano-territorial, as políticas de transporte no Brasil, muito além do objetivo de se adaptarem ao que seriam os preceitos e normas de um tipo de planejamento considerado mais flexível e adaptado às exigências de um capitalismo financeiro, cognitivo ou              pós-moderno, precisam antes de tudo, e principalmente, tirar o melhor proveito de cada contexto, no sentido de fazerem parte de um projeto permanente que busque melhorar a vida de faixas menos privilegiadas da população, fomentando um melhor quadro de equidade e coesão urbana, de maneira mais democrática e coletiva, algo que, embora já sinalizado pela Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana, ainda é muito ausente nas ações do poder público brasileiro, haja vista as recentes políticas de transportes implementadas no Rio de Janeiro.

      Acredita-se, a partir de uma literatura recentemente produzida e sobretudo das poucas mas significativas experiências que vêm sendo desenvolvidas em algumas cidades brasileiras, européias e norte-americanas, que a construção de uma consciência social e política que entenda os transportes como um recurso social, ajude a reconhecer que suas políticas podem significar muito mais do que transformações físicas, sendo, sobretudo, um investimento na produção de melhor urbanidade, fazendo com que um grande número de pessoas possam usufruir de novas atividades, situações, serviços e lugares. Como um recurso social importante ao planejamento, pode o transporte tornar-se o grande meio dessas experiências, motivando e enriquecendo a reconstrução de ideias e sentidos e criando afetos, na construção da cidade plural, tolerante e preocupada com os mais frágeis.

       Cria-se com isso, acredita-se, novas possibilidades de relações dos transportes com a cidade, relações que não apenas de trabalho, consumo ou lucratividade, mas também de incentivar misturas, expectativas, sonhos, desejos, esperanças, diminuindo disparidades sócio-espaciais. Esta característica nunca esteve presente nas políticas de transporte no Brasil, marcadas comumente pela especulação, divisão social e captação de mão de obra, obscurecendo o papel dos transportes enquanto um recurso social capaz de ajudar na produção de espaços coesos, dotados de boa urbanidade e não tão desiguais.  Preencheria-se assim uma importante lacuna quanto ao papel das políticas de  transportes no Brasil, que inclui não apenas a otimização e eficiência dos deslocamentos num planejamento contemporâneo, mas principalmente a vinculação dessas políticas à produção de espaços capazes de possibilitarem mudanças e novos rumos à vida de muitas pessoas.

 

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