12/01/2018
ANO XVII – N° 4 JUNHO/AGOSTO 2017
Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
Bimestral
Comitê Editorial
• Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
• Márcia Oliveira Kauffmann (Dra. em Planejamento Urbano e Regional)
• Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. em Planejamento Urbano e Regional) - UFF
• Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)
• Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)
• Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)
• Hugo Pinto (Dr. em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)
• André Luiz Bezerra da Silva (Prof. do Instituto Benjamin Constant)
Editor Assistente Júnior
Letícia Rosa da Silva
IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq
LABORATÓRIO REDES URBANAS
LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS
Coordenador Mauro Kleiman
Equipe
João Gabriel Caciano e Letícia Rosa da Silva.
Pesquisadores associados
André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares.
ÍNDICE
Transformações nas Favelas do Rio de Janeiro no século XXI e a problemática do acesso a água e esgoto*
Mauro Kleiman ...........................................................................................p. 03
Transformações nas Favelas do Rio de Janeiro no século XXI e a problemática do acesso a água e esgoto*
Mauro Kleiman¹
¹Prof. Titular da UFRJ
Resumo
O artigo aborda as transformações nas favelas do Rio de Janeiro no século XXI explorando sua relação com a problemática da articulação e acesso a serviços básicos de água e esgoto, com base na fala dos moradores por meio de entrevistas e observação técnica de campo. Apesar das intervenções públicas no intuito de dotar de água e esgoto as favelas o Estado ainda não compreende a sua diversidade heterogeneidade dos lugares tanto quanto sua estrutura urbanística e tipologias habitacionais como de situações socio-econômicas e aplica uma política não generalizada preferindo apenas algumas mais partes mais visíveis das favelas criando diferenças internas entre lugares com possibilidade de atendimento deixando grande parcela na ausência e/ou precariedade de acesso a serviços básicos de água e esgoto.
Palavras-chave: Favelas, Redes de água e esgoto, Rio de Janeiro
*O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- Brasil(nº processo 302929/2013-4)
Apresentação
O artigo traz um conjunto de elementos advindos de pesquisa de campo com observação técnica da situação tipológica urbanística das favelas no século XXI e da arquitetura de arranjos internos das suas moradias, e faz uma reflexão sobre o quadro encontrado em sua relação com a questão do acesso a água e esgoto, tendo como base pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq e da UFRJ. Foram escolhidas, casos que pudessem iluminar por diversos ângulos a efetividade social da implantação de infraestrutura de redes de água e esgoto em Favelas no caso do Rio de Janeiro e seus impactos no espaço privado dos domicílios e nas rotinas dos moradores. Neste sentido, foram escolhidas o Complexo das favelas do Cantagalo-Pavão/Pavãozinho,na Zona Sul da cidade, o Complexo de Favelas de Acari, na Zona Oeste, onde analisamos a sub-área da Parmalat;o Complexo de Favelas do Alemão na zona da Leopoldina, onde nos detemos nas sub-áreas de Nova Brasília e Loteamento; o Complexo da Maré onde estudamos parte da Nova Holanda; e a Cidade de Deus, onde analisamos a sub-área Rocinha 2.A pesquisa teve por objetivo mais amplo a análise da efetividade social da implantação de infraestrutura de redes de água e esgoto em Favelas no caso do Rio de Janeiro e seus impactos nos espaços público e privado. Investigamos quais foram as alterações possíveis ocorridas através desta ação governamental, averiguando mudanças no grau de acesso a água e esgoto e sua influencia na estrutura urbanística das favelas e da arquitetura interna das casas, e para tal escolhermos tipologias habitacionais diferenciadas, para entender de forma mais aprofundada o processo de construção de cada uma delas e sua relação com água e esgoto.
Utilizamos para o estudo a metodologia de pesquisa qualitativa combinando o olhar dos moradores sobre a questão do acesso a água e esgoto, através de entrevistas, com observação técnica. A pesquisa, assim focou a relação com o lugar vivido, o microlocal, onde concretamente a existência ou não dos serviços básicos aparecem como condição que possibilita relação com o espaço citadino, visitando os lugares, travando contato com a comunidade, observando seus hábitos e resgatando sua percepção sobre as condições de habitabilidade; entrevistando como maneira essencial de conhecer e compreender as condições de habitabilidade e o impacto de obras de infraestrutura de água e esgoto na tipologia urbanística das favelas e padrão da moradia, arranjos internos, e rotinas dos habitantes.
Introdução: as transformações nas favelas no século XXI
O atual momento, já quase na final da segunda década do século XXI, mostra um novo contexto nas Favelas do Rio de Janeiro. As favelas ocuparam todo o espaço horizontal disponível em cada lugar, se tornaram mais densas; se verticalizaram; mais delas se conurbaram formando e/ou ampliando os denominados Complexos de favelas; se espalharam por novas zonas( como no caso da Zona Oeste da cidade); ganharam maior e mais diversificado comércio e serviços; se tornaram locais de forte produção imobiliária informal numa dinâmica rentista.
Estas transformações tiveram seu início ainda no final do século XX, quando nos anos 1980. Desde seu surgimento no final do século XIX e primeiras expansões por vários locais da cidade no início do século XX sua tipologia predominante, senão absoluta, era composta de conjuntos de casas construídas na base da invenção e do improviso com matérias provenientes de “desvios de uso”- tábuas de madeira, placas de madeira ou zinco, que foram sendo substituídas por casas de alvenaria, dentro da concepção da passagem de lugares informais ilegais passíveis de remoção para lugares informais aceitos como assentamentos consolidados para os pobres, a partir dos anos 1980. Esta passagem se completa incluso institucionalmente nos capítulos dos direitos humanos inscritos na Constituição brasileira de 1988, e em seguida no Estatuto das Cidades em 2001.
Então se observa, na virada do século XX para o XXI , e sobretudo neste, um adensamento das favelas, primeiro ocupando todo espaço horizontal disponível ainda no seu perímetro reconhecido, com retirada de todas as áreas de vegetação ainda existentes sendo substituídas por ampliações de casas ou novas moradias, e em segundo lugar avançando sobre áreas adjacentes no seu entorno, ampliando seus perímetros. O forte adensamento, ainda que feito com casas de alvenaria não significou melhoria plena na moradia favelada. implicou, e segue implicando em habitações uma contígua a outra, com cômodos sem ventilação pois sem janelas, com muita umidade e infiltrações, induzindo a vários tipos de problemas de saúde, e problemas decorrentes da ausência e/ou precariedade de infra estrutura, com instalações elétricas e hidráulicas alternativas e/ou clandestinas, consequência da ausência e /ou precariedade de acesso a água, coleta de esgoto, eletricidade e drenagem de águas pluviais, além de dificuldades de acessibilidade dado os deslocamentos se darem no espaço que sobra do acúmulo de casas serem por vielas muitos estreitas, becos, escadarias... Nesta trajetória de expansão horizontal muitas das favelas de tanto se expandirem acabaram encontrando a área de outras favelas dando origem ao fenômeno de conturbação que já no século XXI serão compreendidas e denominadas como Complexo de Favelas.
As favelas também se expandiram em novas direções sócio-geográficas pela cidade e sua região metropolitana, com localizações na zona oeste da cidade-Campo Grande, Santa Cruz, Realengo, Bangu;e na área de expansão de camadas médias e de alta renda na Barra, Jacarépagua, Recreio; em todos municípios da Baixada Fluminense; e Niterói-São Gonçalo.
Ocupadas todas as áreas horizontais disponíveis ou criadas por desmatamentos e expansões para os entornos, em paralelo ou não dependendo de cada favela, se observou o fenômeno da verticalização com o surgimento de casas de vários andares e de edifícios de apartamentos principalmente compostos de apartamentos de um único cômodo, denominados quitinetes, existindo também aqueles com quarto e sala, 2 quartos, etc. Embora parte das verticalizações atendam ao crescimento das famílias que com filhos, netos , bisnetos, parentes e agregados passam a ter como estratégia de vida a moradia conjunta, grande parcela da verticalização tem como vetor uma lógica rentista de criação de novos espaços na mesma casa ou em edifícios para alugar como forma de obter valor monetário acrescido, tanto para suporte da família, como lógica de acumulação advinda de dinâmica imobiliária informal, ou seja à margem de qualquer tipo de taxação ou licenciamento para edificação e comercialização de imóveis.
Anotamos também uma substituição do tipo de comércio instalado nas favelas que limitava-se a pequenos armazéns, bares/botequins, barbearias, para um comércio diversificado de lojas de diferentes produtos-móveis, roupas, utensílios domésticos, papelarias, bancos, serviços de venda e entrega em domicílio de gás em bujão, serviços de internet, tv a cabo ou satélite( notando-se que a parte de serviços pode estar no controle de agentes clandestinos). Aparecem, também, nas favelas com UPP(pelo menos até o atual colapso desta política de segurança) restaurante, pousadas, hostels ,quer atraem outras classes sociais para as favelas.
Á este quadro de transformações com forte adensamento populacional, extensões de suas áreas e verticalização não tem correspondido, ou sequer existe, uma infraestrutura básica de acesso a água e esgoto, que lhe ofereça suporte de habitabilidade com grau de padrão, ainda que mínimo, de uma via no meio urbano. Apesar de iniciativas mais sistemáticas, desde os anos 1995, por meio de vários programas públicos para dotação de água e esgoto em favelas do Rio de Janeiro, só algumas partes no interior de cada localidade teve certo grau de melhoria no padrão de infraestrutura de habitabilidade, mas mesmo neles se apresenta problemas de operação e manutenção, não permitindo plena articulação com os serviços básicos, persistindo na maior parte uma importante precariedade de articulação e mesmo ausência de acesso.
Ao mesmo tempo, nos últimos quatro anos ( 2014 a 2018) verificamos que a política de intervenção para urbanização de favelas que procurava se reatualizar através do PAC- Programa de Aceleração do Crescimento, em concomitância com a permanência de outros programas de níveis de governo estadual e municipal, combinado, em alguns casos, com uma política de segurança pública(UPP), que abriria caminhos para ações do Estado de caráter sistemático e de mais longo prazo para a implantação de infraestruturas de serviços urbanos, entram ambas em colapso, deixando um rastro de obras de infraestrutura inacabadas ou mal executadas, e uma forte insegurança de vida nestes lugares.
A partir da introdução de ações de segurança pública nas favelas do Rio de Janeiro, através das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a questão da implementação de infraestrutura de serviços básicos, nas favelas contempladas pelas intervenções de água e esgoto, parecia se ter aberto um caminho de retorno à esfera do Estado como política de mais longo prazo, complementar a de segurança no sentido inserir estes lugares na cidade formal-legal. Contudo, atualmente, esta ação política de segurança pública tem entrado em colapso, o que se combina com o contingenciamento de recursos financeiros e ações do PAC, junto à crise financeira do Estado do Rio de Janeiro e Prefeitura da cidade, que paralisa, ou deixa incompletas as obras em favelas.
Acompanhando casos onde este processo aconteceu verificamos quanto a questão da implantação de água e esgoto, que as políticas em andamento até seu recente colapso, não apresentaram um viés de generalização do atendimento das favelas-alvo, atingindo apenas partes das mesmas, e ainda assim de modo parcial e não plenamente adequado.
Discussão
Tratados de forma estanque, tanto internamente como intersetorialmente desde sua concepção como projeto até sua implantação, operação, manutenção e gestão pelos diferentes níveis de governo que são os responsáveis setorialmente por cada qual, as políticas públicas de infraestrutura de água e esgoto são conduzidas ao espaço urbano-metropolitano sem perceber/compreender as relações que estabelecem, suas interações, e seu papel na redefinição do território. Não percebem que as redes incluem em sua dinâmica interconexões no tempo e no espaço, pois supõem transições entre redes mais simples e aquelas mais complexas; entre aquelas cristalizadas(estáveis) e as necessidades e ações para sua transformação e readequação ao seu papel de atendimento de um território: quando este se transforma carrega a necessidade de mudanças nas redes já estabelecidas ou formação de novas, devendo assim ser moldáveis, móveis, maleáveis, deformáveis e adaptáveis a diferentes e novas ou outras situações, estarem sempre tidas como “inacabadas” para esposar as variações do espaço e mudanças que se seguem no tempo. E, também, não supõem que intereagem, apresentam porosidades entre si pois as fronteiras entre exterior e interior, entre publico e privado se reduzem e se imbricam. E interagem, principalmente, na medida que as redes de infraestrutura trabalham com pontos e linhas. Uma pluralidade de pontos-lugar fixo construído- não abstrato mas eivado de espessura socio-cultural-econômica. Como a moradia para a qual água/esgoto é essencial para ser mais que um “teto” um “lar”, o rompimento deste ponto inercial tecendo ligações/relações entre os lugares por junções entre os pontos através de linhas por uma pluralidade de ramificações e caminhos base para que as infraestruturas possibilitem as ligações/relações.
Quando, contudo, procuramos fazer uma relação entre o escopo conceitual e as propriedades da infraestrutura como exposto acima, com o Rio de Janeiro, inicialmente não encontramos uma relação plena, e no que toca às favelas não se pode confirmar que nos pontos onde verifica-se sua implantação tenhamos superado o quadro de ausência e/ou precariedade de acesso a serviços básicos. Mas temos uma forma de intervenção pública de infraestrutura com o provimento de serviços em partes das favelas que levaram a relativas redefinições entre o espaço privado -a casa, e o público, produzindo algumas alterações na estrutura urbana e nas moradias que tenham tido a possibilidade de acesso a água e esgoto.
Percorrendo as favelas, np entanto, percebemos e analisamos que cada qual não é homogênea (o que pudemos confirmar também nas entrevistas com os moradores), nem entendido como um lugar “único”. Em geral com uma grande extensão de ocupação, uma topografia acidentada em alguns dos casos(Alemão, Cantagalo) e noutros vastas áreas planas(Maré, Cidade de Deus) ou semi-planas (Acari), mas todas plenamente ocupadas horizontalmente e com pontos de adensamento até por verticalização das casas, cada favela estudada engloba grandes disparidades, seja de qualidade de moradia, qualidade de vida e urbana, seja na forma diferenciada que as partes em si se conectam com a cidade e com os equipamentos urbanos. Formam, então, uma espécie de mosaico, tanto no interior de cada favela como entre as favelas do Rio de Janeiro, o que dificulta a implantação de água e esgoto similar em cada parte delas e em cada uma, como tem sido a política até aqui posta em prática.
Ao percorrer e avaliar o quadro encontrado nas diversas favelas alvo do estudo pudemos analisar como a situação de cada local era muito grave quanto ao quadro de ausência de infraestrutura. Focando no saneamento básico e no abastecimento de água, encontramos áreas com esgoto a céu aberto, o próprio beco era o esgoto era preciso andar por ele para sair de suas casas , casos onde, mesmo após as obras de infraestrutura, os moradores ainda têm que buscar medidas informais como bombas de água porque as caixas não abastecem os topos dos morros em alguns dias da semana, casas muito úmidas e casas improvisadas onde visivelmente não há acesso a água. Pelo relato de moradores, muitas das obras executadas não fizeram efeito, foram má executadas ou com má qualidade, pois muitas ruas ainda alagam, bueiros ficam entupidos e o sistema de drenagem construído não dá conta de abastecer todo o local.
Apontamos, também, a diferença urbana das áreas que chegaram a ser atingidas por obras de implantação de infraestrutura. Algumas tiveram impactos importantes nas dinâmicas de cada lugar. Em alguns as obras significaram uma remoção considerável de construções e redefinição de estruturas urbanísticas e o seu traçado viário. Percebemos que alguns becos foram pavimentados, algumas pequenas praças (algumas sem mobiliários, que surgem como espaços residuais) foram construídas, muitas áreas são de casas removidas, porém as obras permanecem paradas (ou ainda nem começaram) e muitas casas ainda estão com o marco da SMH (Secretaria Municipal de Habitação), as quais ainda serão removidas no que foi previsto pelas secretarias. Além da pavimentação, percebese um novo sistema de drenagem e novos bueiros pelos becos e ruas.
O que entendemos é que apesar das grandes obras de infraestruturas chegar em alguns locais das favelas, no seu todo, com muitas áreas mais necessitadas e mais precárias de serviços urbanos e saneamento por exemplo, as obras não chegaram. Locais que precisam urgentemente de atenção e que ainda estão da mesma maneira que antes das obras chegarem continuam com esgoto a céu aberto, sem acessibilidade alguma, com risco de doenças, pavimentação quebrada e algumas estruturas das casas até em perigo, problemas na regularidade do abastecimento de água oficial, e de operação e manutenção em geral. Ou seja, houve avanços na urbanização, mas este processo só alcançou as partes com maior visibilidade das favelas.
Anotamos, igualmente, diferenças entre as bases de dados oficiais e a realidade das favelas, observando como o poder público e como as pesquisas quantitativas feitas na área enxergam as favelas escolhidas para a análise. A partir delas é que muitas das obras de infraestruturas são muitas vezes efetuadas e baseadas.
A partir do IPP (Instituto Pereira Passos) e dos dados do IBGE, vimos que alguns dados coincidiam e outros se diferenciavam do que anotamos por observação técnica de campo e das entrevistas com moradores. De acordo com os dados oficiais, estes em geral apontam para uma quase universalização no abastecimento de água, variando de 80 a mais de 90% dos domicílios como ligados a Rede Geral de água, e 94,8% possuiriam esgotamento sanitário adequado( ou seja coleta por rede de esgoto ou fossa séptica), existindo ainda número de domicílios sem banheiros ou sanitários. Segundo informações do IBGE, contudo existem áreas onde não chega a 30% o esgotamento adequado, o que demonstra divergências mesmo entre entes públicos.
Observamos que os dados oficiais não correspondem à realidade. Embora os dados apresentem grande percentual de domicílios com abastecimento regular de água constatamos em mais de uma visita que diferentes localidades apresentavam falta de água, em situações em que os próprios moradores tentavam solucionar o problema com bombas e ligações indiretas. Já com relação ao esgotamento sanitário dos domicílios também não conferem com as situações encontradas in loco, mas encontramos situação diversa com a maior parte das áreas das favelas ainda com esgoto à céu aberto, seja junto à passagem de pedestres em frente as casas, o que dificultava o acesso dos moradores, seja volume de esgoto corrente sob construções foram erguidas em cima de valas,etc.
Outro ponto importante é o que é considerado aglomerado subnormal e o que não é, ou seja, quais regiões entram na compilação dos dados e quais ficam de fora. Cada favela estudada apesar de ser reconhecível como um todo que possui um identidade cultural e geográfica é recortado em varias subáreas consideradas aglomerados subnormais pelos órgãos oficiais mas ficam de fora desta classificação sub-áreas que nas nossa observação técnica de campo são favelizadas, como a Parmalat em Acari, e o recorte oficial muitas das vezes não é aquele reconhecido e identificado pelos moradores. (o que nos levou a fazer novas delimitações para os estudos de caso)..
De início consideramos a hipótese de muitas casas precárias, no que se refere a estrutura, revestimento e tamanho das casas. Com o tempo, passamos a entender que a aparência externa que das residências não era necessariamente aquelas que encontrávamos quando tivemos a oportunidade de conhecer seu interior. Como as casas das favelas tem um caráter de expansão de acordo com a ampliação da família e capacidade de renda (formal ou informal), a prioridade é investir internamente, com obras de estrutura, revestimento, aquisição de aparelhos e reforma da casa, já o aspecto das fachadas não é necessariamente uma prioridade. Apesar disso, ainda encontramos casas bem precárias, com materiais improvisados, como madeira e tecidos, muito úmidas, falta de ventilação e iluminação natural e até estruturas bem emergenciais de serem vistas. Em todos os casos estudados constatamos bastante diversidades tipológicas.
Pudemos entender sobre a dinâmica de cada favela como extremamente volátil, dado que observamos na observação técnica de campo como as expansões e construções eram algo muito recorrente. O espaço muda muito rapidamente: as casas (arquitetônico) se expandem e se modificam internamente, enquanto também afetam as ruas e o urbanismo do local.
Uma das entrevistas colhidas demonstra bem o processo de construção das casas e a relação com a questão da infraestrutura. Diz o morador ”...os lotes já eram marcados, daí compravam e cercavam com arame o terreno todo. As vezes chegavam e tiravam a cerca, por isso tiveram que construir a casa rápido. Compraram a casa por 600 cruzados na época. Alguns terrenos na rua são muito estreitos. O terreno da casa avança a rua porque é o terreno todo, e ainda deixaram 30cm na rua. A prefeitura queria o espaço da calçada de 1 metro, porém para entrar na casa precisavam desses espaço para construir a escada. Quando chegaram não havia água, luz, nem esgoto, a fossa fedia. Tínhamos que sair toda hora de casa para buscar água em bicas, as vezes longe das casas e traze-la em latas equilibrando na cabeça. O esgoto ficava na fossa. Na época do Fernando Hider, há 12 anos, que abriram a rua e asfaltaram. Só de água aqui pagou 6 vezes comprou bomba. Faz uns anos que a água entrou, antes a água tinha que ser puxada, não era da CEDAE. Aqui não pagam água. Tinham que ligar a bomba para chegar a água. Uma vez pagaram 100 reais para encanar a água, porém não melhorou. Já esgoto nunca teve: joga-se na vala na rua ...” (morador de Nova Brasília no Alemão).
Foi interessante também observar as compatibilidades (ou não), da pesquisa teórica e da prática. A respeito dos dados, pudemos observar divergências sobre o que era nos mostrado, e o que a realidade nos mostrava. Pudemos identificar na fala dos moradores as mudanças nas suas rotinas por trás da aquisição desses dispositivos de infraestrutura na autobiografia habitacional dos moradores, seja quando buscavam água no domínio público, ou quando compartilhavam a água através de mangueiras com vizinhos (que gerou amizades que duram até hoje, senso de solidariedade) ou indo buscar na casa de familiares quando precisavam, ou quando utilizavam a casa de alguém da família para usar como banheiro das visitas e as longas caminhadas para buscar água e lavar roupas.
Buscamos através da história do morador reflexões sobre sua trajetória, sua memória e como sua casa chegou na configuração atual. Pudemos ver que a partir de muito esforço a moradia contém um significado de conquista social importante. Os aspectos técnicos, como a chegada de água, a rede de esgoto, os equipamentos da casa e as obras foram acompanhando as diferentes fases das famílias e gerou diversas mudanças em seu cotidiano, que são marcados com muito orgulho até hoje. A casa sendo construída de acordo com as possiblidades de cada família faz com que a abertura para a flexibilidade de acréscimos e arranjos internos seja muito maior.
Mas no decorrer da observação técnica de campo ouvimos e anotamos relatos de moradores quanto o alcance das obras de infraestrutura que ainda não atendem as reais necessidades dos lugares. Na maioria das vezes as obras são pontuais e beneficiam apenas alguns moradores.
Entende-se, assim, que não se trata apenas de projetos de urbanização, mas da construção de equipamentos urbanos que alteram a relação com o território, ao mesmo tempo em que se constituem em artefatos simbólicos que alteram as formas de sociabilidade desse mesmo território.
A partir do estudo dos casos escolhidos, constata-se que apesar dos investimentos de vários Programas de Urbanização, a partir de meados dos anos 1990 e principalmente a partir de 2007 com o PAC (programa de aceleração do crescimento), persistem graves problemas de acesso, precariedade e qualidade nos serviços públicos ofertados nestas partes da cidade, ao mesmo tempo que surgem resultados parciais como se fossem "ilhas" de atendimentos, ainda que com precariedades de operação e manutenção. Com a introdução de ações de segurança pública em algumas favelas do Rio de Janeiro, através das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a questão da implementação de infraestrutura urbana nas favelas contempladas pelo programa, parece ter aberto um caminho de retorno à esfera do Estado como política de mais longo prazo, complementar a de segurança no sentido de inserir estes lugares na cidade formal-legal. Por observação técnica de campo e entrevistas com moradores esta pesquisa teve a oportunidade de acompanhar como este processo de inserção na regularidade acontece analisando a implantação de um equipamento urbano público associado a uma política de segurança pública que se configura num maior esforço de presença do Estado neste território através de intervenções físicas espaciais que geram efeitos sociais. Contudo, o sucesso do empreendimento, não apresenta um viés de generalização do atendimento das favelas-alvo, atingindo partes das mesmas, e ainda assim de modo parcial e com irregularidades no atendimento, mesmo no que concerne à segurança pública.
Estas distinções físicas (lugares atendidos e não atendidos) engendram distinções sociais gerando impacto na rotina dos moradores, na sua sociabilidade cotidiana e conferindo distintos graus de inserção na cidade formal. Na medida que se introduz novos dispositivos de acesso a infraestrutura, se tem graus onde se dá (ou não) a inserção desses habitantes à cidade oficial. Mas no decorrer da observação técnica de campo ouvimos e anotamos relatos de moradores quanto o alcance das obras de infraestrutura que ainda são pontuais e beneficiam uma parcela menor dos moradores e quando atendem não correspondem as reais necessidades dos lugares.
Na estrutura urbana atual na forma como ele se apresenta as favelas examinadas por nossa pesquisa possuem uma ocupação com diferentes padrões construtivos. Percebemos casas de madeira, em ocupação ainda dispersa e aparentemente recentes. Na lógica de ocupação inicial das favelas, quanto mais no alto dos morros ou nas partes mais baixas e alagadiças quando estão em áreas planas, e mais longe das vias principais mais barata é a construção e mais pobres são as pessoas que lá residem. A medida que nos aproximamos das vias principais a densidade construtiva aumenta, uma profusão de becos e vielas dá acesso à um sem números de construções. A proximidade de valas a céu aberto ou a estabilidade do solo podem dar origem a construções mais pobres e precárias do ponto de vista construtivo. Da mesma forma o abastecimento de água, a coleta de lixo e esgoto também são fatores de diferenciação socioeconômica. Na extremidade oposta temos locais que apresentam construções amplas com recuos laterais, em vias de largura regular e prédios variando de 3 a 6 pavimentos (em média) com uma densidade construtiva menor e mais ordenada. que a maioria das construções tem 2 ou 3 pavimentos, algumas com acabamentos em azulejos, outras sem reboco ou pintura, deixando sua estrutura aparente. Nos lugares que analisamos sempre era no alto do Morro , ou nas partes mais baixas(alagadiças) percebemos casas de madeira, em ocupação ainda dispersa e aparentemente recentes.. A precariedade do abastecimento de água, coleta de lixo e esgoto também são fatores de diferenciação socioeconômica.
Percebemos que uma porta a partir de uma rua pode levar para dentro de uma única casa, mas também à várias casas, corredores e pequenos pátios com várias portas, verdadeiras vilas, cujos portões impedem o livre acesso da rua ou beco. Esse tipo de situação acontece principalmente nas áreas onde a densidade construtiva é muito mais elevada em comparação ao restante da ocupação.
Fato recente e que está presente fortemente no dia-a-dia de parte das favelas estudadas(Alemão, Cantagalo,Cidade de Deus) são as mudanças introduzidas na dinâmica local representadas pela dupla de siglas PAC+UPP. As obras de infraestrutura urbana do Programa de Aceleração do Crescimento iniciaram-se em 2008 e incluem além das infraestruturas básicas outros elementos como construção de conjuntos habitacionais, escolas, clinicas de saúde, recuperação de ruas, e equipamentos culturais e de acessibilidade urbana.
Durante os percursos pudemos anotar o quadro de infraestrutura do lugar. As favelas cariocas, onde residem as classes populares, estão marcadas principalmente pelas ausências, mormente de serviços urbanos básicos regulares. Observamos partes com obras em andamento, outras concluídas, mas a maior parte não sendo objeto de introdução de melhorias urbanas. Anotamos em entrevistas pessoas apontando que após as obras a água que antes chegava regularmente na casa agora pós-obras entra sem horário estabelecido. Como nos disse um morador: “Tivemos que juntar as pessoas de três casas, comprar uma pequena bomba elétrica, que ligamos na tomada de um bar próximo, furamos o encanamento oficial e assim temos água para encher as caixas..(morador de casa perto da estação Itararé no alto de Nova Brasília no Alemão). Também observamos uma canalização de coleta de esgoto por rede passando ao lado de casas e uma canaleta de drenagem de água de chuva ao lado, tudo fruto das obras, e na canaleta de águas pluviais descia uma verdadeira cascata de esgoto. Ou seja, ou a rede de esgoto não foi dimensionada corretamente, ou existiriam ligações diretas com a canaleta de água de chuva. Perguntamos então aos moradores do lugar e este disseram que jogavam esgoto a céu aberto na canaleta de água de chuva por falta de ligação da rede feita com as casas(moradores do Quebra-Braço, no Cantagalo).
Diferentemente de algumas sub-áreas que tem estrutura urbanística informal, analisamos algumas(loteamento no Alemão, Rocinha2 na Cidade de Deus, o entorno da Parmalat em Acari-não sua forma de ocupação em cortiço mas no seu interior)que possuem uma estrutura urbana com aparência mais formal, houve a prévia delimitação de lotes e vias as construções podem ter maiores dimensões (evidente pela testada dos lotes) e recuos laterais e frontais o que possibilita maior qualidade de iluminação e ventilação interna. Interessante notar que em todas as entrevistas feitas nessas áreas os moradores responderam satisfação quanto ao serviço de coleta de lixo, somente um entrevistado respondeu que não havia o serviço de coleta na porta de casa (gari). Pela própria dimensão das vias e o seu traçado o serviço público de coleta de lixo se faz muito mais presente nessas áreas do que em comparação com as informais onde todos os moradores entrevistados responderam que precisavam descartar o lixo em algum outro ponto do complexo, o que gera uma insatisfação com o serviço e o acúmulo de lixo nas vias. O mesmo acontece em relação ao fornecimento e à qualidade da água. Enquanto nas formais somente alguns moradores relataram abastecimento irregular, nas de traçado informal os relatos foram bem diferentes com a maioria dos entrevistados apontando além da frequência irregular do abastecimento e má qualidade da água com cor amarelada ou barrenta , e esgoto lançado a céu aberto ou direto em rios ou canais(nove entre dez entrevistas).
Essa configuração urbana distinta que possibilita um acesso diferente a serviços públicos confere a estes moradores uma distinção em relação aos outros moradores das outras partes das favelas
Acredita-se que a estrutura urbana das favelas é, como aqui apresentado, suscetível de observações por diferentes ângulos. O todo que compõe cada uma das favelas é composto na verdade por retalhos de configurações urbanísticas e tipologias de casas diferenciadas, áreas e sub-áreas com identidades próprias dadas pelos moradores, cada qual apropriada à seu modo de vida.
Conclusão
No escopo deste artigo buscamos apontar para as transformações das Favelas do Rio de Janeiro no século XXI e sua relação com a problemática de água e esgoto, examinando casos escolhidos estudados com o exame da realidade concreta através do olhar e fala dos moradores.
Fica evidente como os diferentes programas públicos com intenção de implantação de água e esgoto não tiveram a compreensão das mudanças nas favelas, como são internamente diferenciadas e diversificadas entre elas, não suportando projetos generalizantes.
Mesmo com a iniciativa de realizar grandes obras de infraestrutura nas favelas, não necessariamente atingiu as demandas da população ou foram eficientes. Em muitos aspectos as obras ficaram inacabadas ou as obras foram realizadas com má qualidade. Muitos locais que precisam urgentemente de infraestrutura também não foram atingidos, como mostra o relato de moradores.
O que entendemos é que as obras de implantação de infraestruturas básicas não absorveram de fato a real gravidade da demanda por infraestrutura nas favelas estudadas, como um todo. Ainda superficial, as obras ainda ficam na transição da “cidade formal” para a favela, onde sejam visíveis, não atingindo seu interior- o “miolo”, que foi onde encontramos uma situação mais precária ou inexistente de infraestrutura de água e esgoto.
Na perspectiva das tipologias habitacionais e modificações internas, as favelas analisadas apresentam grande variedade de tipos habitacionais que vai desde barracos, casas, vilas, pequenos edifícios à conjuntos habitacionais. Percebemos que as mudanças no interior das residências ocorreram devido as obras ou não. Muitos moradores aproveitando o momento de valorização do local, resolveram realizar melhorias em seus imóveis, já outros tiveram a necessidade de reformar devido a alguns problemas mal resolvidos pelas obras Com relação as residências, vale ressaltar que nas favelas existe uma cultura de “doação ou venda de lajes”, que faz com que o gabarito seja sempre aumentado, transformando casas em pequenos edifícios, o que não foi acompanhado pelos projetos como uma realidade destes lugares, que nunca estão acabados e sim tem uma dinâmica de permanente crescimento edilício e populacional..
Percebemos também, e reafirmamos que as favelas possuem estruturas urbanas muito diferenciadas, e muito próximas umas as outras também, ou se conurbam. Vimos como essa diferenciação de estrutura influencia na qualidade de serviços, a percepção de espaço público/privado, o uso das ruas/becos, os tipos de moradias, as alterações habitacionais e a qualidade de vida, afetando os moradores em suas rotinas, modos de vida e como se apropriam do espaço, e de suas moradias. Anotamos, assim, uma porosidade no espaço público/privado, havendo uma aproximação clara destes e sem distinção pré-definida.
Nas áreas onde existiu algum sucesso na implantação de água e esgoto, anotamos nas entrevistas claro distanciamento do morador com a “favela”, com os, como eles chamam “favelados”, não se reconhecem como e fogem do rótulo de morador de favela. Mesmo seguindo nela vivendo.
Nossa reflexão nos conduz a apontar que o processo em curso se reflete em diferentes situações encontradas desde a articulação, passando pela semi-articulação, até o extremo da permanência de não articulação a redes e serviços básicos de água e esgoto. Podem ocorrer alterações no padrão de qualidade das moradias, sua organização interna em relação as funções e lugares de higiene, cozinha e serviços caseiros, e adaptações nas rotinas diárias, tanto no aprendizado e uso de equipamentos ligados a infraestrutura de água e esgoto (como vaso sanitário, chuveiro,pias,tanque e máquina de lavar roupa ) e na limpeza dos corpos e da casa, assim como na inserção dos habitantes na cidade oficial com relação à aderência, e em que grau, às normas, regulamentos, regras, tributação tarifária para acesso aos serviços, assumindo que nas interfaces entre situações de atendimento pleno, intermediário, mínimo, ou ausência de atendimento teremos qualidade das moradias, arranjos espaciais internos e rotinas de vida e uso de equipamentos e do grau de aderência a padrões de conduta e regras do mundo urbanizado podem revelar-se matizes, cujo conhecimento pode auxiliar na compreensão da moradia popular e subsidiar melhorias e revisões na política de infraestrutura para as favelas.
As rotinas dos moradores vão acompanhando as possibilidades ou não de articulação com infraestruturas básicas. Quando não existe ou há precariedade desta articulação os moradores tem como rotina sair do domínio privado ao público para buscar água e descartar esgoto. Na medida em que conseguem algum grau de articulação, mesmo que alternativo-clandestino, as saídas da casa podem se reduzir e induzem a esboçarem arranjos internos da casa com diferentes funções-como um lugar para uma pia, um lugar para um vaso sanitário, um lugar para o banho. Onde o Estado implanta infraestrutura oficial notamos a prevalência da permanência no domínio privado e novos arranjos internos definem melhor cômodos em face de funções. Mas se a articulação não foi adequada nota-se retorno a rotinas anteriores.
A implantação de infraestrutura de água e esgoto nas favelas e o quadro encontrado a partir dessa ação permite uma reflexão sobre seus impactos na vida e estratégias cotidianas indagando-se sobre sua implicação na redefinição das fronteiras entre público e privado. Mas se observa um “descasamento” entre a cultura e hábitos das comunidades e técnicas implantadas, normatizadas e regularizadas, pois se a introdução de água e esgoto de fato introduzem um elemento de novidade no processo de urbanização brasileira, pois dotariam áreas de camadas populares através de uma política o que se coloca, contudo, é que a introdução de serviços básicos se faz por meio de um padrão idêntico ao utilizado nas áreas de maior renda: um desenho hiperdimensionado, com obras de grande porte e com sofisticação técnica, com alto custo, e que não toma em conta a tipologia habitacional e a estrutura urbana das favelas, e não observa que se desenvolveu e consolidou-se de um conjunto de práticas cotidianas que configurou-se na ausência de política de infraestrutura básica para estes assentamentos.
A pretensão de uma integração com a cidade formal e inclusão social envolve completar um percurso que estaria em curso na direção de um âmbito urbanizado, mas que parece carecer de um entendimento que este processo, que se trata na verdade de uma semi-urbanização em algumas favelas ou em parte de algumas favelas, e de persistência da não-urbanização em outras, este processo não é igual a similares na cidade formal, pois nas favelas sua concepção esta eivada de desvios de uso, de invenções e estratégias para provimentos alternativos próprios das respostas viáveis às condições de vida dos moradores. Não seria possível, assim, fazer a apropriação das tipologias de moradia existentes e de parte da estrutura urbanística, como tem sido tentado pelas intervenções públicas ainda assim parcialmente, sem procurar entender e aceitar, ou pelo menos dialogar, com as estratégias cotidianas e a cultura que se configurou na vida dos moradores, expressados na estrutura urbanística e tipologia de moradia das favelas.
Assim se o padrão de distribuição sócio-espacial da infraestrutura no caso de água e esgoto aponta através dos Programas Especiais de Água e Esgoto tem sido uma novidade singular de aplicação de recursos para acesso à meios essenciais para camadas de renda baixa, esta modificação não altera o padrão histórico recorrente, pois mantém-se fortes e maiores investimentos nas áreas de maior renda introduzindo-se apenas uma espécie de “desvio” no padrão que não altera substancialmente seu conteúdo.
Na realidade as ações para implantação de água e esgo em favelas tem tido um efeito de segregação intra-pobres configurando pedaços – “ilhas” – articuladas a redes ainda que com serviços incompletos, e com problemas advindos da standartização das redes, em meio a “oceanos” de ausência ou forte precariedade de acesso com um padrão de prestação de serviços que não atende a totalidade dos domicílios e para aqueles que atende o faz com problemas cotidianos de operação e manutenção. A persistência de áreas de baixa renda na situação histórica de não-articulação ou má-articulação acrescidos agora de pedaços articulados, mas com serviços de qualidade irregular e incompletos, e a questão da uniformização de redes, apontam para a reflexão sobre a identificação dos graus de padrão de infraestrutura de habitabilidade atingidos (qual o grau efetivo de urbanização).Neste sentido, torna-se necessário, como primeiro passo, o reconhecimento da heterogeneidade existente no interior das comunidades de favelas. Por nossa observação direta de campo, relatos coletados em entrevistas com moradores, e que se confirmam até mesmo quando se desagregam dados macros, aponta-se uma morfologia sócio-econômica-espacial com características de mosaico, onde interpenetram-se, ás vezes até sem limites muito claros, sub-áreas com diferenças de renda, tipologia da moradia e do desenho urbanístico.
Diante da não universalização de um atendimento efetivo de redes-serviços de água e esgoto não é possível apontar para uma integração com bairros formais do entorno, sendo esta integração apenas parcial e pontual no espaço, e intermitente no tempo, o que conduz a um padrão de prestação de serviços, na maior parcela dos casos analisados, irregular, parcial e pontual. Configura-se, assim sendo, um mosaico que combina a heterogeneidade sócio-econômica e de tipologia urbanística com outro referentes aos padrões de infraestrutura de habitabilidade, prestação irregular de serviços e diferenças nos graus ou ausência de integração com bairros no entorno. Este quadro heterogêneo e fragmentado inviabiliza, a nosso juízo, a proposição do Estado de prover acesso a água e esgoto por meio do modelo convencional.
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